Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

terça-feira, fevereiro 21, 2017

As origens da raiz quadrada

Plaquetas de argila babilônicas, conhecidas pela sigla BM 15285, datadas entre 2.000 e 1.600 a.C., e que apresentam uma série de exercícios matemáticos em língua acadiana. O exercício indicado pela seta azul diz: “O lado do quadrado é igual a 1. Desenhei quatro triângulos nele. Quais suas áreas superficiais?”
Longo e pitoresco foi o avanço e o entendimento do conceito das raízes quadradas ao longo do tempo, até chegar à sua conceituação moderna. Para os babilônios, por exemplo, não existe nenhuma indicação de que classificassem os números entre inteiros, racionais ou irracionais. Todas as evidências arqueológicas encontradas até hoje se resumem a plaquetas de argila cozida contendo problemas com ou sem enunciado e sua solução sem maiores explicações. Exemplo desse tipo de artefato é a plaqueta conhecida pela sigla YBC7289 indicada a seguir:

À esquerda: plaqueta de argila cozida babilônica, conhecida pela sigla YBC7289. À direita: ilustração dessa mesma plaqueta, enfatizando a escrita cuneiforme.
Esta plaqueta provavelmente é um exercício escolar de um estudante (aspirante a escriba). Na parte superior esquerda da plaqueta, observamos o seguinte glifo:

Que na notação matemática babilônica corresponde a 30 e indica o tamanho do lado do quadrado. E na diagonal horizontal, temos dois conjuntos de glifos, sendo o primeiro:


Que corresponde à sequência numérica: 1, 24, 51, 10. E o segundo conjunto de glifos:


Que corresponde à sequência numérica: 42, 25, 35. Já vimos em capítulos anteriores que a primeira sequência numérica equivale a frações, cuja representação moderna é a que se segue:

$$ 1+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60}=\frac{305.470}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 1,41421\overline{296296}... $$

Que é também conhecido por constante de Pitágoras. Este número, multiplicado pelo lado do quadrado (que vale 30), fornece como resultado:

$$ 42,426\overline{38888}... $$

Que corresponde ao tamanho da diagonal do quadrado. A segunda sequência numérica, que também equivale a frações, se expressa da seguinte forma na notação matemática moderna:

$$ \frac{42}{60}+\frac{25}{60\times 60}+\frac{35}{60\times 60\times 60}=\frac{152.735}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 0,707106\overline{481481}... $$

Estes números guardam também uma relação entre si; observe:

$$ 1,41421\overline{296296}...=\frac{1}{0,707106\overline{481481}...} $$

Ou seja, as duas sequências numéricas em grafia cuneiforme são recíprocas. É muito comum na matemática babilônica o uso de frações recíprocas. Não seria um completo absurdo supor que a lição contida na plaqueta de argila executada pelo aprendiz de escriba fosse esta: para qualquer quadrado, o tamanho de suas diagonais é o produto do tamanho do lado pela constante de Pitágoras. Isto porque a plaqueta de argila não possui nenhum enunciado: contém apenas uma figura geométrica com três números. Ao que tudo indica os egípcios também lidavam com esse tipo de cálculo. Um dos poucos exemplos existentes é encontrado no papiro de Berlim 6619, ou simplesmente, papiro de Berlim.


Reprodução do papiro de Berlim 6619
Em um fragmento do documento IV.4 deste papiro, depois da sexta linha, surge o hieróglifo abaixo:


Cuja pronúncia é quenebete e que significa 'quina' ou 'ângulo', seguido da soma de frações unitárias abaixo, conforme a tradição egípcia:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16} $$

O problema exige uma boa dose de interpretação para se tornar compreensível, pois como é de praxe, os egípcios não explicam como se chega ao resultado indicado. Primeiro, vejamos qual é a fração resultante desta soma de frações unitárias:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16}=\frac{16+8+1}{16}=\frac{25}{16} $$

Considerando que a fração 25/16 corresponda à área de um quadrado:



Pergunta-se: quanto vale o lado do quadrado, sabendo-se que sua área é igual a 25/16? Como a área de um quadrado é obtida multiplicando-se um lado por ele mesmo, o hieróglifo quenebete bem que poderia, em termos matemáticos, sugerir a multiplicação de dois lados do quadrado para a obtenção de sua área, que é o mesmo que elevar ao quadrado ou aplicar a potenciação, ou seja:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

