Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

quinta-feira, março 09, 2017

O infinito: uma breve abordagem

Pirâmides de Sierpinski. Esta estrutura é um fractal formado por triângulos equiláteros que podem replicar-se no mesmo padrão infinitamente.
O infinito suscita variadas interpretações. Para o pintor renascentista, o infinito está nos pontos de fuga de suas telas, dando a sensação de uma distância infinita ao observador, e servem para retratar realisticamente o espaço, as distâncias e os objetos de um determinado ponto de vista.

Técnica da aplicação dos pontos de fuga, obra de Hans Vredeman de Vries, de 1.608
Para os místicos, por outro lado, o infinito pode significar Deus ou o Absoluto, e para os filósofos estar relacionado com a eternidade. Já para o trovador medieval, infinito são o amor por sua donzela e a dor de não ser correspondido. Porém, é na matemática que o infinito está mais intimamente relacionado e foram os matemáticos que deram as maiores contribuições para sua compreensão. Iniciando nossa caminhada pela história rumo ao infinito, vejamos como povos antigos lidavam com esse tema, partindo da civilização maia.


Os maias foram não somente grandes matemáticos, mas também astrônomos brilhantes, a ponto de criarem um calendário − conhecido também como 'roda calendárica' – que, baseado em seu sistema numérico vigesimal, permitia-lhes calcular o tempo com grande precisão; de fato uma de suas maiores realizações na astronomia. Os maias creditavam à divindade Itzamna o ensinamento do sistema de calendários, junto com a escrita e outros aspectos de sua cultura.

A roda calendárica maia
O calendário maia é constituído de 3 rodas: a menor, interna, possui 13 divisões; a roda intermediária contém 20 divisões e a externa, 19 divisões. A roda interna (que representa dias) engrenada à roda intermediária (que representa meses) perfazem um ciclo correspondente a um ano de 260 dias (13 dias × 20 meses) e constituem o calendário religioso, ou Tzolkin na língua maia. Era utilizado para determinar o momento de eventos religiosos e cerimoniais. Além do calendário ritualístico, os maias também tinham o calendário solar, conhecido como Haab, em que a roda externa, com 19 divisões (ou dias) trabalha em conjunto com a roda intermediária de 20 divisões, perfazendo um ano solar de 360 dias (18 dias × 20 meses) mais a 19ª divisão de apenas 5 dias. Estes 5 dias que faltam para completar um ano solar de 365 dias eram chamados de uayeb, ou "aqueles que não têm nome". Os maias consideravam-nos como "dias fantasmas" e qualquer um que nascesse em um deles teria má sorte e permaneceria pobre e miserável por toda a vida. Além disso, nesses dias os portais entre o reino mortal e o submundo desapareciam, sem limites que impedissem que deidades mal-intencionadas causassem desastres. A combinação das três rodas gerava ainda um terceiro calendário, que os maias chamavam de Contagem longa. O mínimo múltiplo comum entre o ano religioso (de 260 dias) e o solar (de 365 dias) é 18.980 dias, ou seja, a cada 52 anos solares (18.980/365) ou a cada 73 anos religiosos (18.980/260), as rodas retornavam à mesma posição inicial que tinham 18.980 dias antes. A contagem longa inicia-se em um ponto místico situado em 3.114 a.C. e considerado pelos próprios maias como o momento da criação de sua civilização. O cálculo de datas neste sistema calendárico era feito numa base vigesimal modificada, contendo em geral cinco números sequenciais, como no exemplo abaixo:

$$ \left [ 8;14;3;1;12 \right ] $$

Para saber qual data em nosso calendário corresponde essa sequência numérica, procedemos à seguinte conta, começando da direita para a esquerda:

$$ \left ( 12\times 20^{0} \right )+\left ( 1\times 20^{1} \right )+\left ( 3\times 18\times 20^{1} \right )+\left ( 14\times 18\times 20^{2} \right )+\left ( 8\times 18\times 20^{3} \right ) $$

