“Terra Brasilis” constante do Atlas Miller, 1.519, mapa elaborado por Pedro Reinel e Lopo Homem, cartógrafos portugueses do período das grandes navegações portuguesas.
Geralmente, nenhuma pergunta é tão simples que mereça uma resposta óbvia. De fato, a história sobre a origem da matemática que aportou no Brasil é mais rica e pitoresca do que podemos supor a princípio, ainda que a localização geográfica de seu nascimento nos seja suspeita: a península Ibérica, onde hoje se encontra nosso país irmão, Portugal. Os primeiros registros humanos nessa porção de terra da Europa datam de 500 a 300 mil anos atrás, quando a região era habitada pelos Neandertais, que posteriormente foram suplantados pelas sociedades paleolíticas de
Homo Sapiens, caçador-coletores que viveram há cerca de 23.000 anos, deixando como vestígios arqueológicos a arte rupestre, localizada principalmente onde hoje se encontra o município de Vila Nova de Foz Coa, no assim chamado Vale do Coa.
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Pintura rupestre do Vale do Coa, em Vila Nova de Foz Coa, Portugal. Observe os desenhos representando um cavalo e cabras, sobrepostos. |
Ao fim da última glaciação, há cerca de 12.000 anos, a península Ibérica se vê tomada pelas culturas neolíticas, que iniciam a domesticação de animais de pastoreio, a pesca e o cultivo de cereais, graças às mudanças climáticas oferecendo temperaturas mais amenas. É deste período que surgem os monumentos megalíticos do tipo dólmen, como o de Anta Grande do Zambujeiro, na atual cidade de Évora, ou ainda o cromeleque do Almendres, também localizado em Évora, esta uma estrutura circular composta de 95 menires, semelhante à de Stonehenge, na Inglaterra.
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Monumento megalítico do tipo dólmen, em Anta Grande do Zambujeiro, Évora. |
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Cromeleque dos Almendres, estrutura megalítica circular composta por 95 menires, também na cidade de Évora. |
No neolítico, estas sociedades agrícolas e pastoris não possuíam uma escrita e o uso da matemática limitava-se provavelmente à contagem de animais, à divisão de alimentos e a classificações hierárquicas. Também os monumentos megalíticos circulares operariam como relógios astronômicos, para a determinação dos períodos de plantio e de colheita, a marcação dos solstícios de verão e inverno, dos equinócios da primavera e outono, e ainda para fins ritualísticos diversos. Sucedendo o período neolítico, a Idade do Bronze viu a península Ibérica ser invadida por grupos celtas oriundos da Europa central, por volta de 4.000 a.C., bem como o aparecimento de alguns entrepostos comerciais fenícios e cartaginenses entre os séculos 8 e 2 a.C. Neste período, surgem as escritas paleo-hispânicas, uma combinação variada de alfabetos influenciados pelas culturas celto-ibéricas e gregas. A matemática, talvez marcada pelas culturas helênicas, tenha tido um avanço, passando a ser utilizada principalmente nas transações comerciais.
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Estela com glifos cônios, uma das escritas paleo-hispânicas |
Entretanto, a península Ibérica sofre nova invasão, agora do poderoso Império Romano, por ocasião de sua vitória na segunda guerra Púnica contra Cartago, em 218 a.C., criando de início duas províncias: a Hispânia Ulterior e a Hispânia Citerior, que viriam a tornar-se, respectivamente, nas províncias da Lusitânia e da Galécia, no governo do imperador Diocleciano, em 298 d.C. Com a invasão romana, as escritas paleo-hispânicas desapareceram por completo, dando lugar ao alfabeto e ao sistema numérico romanos.
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Ruínas romanas de Conímbriga, atual Coimbra, famosa pelas suas universidades. |
Como já vimos anteriormente, a matemática não frutificou entre os romanos graças às sérias limitações de seu sistema numérico, que não era posicional e não fazia uso do algarismo zero, sendo imprescindível o uso do ábaco para realizarem as operações aritméticas, mesmo as mais simples, em suas relações comerciais, no cálculo de impostos, etc. Com o ocaso do império Romano, em 409 d.C. a península Ibérica passa a sofrer a invasão de grupos de origem germânica, a que os romanos denominavam genericamente de bárbaros. Em 411 d.C., num contrato de federação com o imperador romano Honório, dois destes povos germânicos estabeleceram-se e tiveram a presença mais duradoura no território correspondente a Portugal: os Suevos, ocupando a porção norte da península e tendo a atual cidade de Braga como local de sua capital; e os Visigodos, que ocuparam a parte restante do território ibérico.