O problema agora se resume em encontrar um número que multiplicado por ele mesmo resulte na área do quadrado. Este número corresponderá ao tamanho do lado do quadrado. Assim:

$$ Area=\frac{25}{16}=lado^{2}=lado\times lado $$

Esse resultado, aparentemente, também é uma fração. Então, podemos reescrever a equação acima deste modo:

$$ \frac{25}{16}=lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square } $$

Que número no numerador (indicado pelas cartelas pretas) que multiplicado por ele mesmo resulta 25? E que número no denominador (indicado pelas cartelas brancas) que multiplicado por ele mesmo resulta 16? Para quem estudou potenciação, ou pelo menos se lembra das tabuadas, já sabe a resposta:

$$ lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square }=\frac{5}{4}\times \frac{5}{4}=\frac{25}{16} $$

Portanto, o lado de um quadrado de área 25/16 é igual a 5/4. De fato, a resposta ao problema no papiro é esta:

$$ 1+\frac{1}{4} $$

Na notação fracionária egípcia, que só admitia frações unitárias. Esta soma de frações corresponde a:

$$ 1+\frac{1}{4}=\frac{4+1}{4}=\frac{5}{4} $$

Que é a solução encontrada para o tamanho do lado do quadrado. Os gregos também utilizavam geometria como ferramenta para o cálculo do valor do lado de um quadrado a partir de sua área. O matemático Téon de Alexandria (335 d.C. a 395 d.C.), pai de Hipátia e um grande comentador de obras gregas clássicas, apresenta na obra Almagesto (tratado matemático e astronômico escrito no século II d.C. por Cláudio Ptolomeu), um comentário onde demonstra um método geométrico para o cálculo do lado de um quadrado. O método é o seguinte: considere um quadrado cuja área seja igual a 144, conforme ilustrado abaixo:



Deseja-se descobrir qual o tamanho do lado deste quadrado; para isso, Téon inicia com um 'chute', atribuindo o valor 10 como sendo o tamanho do lado. Já que a área de um quadrado é dada por:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

Então, com o valor estimado, a área do quadrado será:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2}=\left ( 10 \right )^{2}=100 $$

Como a área obtida é menor que a área real, ajusta-se a figura conforme segue:



O lado do quadrado é maior que 10 de uma quantidade indicada por um ponto de interrogação (?). A área que restou do quadrado laranja pode ser segmentado em 3 partes, conforme indicado:



Nesta nova configuração, o retângulo laranja na horizontal possui as seguintes dimensões: 10 de largura e (?) de altura. Por outro lado, o retângulo laranja na vertical possui as dimensões: (?) de largura e 10 de altura. Finalmente, o quadrado verde tem lado igual a (?). As áreas dos dois quadrados (azul e verde) e dos dois retângulos laranjas são assim calculados:

$$ Area\left (quadrado.azul  \right )=10\times 10=10^{2}=100 $$
$$ Area\left (quadrado.verde  \right )=?\times ?=?^{2} $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.horizontal  \right )=10\times ? $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.vertical  \right )=?\times 10 $$

Somando as áreas das 4 figuras geométricas, obtemos o valor da área total, que é 144. Então:

$$ 100+?^{2}+\left ( 10\times ? \right )+\left ( ?\times 10 \right )=144 $$

Agora, vem a pergunta: que número deve ser colocado no lugar do ponto de interrogação para que a soma à esquerda se iguale a 144? Bom, vamos começar substituindo o ponto de interrogação pelo número 1. Teremos:

$$ 100+1^{2}+\left ( 10\times 1 \right )+\left ( 1\times 10 \right ) $$
$$ 100+1+10+10=121 $$

Observe que o valor obtido (121) é menor que 144. Então, vamos aumentar esse valor, substituindo o ponto de interrogação por 2. Obtemos:

$$ 100+2^{2}+\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 10 \right ) $$
$$ 100+4+20+20=144 $$

Ótimo! Agora o número obtido é igual ao valor da área do quadrado laranja original. Então, o lado do quadrado laranja vale: 10 + 2 = 12. E sua área é: 12 × 12 = 144.