Observe: a partir do terceiro termo, ao invés de multiplicarem o número da sequência (neste caso o 3) por 20 ao quadrado, os maias iniciavam a multiplicação por 18 seguido da multiplicação por potências de 20, daí porque essa contagem não era vigesimal pura. O resultado dessa conta é de 1.253.912 dias corridos, que se iniciam em 3.114 a.C., chegando a cerca de 321 d.C. em nosso calendário. Neste sistema, um dia era denominado kin, 20 kin perfaziam um mês (uinal), 18 uinal perfaziam um ano (tun). Com 20 tun chegava-se a 1 katun (20 anos), 20 katun equivaliam a 1 baktun (360 anos) e 20 baktun perfaziam 1 pictun (7.200 anos). A maioria das inscrições maias da contagem longa limitam-se em registrar somente os 5 primeiros coeficientes, mas existem inscrições que apontam ou implicam em sequências maiores que 5, gerando contagens muito mais longas, o que leva a crer que essa incrível civilização tivesse alguma noção do ilimitado, infindável esticamento do tempo, ou infinito potencial. O infinito potencial é a forma mais natural e intuitiva de conceber o infinito, sendo nesta concepção algo que pode aumentar, continuar ou estender tanto quanto se queira, como é o caso dos números naturais:

$$ 1,2,3,4,5,6,7,8,9... $$

Sempre é possível somar mais um número à sequência, estendendo-a indefinidamente, ou seja, é uma sucessão infinita de elementos discretos, infinitamente extensíveis. Considere, porém, um segmento de reta: apesar de limitado em sua extensão, é um contínuo de pontos onde não faz sentido falar do elemento seguinte, pois entre um ponto e outro da reta sempre é possível haver um ponto intermediário, o que faz com que um segmento de reta, finito, seja infinitamente divisível. Este segundo tipo de infinito é denominado infinito atual. Para a civilização grega, o infinito foi sempre um conceito problemático. Para os pitagóricos, em que tudo em seu mundo era número, o finito estava associado ao bem e o infinito ao mal. Leucipo de Mileto (século V a.C.) e seu discípulo Demócrito de Abdera (460 a.C. a 370 a.C.) deram às quantias infinitamente pequenas um limite, abaixo do qual não haveria possibilidade de divisão, e que denominaram de átomos. Zenão de Eléia (485 a.C. a 430 a.C.) foi um crítico da multiplicidade, que expunha através de seus paradoxos:

Se a multiplicidade existe, as coisas serão ao mesmo tempo limitadas e infinitas em número. Se a multiplicidade existe, as coisas, ao mesmo tempo, serão infinitas em tamanho e não terão tamanho algum.

O segmento de reta finito, com seus infinitos pontos, é uma boa representação dessa contradição. Seguindo essa linha de pensamento, Zenão afirmava que percorrer infinitos pontos de um percurso (segmento de reta) num tempo finito é impossível, de modo que o movimento seria apenas uma ilusão.  O paradoxo da dicotomia é bastante didático nesse aspecto:

"Aquilo que está em movimento deve alcançar a metade do percurso antes de chegar à meta"

A representação desse paradoxo já foi vista no capítulo dos números irracionais:

Mas porque este paradoxo não funciona? Considere que o percurso completo possa ser representado por um quadrado de área igual a 1, onde essa área unitária representa o trajeto como um todo:


Para que o atleta percorra o caminho inteiro, é preciso que ele alcance metade do trajeto, o que se traduz como:


Para percorrer metade do trajeto, antes é necessário que o atleta alcance um quarto do caminho (metade de 1/2):


Para percorrer um quarto do caminho, antes o atleta tem que avançar um oitavo do percurso (metade de 1/4):


Para percorrer um oitavo do caminho, antes o atleta deve alcançar a décima sexta parte do trajeto (metade de 1/8):


Seguindo esse procedimento, para atingir a décima sexta parte do trajeto, antes o atleta deve alcançar a trigésima segunda parte do percurso (metade de 1/16):