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As províncias romanas da Lusitânia e da Galécia, no tempo de Diocleciano. |
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Os reis visigodos Chindasvinto, Recesvinto e Égica, segundo o Codex Vigilanus. |
A maior contribuição destes dois povos não foi na matemática, mas na língua: a influência germânica e românica no latim escrito, que Suevos e Visigodos utilizavam, evoluiu para uma forma primitiva de galaico-português, sedimentando-se por fim na nossa língua portuguesa. Entretanto, não nos esqueçamos de que foi justamente no Codex Vigilanus que surgiu a primeira referência aos numerais hindu-arábicos em toda a Europa, na compilação de 976 d.C. deste documento. Porém, com suevos e visigodos utilizando o sistema numérico romano, a matemática continuou estanque durante a existência desses reinos.
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Domínio dos reinos Suevo e Visigótico, por volta de 500 d.C. |
Essa inércia, porém, não duraria por muito tempo. Em 711 d.C., um exército Omíada, liderado por Tariq ibn Ziyad, ou Tárique, desembarcando em Gibraltar, aproveita-se das lutas internas que dividiam os visigodos, e na chamada batalha de Guadalete saem-se vitoriosos contra as forças do rei visigodo Rodrigo. Avançando rapidamente até Saragoça, graças ao povoamento disperso nesses territórios, vão acabar por conquistar quase toda a península. A esta região ocupada como província do Califado Omíada, os árabes dão o nome de al-Andaluz. À porção oeste, correspondente a Portugal, chamavam Gharb al-Andaluz, ou simplesmente al-Gharb, que significa "o ocidente", sendo este o nome da região turística portuguesa conhecida como Algarve.
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Antiga mesquita de Mértola, no distrito de Beja (sul de Portugal), hoje Igreja de Santa Maria da Assunção, erguida no século 12 d.C. pelos árabes. |
Com a península Ibérica sob domínio árabe, que já usufruía do sistema numérico hindu e inclusive o aprimorara, a matemática encontra, enfim, terreno propício para fincar seus alicerces e desenvolver-se plenamente nessa região. O curso da história, porém, é dinâmico, o que significa dizer que grupos cristãos visigodos agrupados ao norte, nas regiões montanhosas das Astúrias e liderados por Pelágio, fundam o reino das Astúrias e iniciam a reconquista dos territórios árabes.
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Monumento a Dom Pelágio, na cidadela de Cavadonga, Espanha. |
Este processo gradual deu origem a pequenos territórios que alargavam suas fronteiras conforme o sucesso dessas conquistas, dando origem aos reinos de Leão, Navarra, Aragão, Castela e Galiza. A formação do reino de Portugal se inicia com a entrega do Condado Portucalense a Henrique de Borgonha, pelo seu casamento com Teresa de Leão, filha do rei Afonso VI de Leão e Castela em 1.096. Este condado se formou em 868 d.C., limitado pela região compreendida entre os rios Minho e Douro.
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D. Afonso Henriques |
Entretanto, o favoritismo de Da. Teresa em relação aos nobres galegos e sua indiferença para com os fidalgos e eclesiásticos portucalenses após a morte de seu marido em 1.112 provocaram revolta, fazendo com que seu filho, D. Afonso Henriques, liderasse e vencesse, em 1.128, a batalha de São Mamede contra as forças de sua mãe e de seu amante, o galego Fernão Peres de Trava. Finalmente, após uma importante vitória contra os árabes na batalha de Ourique, em 1.139, D. Afonso Henriques foi aclamado rei de Portugal, dando assim origem ao Reino de Portugal. Em 1.249, sob o comando de D. Afonso III, o al-Gharb mourisco foi incluído no reino de Portugal, concluindo assim a reconquista portuguesa; entretanto, a forte influência do sistema numérico hindu-arábico jamais foi derrotada desde que aportou na península Ibérica. Já o período compreendido entre 1.385 e 1.580 vê a consolidação e a expansão do reino de Portugal, com as conquistas ultramarinas e a formação de capitanias em todos os continentes para a exploração das rotas comerciais no lucrativo comércio de especiarias, surgindo assim o primeiro império global de que se tem notícia. Neste intervalo de tempo, dois fatos nos interessam em particular: a descoberta do nosso Brasil em 1.500 por Pedro Álvares Cabral e a publicação do Libro de algebra en arithmetica y geometria, do matemático português Pedro Nunes, em 1.567. Nascido na cidade de Alcácer do Sal em 1.502 e também conhecido pela versão latinizada de seu nome, Petrus Nonius, ele foi um dos maiores vultos científicos de seu tempo, a ponto de ser mencionado – senão diretamente, ao menos pela identificação de traços de sua influência – por todos os grandes matemáticos, astrônomos e cosmógrafos dos séculos 16 e 17 d.C. Tal foi sua fama, que seu nome em latim batiza uma das crateras da Lua.