Por muito improvável que possa parecer, tudo o que foi apresentado até agora trata de raízes quadradas! Vejamos por que: o cálculo do lado ou da diagonal de um quadrado pode resultar em um número inteiro ou, muito comumente, em um número irracional. Quando o cálculo do lado ou da diagonal do quadrado resultava em um número irracional, já vimos que os povos antigos faziam uso de frações para descrever esses números de modo aproximado, pois era a melhor ferramenta de que dispunham para descrever seu valor. As técnicas e geometrias desenvolvidas pelos babilônios, pelos egípcios e principalmente pelos gregos para o cálculo de lados e diagonais de quadrados foram transmitidas posteriormente para os povos árabes. Diversos matemáticos islâmicos (sendo Al-Khwarizmi o mais notório deles) traduziram esses textos matemáticos para o árabe. Por sua vez, esses textos árabes foram levados para a Europa através da península ibérica durante o califado Omíada e convertidos posteriormente para o latim por diversos tradutores, entre os quais destacam-se: João de Sevilha (também conhecido como Johannes Hispaniensis), Domingo Gundisalvo e Gerardo de Cremona, num período compreendido entre 1.135 e 1.162 d.C.; muitas dessas traduções foram realizadas em Toledo, na Espanha, que naquela época era um importante centro cultural. Pois bem: nos textos matemáticos árabes, o termo 'lado do quadrado' foi traduzido para o latim em duas variações: a correta latus quadratum (onde latus é lado em português) e a equivocada radix quadratum, em que radix significa raiz em português. A palavra latus foi sendo gradualmente substituída pela letra l, conforme o modelo abaixo:


E a palavra radix também foi sendo gradualmente substituída pela letra R, conforme abaixo:


Fato é que, apesar de equivocada, a tradução do termo em árabe 'lado do quadrado' para o latim radix quadratum prevaleceu sobre a tradução latus quadratum. Já o símbolo moderno de raiz (√) surge pela primeira vez em 1.525 na obra Die Coss, do matemático alemão Christoff Rudolff. O matemático suíço Leonhard Euler afirma em sua obra Institutiones calculi differentialis, de 1.755, o seguinte: no lugar da letra r, inicialmente indicada para radix, agora passou-se para o uso comum desta forma distorcida de √. É por isso que até hoje dizemos raiz quadrada para aquilo que antigamente estava relacionado ao cálculo do lado do quadrado a partir de sua área ou da diagonal do quadrado a partir de seus lados.


Página do “Die Coss”, de Christoff Rudolff. Observe os símbolos da raiz quadrada ao longo de todo o texto. O termo 'quadrat wurtzel', que aparece destacado em vermelho ao final da primeira linha do texto, significa 'raiz quadrada' em alemão.
Com esse conceito em mente, fica mais fácil entender o significado do que é raiz quadrada. Vejamos através de um exemplo: dado um quadrado de área 42, quanto vale o seu lado?



Sabemos que a área dessa figura geométrica é igual ao lado elevado ao quadrado:

$$ Area=lado^{2} $$

Que número elevado ao quadrado resulta 42? Se escolhermos o número 6, teremos:

$$ 6^{2}=6\times 6=36 $$

O resultado obtido (36) é menor que a área do quadrado (42). Se adotarmos o valor 7 para o lado do quadrado, teremos:

$$ 7^{2}=7\times 7=49 $$

Agora o resultado obtido (49) é maior que a área do quadrado (42). Portanto, o tamanho do lado do quadrado está entre 6 e 7, ou seja, não é um número inteiro. Em latim, diríamos: radix quadratum 42 aequalis, ou seja, o lado do quadrado [de área] 42 é igual a:

$$ lado=\sqrt{42} $$

Onde √42 (lê-se: raiz quadrada de 42) é a representação matemática moderna para o tamanho do lado do quadrado, um número cujo valor está entre 6 e 7 e que para babilônios, egípcios, gregos e outras civilizações antigas tinha seu valor representado por uma fração! Se fosse um número racional, a fração seria uma representação exata desse número; se fosse irracional, a fração representaria um valor aproximado.



Se a √42 é um número cujo valor é maior que 6 e menor que 7, então em notação decimal moderna, que número é esse? Herão de Alexandria (10 d.C. a 80 d.C.) foi um matemático e mecânico grego que criou um método poderoso para a obtenção da raiz quadrada de qualquer número inteiro que não seja um quadrado perfeito. Por exemplo, o número 9 é um quadrado perfeito, pois 3 x 3 = 9, assim como 64 é outro quadrado perfeito, pois 8 x 8 = 64. Para números que sejam quadrados perfeitos, ou seja, que são o produto de um número inteiro multiplicado por ele mesmo, o método demonstrado por Herão não se aplica! O método funciona assim: se o número que estamos procurando está entre 6 e 7, vamos tirar a média entre estes dois valores:

$$ Media=\frac{6+7}{2}=\frac{13}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela fração 13/2, resultando:

$$ \frac{42}{\frac{13}{2}}=\frac{42\times 2}{13}=\frac{84}{13} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (84/13) à fração inicial (13/2):