A tendência é de que os avanços, cada vez mais infinitesimais, perfaçam o trajeto completo:


Em termos fracionários, temos:

$$ \frac{1}{2}+\frac{1}{4}+\frac{1}{8}+\frac{1}{16}+\frac{1}{32}+\frac{1}{64}+...=1 $$

A verdade é que num tempo finito percorre-se uma quantidade infinita de trechos infinitesimais, o que em filosofia é denominado super-tarefa, de modo que o movimento é real e não uma ilusão como afirmava Zenão. Para Platão (428? a.C. a 347? a.C.), o potencial de extensão era considerado limitado, finito; o conceito de infinito propriamente dito era algo irracional, impensável, sem sentido. Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), discípulo de Platão, aceitava o infinito potencial, como o dos números inteiros, onde se pode sempre somar mais um para se obter um número maior, mas o conjunto infinito de números como tal não existe. Argumentava também que a maioria das magnitudes sequer poderia ser potencialmente infinita porque pela soma sucessiva de magnitudes seria possível exceder os limites do universo; mas o universo é potencialmente infinito no sentido de que pode ser repetidamente dividido. O tempo, por sua vez, é potencialmente infinito em ambos os sentidos. Na geometria, Aristóteles admite que os pontos estejam em linhas, mas que os pontos não constituem a linha, uma vez que o contínuo não poderia ser constituído pelo discreto. Euclides (325 a.C. a 265 a.C.) segue a mesma toada ao misturar o infinitesimal com o infinito, quando define os conceitos básicos de ponto e reta em seu Elementos:

Um ponto é o que não tem parte;
Uma linha reta é uma linha composta de pontos uniformemente distribuídos.

Arquimedes (287 a.C. a 212 a.C.) em seu manuscrito O contador de areia, igualmente refuta a hipótese de um universo infinito como estabelecido por seu conterrâneo, Aristarco de Samos. Para fins de cálculo, o universo seria limitado a uma esfera que vai do centro do Sol ao centro da Terra totalmente preenchida de grãos de areia. Para chegar a um resultado, desenvolveu um sistema de potências numéricas composto de períodos. Neste sistema, Arquimedes demonstra potências equivalentes a 10 elevado a 799.999.999; apesar do gigantismo impensável deste número, ainda assim é finito, pois basta somar 1 à potência acima que obtemos um número maior que a própria potência. Ao contrário dos gregos, a civilização hindu tinha verdadeiro fascínio pelo infinito, como nesta passagem em que um sacerdote, após preparar os tijolos para um ritual védico, reza a Agni, divindade do fogo:

Oh Agni! Torne estes tijolos em vacas que dão leite para mim
Por favor, dê-me uma, e dez, e cem, e mil
Dez mil, e lakh e prayutam
E arbudam e nyarbudam e samudram
E madhyam e parardham neste mundo e em outros mundos também

Nestes versos, os nomes hindus correspondem a potências de dez:

Lakh = 10 elevado a 5;
Prayutam = 10 elevado a 6;
Arbudam = 10 elevado a 7; 
Nyarbudam = 10 elevado a 8;
Samudram = 10 elevado a 9;
Madhyam = 10 elevado a 10;
Parardham = 10 elevado a 12;

O conceito de infinito era repetidamente usado na era védica:

Do infinito nasce o infinito
Quando infinito é retirado do infinito, o que resta é apenas infinito.

No Ramaiana, um épico sânscrito que conta a história do príncipe Rama, cuja esposa Sita é raptada pelo demônio Ravana, e escrito entre 500 a.C. e 100 a.C., aparecem potências que chegam a 10 elevado a 62, cujo número representa a quantidade de Vanaras (homens macaco da armada do príncipe Rama) empregados na construção da ponte Rama ou Adam.

Um homem macaco ou vanara ao centro, marcando seu nome em um tijolo para a construção da ponte Adam. O homem azul à esquerda é o príncipe Rama.
A ponte Adam é uma formação geológica de pedra calcária com 50 quilômetros de extensão entre a ilha Pamban, na Índia, e a ilha Mannar, no Sri Lanka.