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O matemático e cosmógrafo português Pedro Nunes |
Nunes acreditava que o conhecimento devia ser partilhado, tanto que suas obras originais foram publicadas em três línguas: o português, o latim e, no caso específico do Libro de arithmetica, em espanhol, fato considerado inusitado, já que Castela era à sua época o principal adversário de Portugal no domínio dos mares.
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Frontispício do "Thesaurus Mathematum Reservatus per Algebram Novam", de 1.646, de Johannes de Luneschlos, professor de matemática da Universidade de Heidelberg. Está representado como Petrus Nonius, ao lado de matemáticos ilustres como Euclides e Diofanto de Alexandria, entre outros. |
Possivelmente, um ou mais exemplares do Libro de arithmetica chegaram ao Brasil pelas mãos dos jesuítas da Companhia de Jesus, responsáveis também pela criação da primeira escola elementar no Brasil. De fato, a educação no Brasil colônia foi privilégio dos padres, de modo que a rede de educação dos jesuítas ampliou-se pouco a pouco, com a fundação de outras escolas elementares e colégios, estabelecidos na Bahia (1.556), Rio de Janeiro (1.567), Olinda (1.568), Maranhão (1.622), São Paulo (1.631) e outras regiões. Aliás, é digno de nota saber que consta no acervo da belíssima Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, um exemplar original do Libro de arithmetica de Pedro Nunes.
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Vista interna da Biblioteca Nacional, com seus corredores e prateleiras de livros. |
Nutrida culturalmente pelas principais civilizações do mundo antigo, como a grega, a romana e a árabe, a matemática que aportou no Brasil, nascida na península Ibérica, é de excelente cepa e uma das mais tradicionais do mundo ocidental. Tal excelência é confirmada pela qualidade de nossos matemáticos, cuja consagração se fez na pessoa do carioca e Professor Artur Avila, o primeiro latino-americano e lusófono a receber a medalha Fields, em 2014. Esta honraria é concedida a cada 4 anos somente a matemáticos brilhantes com menos de 40 anos de idade, que tenham contribuído com algum estudo relevante ao progresso da matemática. A medalha Fields rivaliza, em importância e prestígio, com o prêmio Nobel, que curiosamente não oferece premiação para a categoria matemática.
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O Professor Artur Avila |
Também é aqui no Brasil que
encontramos um dos institutos de matemática mais respeitados do mundo: o IMPA,
ou Instituto de Matemática Pura e Aplicada, localizado próximo à Floresta da
Tijuca e ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Fundado em 15 de outubro de
1952, o instituto se tornou uma das mais respeitadas e reconhecidas unidades
mundiais de pesquisa matemática, do qual o professor Artur Avila é catedrático.
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Vista do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o IMPA |
Com isso, encerramos este capítulo quiçá convencidos de que nenhuma pergunta é tão simples que mereça uma resposta óbvia. Mas outra pergunta, porém, se apresenta: vendo-se tantos homens despontarem ao longo da história no estudo da matemática, qual será o papel das mulheres nessa ciência? A resposta, no próximo capítulo.
Referências bibliográficas:
[1]
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Leitão, H. “Pedro Nunes e o
Libro de Algebra”, Quaderns d’història de l’Enginyieria, volum XI, 2010,
págs. 09-18.
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[2]
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Areán-García, N. “A divisão
do galego-português em português e galego, duas línguas com a mesma origem”,
Revista Philologus, ano 17, No. 49, Jan/Abr 2011, págs. 07-15.
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[3]
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Wikipedia, “História de
Portugal”, acessado em Setembro de 2015. Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Portugal
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[4]
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de Almeida, W. R. A., “A
educação jesuítica no Brasil e o seu legado para a educação da atualidade”, Revista
Grifos, N. 36/37, 2014.
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[5]
|
de Paiva, W. A., “O legado
dos jesuítas na educação brasileira”, Educação em Revista, Belo Horizonte, v.
31, N. 04, págs. 201 a 222, Outubro-Dezembro 2015.
|
[6]
|
Klein, L. F. “Trajetória da
educação jesuítica no Brasil”, Ciclo de Debates 2016, Pateo do Collegio, São
Paulo.
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[7]
|
Wikipedia, “Biblioteca
Nacional do Brasil”, acessado em Janeiro/2021. Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Biblioteca_Nacional_do_Brasil
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[8]
|
Wikipedia, “Artur Avila”.
Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_Avila
|
[9]
|
Pedro Nunes, “Libro de
algebra en arithmetica y geometria”, 1567.
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[10]
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Johannes de Luneschlos,
"Thesaurus Mathematum Reservatus per Algebram Novam", 1646.
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Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito
Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar,
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