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 13 (que é 26), vem:

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13}=\frac{169+168}{26}=\frac{337}{26} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (337/26), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{337}{26}}{2}=\frac{337}{26}\times \frac{1}{2}=\frac{337}{52} $$

A fração obtida (337/52) é a primeira aproximação para √42, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{337}{52}=6,4807\overline{6923}... $$

Se quisermos aumentar essa precisão (já que uma fração pode sempre se aproximar cada vez mais do valor de um número irracional, sem, contudo, representar seu valor exato), repetimos o processo. Assim, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela nova fração (337/52), resultando:

$$ \frac{42}{\frac{337}{52}}=\frac{42\times 52}{337}=\frac{2.184}{337} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (2.184/337) à fração inicial (337/52):

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 52 e 337 (que é 17.524), vem:

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337}=\frac{113.569+113.568}{17.524}=\frac{227.137}{17.524} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (227.137/17.524), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{227.137}{17.524}}{2}=\frac{227.137}{17.524}\times \frac{1}{2}=\frac{227.137}{35.048} $$

A fração resultante (227.137/35.048) é o novo valor de √42, mais refinado que aquele obtido com a fração (337/52). O método de Herão pode prosseguir indefinidamente, quanto maior for a precisão desejada. Desse modo, o número irracional procurado, em notação decimal, será:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{227.137}{35.048}=6,4807406984\overline{7066}... $$

Observe a eficiência deste método: com apenas uma rodada foi alcançada uma precisão de 4 casas decimais e com duas rodadas, alcançou-se 9 casas decimais de precisão! Vejamos mais um exemplo: calcule a diagonal de um quadrado de lado igual a 1.



A diagonal divide o quadrado em dois triângulos retângulos. Como já apresentado no capítulo anterior, o Teorema de Pitágoras estabelece que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Adaptando para o quadrado, podemos afirmar que o quadrado da diagonal é igual à soma dos quadrados dos lados. Ou seja:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Substituindo, temos:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=1+1=2 $$

Pergunta: que número elevado ao quadrado resulta 2? Também já foi visto no capítulo anterior que não existe um número inteiro que multiplicado por ele mesmo, ou elevado ao quadrado, resulte 2, tampouco se trata de um número racional (ou seja, obtido a partir de uma razão). Logo, esse é um número irracional. Sabendo-se que:

$$ diagonal^{2}=diagonal\times diagonal $$

Se aplicarmos a raiz quadrada em ambos os termos da igualdade para mantê-la inalterada, vem:

$$ diagonal^{2}=2 $$
$$ \sqrt{diagonal^{2}}=\sqrt{2} $$

A raiz quadrada da diagonal elevada ao quadrado equivale à própria diagonal, que por sua vez é igual à raiz quadrada de 2, uma notação matemática que representa o número irracional que é a medida da diagonal do quadrado de lado igual a 1. Assim, a diagonal do quadrado [de lado] 1 é igual a:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$

Em notação decimal, que número é √2? Como esse número é maior que 1 e menor que 2, vamos aplicar o método de Herão para descobrir seu valor aproximado na forma fracionária. Para isso, vamos estimar um valor inicial para esse número, tirando a média entre 1 e 2:

$$ Media=\frac{1+2}{2}=\frac{3}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela fração 3/2, resultando:

$$ \frac{2}{\frac{3}{2}}=\frac{2\times 2}{3}=\frac{4}{3} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (4/3) à fração inicial (3/2):

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 3 (que é 6), vem:

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2}=\frac{8+9}{6}=\frac{17}{6} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (17/6), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{17}{6}}{2}=\frac{17}{6}\times \frac{1}{2}=\frac{17}{12} $$

A fração obtida (17/12) é a primeira aproximação para √2, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{17}{12}=1,41\overline{6666}... $$

Repetindo o processo para melhorar a precisão, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela nova fração (17/12), resultando:

$$ \frac{2}{\frac{17}{12}}=\frac{2\times 12}{17}=\frac{24}{17} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (24/17) à fração inicial (17/12):

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 12 e 17 (que é 204), vem:

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17}=\frac{289=288}{204}=\frac{577}{204} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (577/204), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{577}{204}}{2}=\frac{577}{204}\times \frac{1}{2}=\frac{577}{408} $$

A fração resultante (577/408) é o novo valor de √2, mais refinado que o obtido com a fração (17/12). Desse modo, temos:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{577}{408}=1,41421\overline{5686}... $$

Observe: √2 é a notação matemática moderna para a constante de Pitágoras, que é um resultado muito próximo daquele apresentado pelo aprendiz de escriba babilônio em sua plaqueta de argila. Foram demonstrados com estes dois exemplos como calcular o tamanho do lado ou o tamanho da diagonal de um quadrado, e que este tamanho, ou magnitude, resultou em um número irracional, que por sua vez é representado na notação matemática moderna pelo símbolo de raiz (√), e que o número contido no símbolo de raiz é o quadrado do número irracional. De fato:

$$ \left ( 6,4807406984\overline{7066}... \right )^{2}\cong 42 $$
$$ 6,4807406984\overline{7066}... \cong \sqrt{42} $$

E:

$$ \left ( 1,41421\overline{5686}... \right )^{2}\cong 2 $$
$$ 1,41421\overline{5686}... \cong \sqrt{2} $$

Se Herão de Alexandria demonstrou um método aritmético para calcular raízes quadradas de números inteiros que não sejam quadrados perfeitos, outro grego bem antes dele – Teodoro de Cirene – desenvolveu um método geométrico para obter magnitudes comensuráveis ou incomensuráveis (ou seja, números inteiros ou irracionais) a partir de uma magnitude comensurável. Teodoro viveu no século V a.C., tendo sido aluno de Protágoras e professor de Platão e Teeteto. Nenhum texto de Teodoro sobreviveu aos nossos dias e a referência que temos dessa técnica aparece no Diálogos de Platão – Teeteto de Crátila. Neste manuscrito, em que Sócrates debate com Teeteto (aluno de Teodoro) sobre o que seria o conhecimento, o diálogo se desenrola nestes termos: 

[...]
Teeteto - Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu homônimo.
Sócrates - Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto - A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa única, que serviria para designar todas.
Sócrates- E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto - Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates - Podes falar.
Teeteto - Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela multi-plicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os designamos pelos nomes de quadrado e de equilátero.
Sócrates- Muito bem.
Teeteto - Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates - Ótimo! E depois?
Teeteto - Todas as linhas que formam um quadrado de número plano eqüilátero, defini-mos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes, por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas superfícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.
Sócrates - Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser acoimado de falso testemunho.
[...]


O método geométrico é o seguinte: comece desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1, conforme indicado abaixo.


Pelo teorema de Pitágoras, sabemos que:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Assim:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=2 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$


Sem novidades, já vimos este resultado algumas vezes. Agora, a partir da diagonal, vamos construir outro triângulo retângulo, com um de seus lados com magnitude igual a 1 e o outro lado (tomando como referência a diagonal) com magnitude igual a √2:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{2} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{2}\times \sqrt{2} \right )=1+\sqrt{2^{2}}=1+2=3 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{3} $$


Repetindo este procedimento, montamos um novo triângulo equilátero, em que um dos lados tenha magnitude igual a 1 e o outro lado magnitude igual a √3:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{3} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{3}\times \sqrt{3} \right )=1+\sqrt{3^{2}}=1+3=4 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{4}=\sqrt{2\times 2}=2 $$


E assim sucessivamente, construindo triângulos retângulos em que um dos lados tem sempre magnitude igual a 1 e o outro lado tem magnitude igual à diagonal do triângulo anterior, vamos montando uma espiral, conforme abaixo:


Esta espiral vai até √17, que é o exemplo que Teodoro apresentou a seu aluno Teeteto e que aparece nos diálogos de Platão. De fato, esta espiral pode prosseguir indefinidamente, como mostra a figura abaixo:


Outra curiosidade é que, quanto mais voltas a espiral dá, mais a distância entre duas voltas consecutivas se aproxima do número π, um número irracional que também surge da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo!


Esta espiral é mais conhecida pelos nomes: Espiral de Raiz Quadrada ou Espiral de Teodoro.