Vista aérea da ponte Adam
Entre os árabes, como tutores da herança grega no conhecimento matemático, não houve avanços sobre o infinito. Adentrando a idade média, o infinito é retomado na escolástica, doutrinas teológico-filosóficas caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a e a razão. Representam essa linha de pensamento: Santo Agostinho, que adota a visão platônica de que Deus era infinito e teria infinitos pensamentos; São Tomás de Aquino, que permitia o ilimitado de Deus, mas negava que fizesse coisas ilimitadas; e Nicolau de Cusa, cardeal católico e filósofo, que afirmou:

A verdade da imagem não pode ser vista tal como é em si através da imagem, porque a imagem nunca chega a ser o modelo, pois toda perfeição vem do exemplar que é a razão das coisas. Este é o jeito como Deus reluz com as coisas. Como consequência, o Absoluto é incompreensível, posto que o invisível não pode se transformar no visível, o infinito não se encontra no finito.

Nicolau de Cusa
Foi também na idade média que se descobriu um paradoxo com o infinito. Considere dois círculos concêntricos, sendo que o círculo maior tem o dobro do tamanho do raio do círculo menor:


Como a circunferência do círculo externo é duas vezes maior que a do círculo interno, então o círculo externo conteria uma quantidade infinita de pontos maior que a do círculo interno. Porém, quando desenhamos dois raios, o primeiro atinge o círculo interno no ponto P e o círculo externo no ponto equivalente P’, e o segundo raio atingirá o círculo interno no ponto Q e o círculo externo no ponto equivalente Q’; observe:


O paradoxo aqui é que, sendo de tamanhos diferentes, os círculos apresentam uma quantia diferente de pontos, ainda que infinitos. Porém, quando colocados em correspondência um-para-um, a quantia de pontos infinitos em ambos os círculos é igual. Na renascença, é Galileu Galilei quem apresenta o paradoxo dos quadrados, em sua obra Discorsi e dimostrazioni matematiche a due nuove scienze, de 1.638, conforme a seguir. Considere uma sequência de números naturais (em azul) e seus respectivos quadrados perfeitos (em vermelho), como mostrado a seguir:



A condição paradoxal emerge porque, por um lado, torna-se evidente que a maioria dos números naturais (em azul) não são quadrados perfeitos, de modo que o conjunto dos quadrados perfeitos é menor que o conjunto de todos os números naturais; observe:



Fica evidente há um espaço vazio entre dois quadrados perfeitos consecutivos e que entre esses espaços há números naturais que não são quadrados perfeitos, e esses espaços vazios tornam-se maiores à medida que a contagem aumenta. Por outro lado, como para cada número natural há seu correspondente quadrado perfeito, conclui-se que existem tantos números naturais quantos quadrados perfeitos. Em outras palavras, há uma correspondência um-para-um em ambas as sequências numéricas. Ao evidenciar esta estranha contradição, Galileu conclui:


Quando tentamos, com nossas mentes finitas, discutir o infinito, associamos a ele aquelas propriedades que aplicamos ao finito e limitado; mas penso que isto está errado, pois não somos capazes de falar de quantidades infinitas como uma sendo ou maior, ou menor, ou igual a outra.



Quem primeiro contextualizou o conceito de infinito e lhe deu um formato lógico e racional foi o matemático russo naturalizado alemão Georg Cantor.


Um jovem Georg Cantor

A estratégia do matemático para lidar de forma adequada com esse conceito foi extraordinariamente simples e genial: imagine que você tenha duas cestas de ovos e te peçam para contar qual destas cestas contém mais ovos.