Aprendemos na escola que uma fração não deve conter um número irracional, como é o caso das raízes quadradas, onde o radicando, ou seja, o número dentro do radical (√) não seja um quadrado perfeito. Nestes casos, aprendemos a racionalizar o denominador para eliminar o número irracional dele. Sendo assim, considere a fração:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}} $$

Como ela possui um número irracional no denominador (a já conhecida constante de Pitágoras), torna-se necessário racionalizar o denominador. Isto é feito multiplicando-se a fração 1/√2 por:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}} $$

A fração √2/√2 é igual a 1; logo, multiplicar qualquer número (neste caso, a fração 1/√2) por 1 não altera o seu resultado. Temos:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}}=\frac{1\times \sqrt{2}}{\sqrt{2}\times \sqrt{2}}=\frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2^{2}}}=\frac{\sqrt{2}}{2} $$

Significa que a fração resultante (√2/2) equivale à fração original (1/√2). Mas afinal, se ambas as frações são equivalentes, porque gastar energia racionalizando o denominador? Ora, já sabemos que os gregos eram geômetras por excelência e que as magnitudes incomensuráveis para eles (ou números irracionais) geravam uma série de complicações matemáticas e filosóficas. Imagine que não seria de bom tom para um geômetra grego ter um segmento de reta de magnitude igual a 1 e querer dividí-lo por √2, um valor que não podia ser corretamente mensurado com régua e compasso! Então, o que eles faziam? Racionalizavam o denominador, ou seja, transformavam o divisor em um número racional que pudesse ser traduzido por um segmento de reta cuja magnitude fosse mensurável. Neste caso, para obterem geometricamente a magnitude da fração resultante (√2/2), eles começavam (por exemplo) desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1:


Pelo teorema de Pitágoras, já sabemos que a hipotenusa deste triângulo vale √2. Agora, com régua e compasso somos capazes de dividir a hipotenusa do triângulo à metade, que é o mesmo que dividí-la por 2. Mesmo que a magnitude da hipotenusa seja incomensurável (ou seja, possua uma medida irracional), e que ao dividí-la ao meio geramos outros dois segmentos com magnitudes igualmente incomensuráveis, o resultado agora é geometricamente possível. Com um compasso, coloque a ponta seca no ponto A e abrindo-o até C, trace um arco. Siga o mesmo procedimento com a ponta seca em B e abertura até o ponto C, desenhando outro arco:


Por fim, trace uma reta passando pelos cruzamentos entre os dois arcos:


O segmento AB, ou seja, a hipotenusa do triângulo retângulo, com magnitude incomensurável igual a √2, está agora dividida ao meio. Cada metade, portanto, vale √2/2:


A fração √2/2, equivalente a 1/√2, fornece o valor procurado e é possível de se obter com régua e compasso, o que convinha muito aos valorosos geômetras gregos. E é por isso que até hoje seguimos o exemplo deles, racionalizando o denominador, ainda que não nos seja exigida sua prova geométrica.


Assim como a potenciação, a radiciação também possui algumas propriedades básicas: uma delas diz que a raiz não se modifica quando multiplicamos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Observe:

$$ \sqrt[3]{7^{2}}=\sqrt[3\times 2]{7^{2\times 2}}=\sqrt[6]{7^{4}} $$

De modo análogo, a raiz não se modifica quando dividimos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Assim:

$$ \sqrt[12]{56^{8}}=\sqrt[12/4]{56^{8/4}}=\sqrt[3]{56^{2}} $$

Outra propriedade afirma que o produto de radicais de mesmo índice é igual à raiz do produto dos radicandos. Veja:

$$ \sqrt{3}\times \sqrt{11}=\sqrt{3\times 11}=\sqrt{33} $$

Analogamente, uma raiz com um índice qualquer, cujo radicando é um quociente, equivale ao quociente das raízes de mesmo índice dos radicandos:

$$ \sqrt[4]{\frac{5}{8}}=\frac{\sqrt[4]{5}}{\sqrt[4]{8}} $$

Outra propriedade afirma que uma raiz elevada a uma potência qualquer equivale à mesma raiz com o radicando elevado a essa potência:

$$ \left ( \sqrt[3]{5} \right )^{4}=\sqrt[3]{5^{4}} $$

Finalmente, uma raiz que seja ao mesmo tempo o radicando de outra raiz equivale a uma raiz cujo índice é o produto dos índices das raízes originais:

$$ \sqrt[3]{\sqrt[5]{13}}=\sqrt[3\times 5]{13}=\sqrt[15]{13} $$

Existe também o caso em que um número multiplicando uma raiz equivale a transformar esse número no radicando, desde que elevado a uma potência igual ao índice dessa raiz:

$$ 2\times \sqrt[3]{5}=\sqrt[3]{5\times 2^{3}} $$

Outro exemplo, agora com frações:

$$ \frac{1}{6}\times \sqrt[4]{7}=\sqrt[4]{7\times \left ( \frac{1}{6} \right )^{4}}=\sqrt[4]{7\times \frac{1}{6^{4}}} $$