Uma forma de verificação é tirar simultaneamente um ovo de cada cesta; aquela que primeiro ficar vazia será a que contém a menor quantia de ovos. Se ambas as cestas ficarem vazias ao mesmo tempo, então ambas terão a mesma quantidade de ovos. Ridículo? Pois é o que os matemáticos da época também pensaram sobre tal raciocínio, mas aí também reside a simplicidade das idéias geniais. A diferença é que Cantor utilizou números ao invés de ovos e chamou as cestas de conjuntos ou classes. Conjunto ou classe é uma coleção de coisas semelhantes, como ovos, bicicletas, segmentos de reta, figuras geométricas, tampinhas de garrafa, números ou qualquer outra coisa. Para compará-los, Cantor utilizou diferentes conjuntos: um apenas contendo números pares, outro contendo apenas ímpares, um terceiro contendo os números inteiros, um quarto contendo os números fracionários e ainda um quinto conjunto contendo apenas inteiros negativos e depois de montados passou a comparar estes conjuntos quanto ao seu tamanho, ou no jargão desse matemático, quanto à sua cardinalidade, através do emparelhamento de seus elementos. Se um conjunto qualquer tivesse para cada elemento um único elemento a ele associado do outro conjunto, então ambos os conjuntos teriam a mesma cardinalidade; do contrário, o conjunto com mais elementos seria aquele de maior cardinalidade ou tamanho. Ele começou comparando o conjunto dos números inteiros com o conjunto dos números inteiros pares e constatou que há a mesma quantidade de elementos em ambos. Observe:





Cantor concluiu que quando se trata de quantidades infinitas, o todo nem sempre é maior que cada uma de suas partes. De fato, a mesma cardinalidade é obtida quando comparamos os números naturais com inteiros negativos ímpares, números divisíveis por 5 ou múltiplos de 7, entre tantos outros exemplos:



Depois dessas constatações, Cantor concluiu que não existe um conjunto infinito menor que o dos números naturais e para representá-lo ele adotou o termo 'aleph zero' (pronuncia-se aléfi), utilizando para isso a primeira letra do alfabeto hebraico: ℵ0. Para diferenciar este número dos números finitos, o matemático cunhou o termo transfinito para qualificar o ℵ0. Não satisfeito, Cantor decidiu verificar se haveriam outros números transfinitos maiores que ℵ0, e suas dúvidas recaíram sobre os números racionais, uma vez que existem infinitos números racionais entre dois números inteiros; por exemplo, entre o 2 e o 3 há infinitas frações cujos valores situam-se entre estes dois números. A estratégia adotada por Cantor para solucionar este problema foi brilhante: para confirmar se o conjunto dos números racionais tem a mesma cardinalidade da dos números naturais, os racionais devem ser enumeráveis, ou seja, são passíveis de serem contados (como fazemos com os números inteiros), de modo que se consiga aplicar, na terminologia de Cantor, uma associação biunívoca entre cada elemento dos dois conjuntos. Se essa associação não for possível, é porque o conjunto dos racionais conterá mais elementos que o conjunto dos naturais, quer dizer, compõe um número transfinito maior que ℵ0. O fato é que Cantor provou que os números racionais são enumeráveis. Veja como: monte uma tabela em que as colunas (em azul) representam os numeradores e as linhas (em vermelho), os denominadores:



Observe que muitas das frações se repetem ao longo das células. Agora, enumeramos as frações, seguindo a sequência abaixo:



Seguindo este zigue-zague e descartando as frações repetidas, percorremos todas as linhas e colunas; se seguíssemos apenas a primeira linha enumerando suas frações não passaríamos nunca à segunda linha, pois todas as linhas e colunas seguem ao infinito. Seja seguindo uma única linha ou ziguezagueando entre linhas e colunas, obtemos enfim um conjunto enumerável. Observe:




A sequência acima, composta de números racionais, pode agora ser emparelhada com os números naturais:



Com esse estratagema genial, Cantor demonstrou que os números racionais formam um conjunto enumerável com a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais, constituindo outro número transfinito0. O conceito de números transfinitos tem implicações interessantes: considere o número irracional √2. Este número pode ser representado por uma dízima infinita não periódica, conforme abaixo:

$$ 1,4142135623730950488016887242097... $$

Se aplicarmos ao infinito o algoritmo de Herão para o cálculo da raiz quadrada de um número natural, obteremos a cada rodada deste processo infindável uma nova fração que se aproxima cada vez mais do limite sem nunca atingí-lo. Observe:

$$ \frac{17}{12};\frac{577}{408};\frac{665.857}{470.832}... $$

Que resultam em valores cada vez mais aproximados para √2:

$$ 1,41\overline{66666666666666666666666666667...} $$
$$ 1,41421\overline{5686274509803921568627451...} $$
$$ 1,41421356237\overline{46899106262955788901...} $$

Deste modo, assim como o limite da sucessão dos números naturais pode ser visto como o número transfinito0, também o limite da sequência infinita de frações obtidas pelo método de Herão pode ser visto como um número, a constante de Pitágoras ou √2, ficando este número definido apenas em termos de números racionais. Cantor apresentou uma sequência infinita de números racionais ainda mais simples para a √2:



Outra situação interessante ao trabalharmos com o infinito é a afirmação de que 0,9999... é igual a 1. Considere a figura a seguir:



Este círculo está dividido em 3 partes iguais, de modo que cada fatia corresponde a 1/3 do total. Em notação decimal, esta fração pode ser escrita como uma dízima periódica infinita:

$$ \frac{1}{3}=0,33333333333333... $$

A soma das 3 fatias resulta:

$$ \frac{1}{3}+\frac{1}{3}+\frac{1}{3}=\frac{1+1+1}{3}=\frac{3}{3}=1 $$

Em notação decimal, a soma das dízimas infinitas fornece:

$$ 0,33333333333333...+0,33333333333333...+0,33333333333333...= $$
$$ =0,9999999999999...=1 $$


O limite da dízima periódica infinita 0,99999999999... pode ser visto como um número em si mesmo: o número 1! O estudo sobre o infinito iniciado por Cantor embasou a moderna teoria dos conjuntos, que aprendemos na escola e onde temos:


  • Conjunto dos números naturais, representado pela letra N: 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números inteiros, representado pela letra Z: ..., -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números racionais, representado pela letra Q: para qualquer número que possa ser representado na forma de uma fração (com denominador diferente de zero);
  • Conjunto dos números reais, representado pela letra R e do qual fazem parte os números irracionais, dentre outros.


A representação destes conjuntos é comumente feita por meio dos diagramas de Venn, conforme segue:


A lógica de classes inclui um desdobramento do conceito de cardinalidade no estudo sobre o infinito, quando se afirma que o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números inteiros, que está contido no conjunto dos números racionais, que está contido no conjunto dos números reais, ou seja:

$$ \mathbb{N}\subset \mathbb{Z}\subset \mathbb{Q}\subset \mathbb{R} $$

Os conjuntos dos números naturais, números inteiros e números racionais são todos números transfinitos0. O infinito também se aplica às formas geométricas; exemplo disso é a fita de Möbius, um espaço topológico obtido pela colagem das extremidades de uma fita (após efetuado meia volta em uma delas) que representa um caminho sem fim nem início, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um.

Formigas caminhando sobre uma fita de Möbius, obra de 1.963 do artista M.C. Escher
Esta figura recebe seu nome do matemático alemão August Ferdinand Möbius, quando estudava em 1.858 a teoria geométrica dos poliedros. Esse espaço topológico é semelhante ao símbolo de infinito (∞) tal como é utilizado atualmente, cuja introdução é creditada ao matemático John Wallis, em sua obra De sectionibus conicis, de 1.655. O ∞ também é chamado de lemniscata. Outro espaço topológico curioso é a garrafa de Klein, uma superfície não orientável e sem bordas, obtida pela colagem de duas fitas de Möbius. Foi estudada pelo matemático alemão Felix Christian Klein.

A garrafa de Klein, estudada pelo matemático alemão Felix Klein
Encerramos com estas topologias a breve introdução sobre o infinito, tendo começado pelo entendimento que as antigas civilizações tinham desse conceito até sua racionalização com o tratamento matemático dado por Georg Cantor.