Muito bem! Tivemos um panorama geral sobre a origem das raízes quadradas e de como esse conceito matemático evoluiu até chegar ao símbolo de √ dos nossos dias, bem como obter um valor aproximado por meio de frações quando geram um número irracional, ou desenhá-las através da geometria dos antigos gregos utilizando-se de magnitudes comensuráveis e incomensuráveis, finalizando com uma rápida abordagem sobre as propriedades da radiciação. Mais uma vez, evidencia-se que o uso da geometria e da aritmética com frações foram indispensáveis no entendimento desse conceito matemático na antiguidade e podem ainda hoje ser de grande valia como ferramentas de ensino. E o próximo tema a ser abordado é muito interessante, pois gerou diversas controvérsias no mundo acadêmico matemático: os números negativos.

quarta-feira, fevereiro 15, 2017

Os números irracionais

Estereograma ou olho mágico, contendo o número pi (π). Para enxergar o mais popular entre os números irracionais, é preciso apontar e fixar os olhos para o centro da imagem, sem focá-la. Estas imagens contendo figuras ocultas fizeram muito sucesso no Brasil nos anos de 1990.
Denomina-se irracional qualquer número que não possa ser representado nem por uma razão entre números inteiros, nem por um número decimal finito, nem com repetição periódica e infinita de um ou mais algarismos.


Vejamos o que tudo isso significa. Considere, por exemplo, a razão 5/8 e o respectivo número decimal que a representa:

$$ \frac{5}{8}=0,625 $$

O número decimal 0,625 é finito, pois com apenas 4 algarismos ele é capaz de representar, em termos absolutos, a fração 5/8. Considere a seguir a razão 17/7 e seu correspondente número decimal:

$$ \frac{17}{7}=2,428571428571... $$

Neste caso, o número decimal 2,428571... é infinito e periódico, pois a representação não inteira, denominada período (e cujo valor é 428571), repete-se indefinidamente; significa que a fração 17/7 não pode ser representada, em termos absolutos, por uma quantidade finita de algarismos. Dá-se a essa repetição o nome de dízima periódica. Outra propriedade dos números decimais racionais é que podemos obter uma fração, ou geratriz, de sua dízima periódica. No caso do número 2,428571, para obter-se a geratriz da dízima, montamos uma fração onde o numerador é o período e o denominador é um número inteiro composto apenas do algarismo 9, tantos quantos forem os algarismos do período. Logo, a geratriz será:

$$ \frac{428571}{999999}=0,428571428571... $$

A dízima do número decimal equivalente à fração 17/7 é dita simples porque o período repete-se desde a primeira casa decimal após a vírgula. Há casos em que a dízima pode ser composta, como no caso da fração 23/42:

$$ \frac{23}{42}=0,5476190476190... $$

Observe: antes do período 476190 há o número 5, que não se repete. Para estes casos, é possível obter-se sua geratriz, que também é uma fração, mas aqui o numerador é a parte não periódica seguida do período, diminuídos da parte não periódica; e o denominador será um número composto inicialmente de tantos algarismos 9 quantos forem os algarismos da parte periódica, seguido de tantos algarismos 0 quantos forem os algarismos da parte não periódica. A fração geratriz resultante neste caso será:

$$ \frac{5476190-5}{9999990}=\frac{5476185}{9999990}=0,5476190476190... $$



Na verdade, os números irracionais são conhecidos e manipulados desde o tempo dos babilônios, mas foram os gregos que provaram sua existência de um modo peculiar. Já vimos no capítulo Os notáveis números primos, no segundo volume desta série, que para os pitagóricos "tudo era número" e todo número era inteiro; acreditavam também que os números inteiros e suas razões fossem capazes de descrever toda a geometria do mundo, uma vez que afirmavam que deveria existir uma unidade (mônada) suficientemente pequena e indivisível que coubesse uniformemente em um segmento, qualquer que fosse sua magnitude. Mas, ironicamente, atribui-se ao pitagórico Hipaso de Metaponto (nascido por volta de 500 a.C.) a primazia por provar a existência dos números irracionais enquanto estudava as relações matemáticas entre os lados e a hipotenusa de um triângulo retângulo, conhecido como teorema de Pitágoras. Uma forma bastante simples de demonstrar o resultado deste teorema pode ser visto a seguir; considere os triângulos retângulos ABC, BDA e BCD, proporcionais entre si por semelhança:



Sendo semelhantes, podemos considerar as seguintes proporções entre seus respectivos lados e hipotenusas:

$$ \frac{AB}{AC}=\frac{AD}{AB}\Rightarrow AB\times AB=AC\times AD\Rightarrow AB^{2}=AC\times AD $$

Observe: o lado menor AB do triângulo ABC está para sua hipotenusa AC assim como o lado menor AD do triângulo BDA está para sua hipotenusa AB. E também:

$$ \frac{BC}{AC}=\frac{DC}{BC}\Rightarrow BC\times BC=AC\times DC\Rightarrow BC^{2}=AC\times DC $$

De modo análogo, o lado maior BC do triângulo ABC está para sua hipotenusa AC assim como o lado maior DC do triângulo BCD está para sua hipotenusa BC. Somando os dois resultados parciais, temos:

$$ AB^{2}+BC^{2}=\left ( AC\times AD\right )+\left ( AC\times DC \right ) $$

Colocando o lado AC em evidência (pela regra distributiva) obtemos a expressão abaixo:

$$ AB^{2}+BC^{2}=AC\times \left ( AD + DC \right ) $$

Note que a soma dos lados AD (do triângulo BDA) e DC (do triângulo BCD) equivale à hipotenusa AC do triângulo ABC. Então:

$$ AB^{2}+BC^{2}=AC\times AC $$
$$ AB^{2}+BC^{2}=AC^{2} $$

Este é o resultado do famoso teorema de Pitágoras, que estabelece que a soma dos quadrados dos lados de um triângulo retângulo é igual ao quadrado de sua hipotenusa. Considere agora o triângulo retângulo a seguir:



Tendo o lado menor deste triângulo magnitude 3 e o lado maior magnitude 4, qual será a magnitude de sua hipotenusa? Pelo teorema de Pitágoras, temos:

$$ 3^{2}+4^{2}=?^{2}\Rightarrow 9+16=?^{2}\Rightarrow 25=?\times ? $$

Que número multiplicado por ele mesmo resulta 25? Para quem se lembra das tabuadas, saberá que o número 5 multiplicado por ele mesmo resulta 25. Portanto, a hipotenusa tem uma magnitude igual a 5. Até aqui, sem problemas: todos os lados deste triângulo são compostos por números inteiros, bem ao gosto dos pitagóricos. Mas vamos imaginar o que deve ter acontecido quando Hipaso decidiu desenhar o seguinte triângulo retângulo:



Seguindo o mesmo procedimento que o adotado no exemplo anterior para calcular o tamanho da hipotenusa pelo teorema de Pitágoras, temos:

$$ 1^{2}+1^{2}=?^{2}\Rightarrow 1+1=?^{2}\Rightarrow 2=?\times ? $$

Que número inteiro multiplicado por ele mesmo resulta 2? Como não há um número inteiro que multiplicado por ele mesmo resulte 2, então Hipaso conclui que esse número será uma razão entre dois inteiros. Assim, dividindo ambos os termos pelo produto 2×?, teremos:

$$ \frac{2}{2\times ?}=\frac{?\times ?}{2\times ?} $$

Simplificando, chegamos a:

$$ \frac{1}{?}=\frac{?}{2} $$

Este resultado nos leva a uma contradição. Observe: como temos uma igualdade entre duas razões, significa que ambas devem ter o mesmo valor. Para que tenham o mesmo valor, a única possibilidade, segundo o ponto de vista dos antigos gregos, é que o ponto de interrogação valha, ao mesmo tempo, 2 no denominador e 1 no numerador, o que é impossível! Ou seja, a hipotenusa desse quadrado não pode ter uma magnitude com dois valores diferentes! Conclusão de Hipaso: não existe um número inteiro nem um número racional que represente a magnitude da hipotenusa de um triângulo retângulo cujos lados tenham magnitude igual a 1.



Um número irracional pode ser representado parcialmente por frações ou por números decimais. No caso do número irracional que equivale à medida da hipotenusa do triângulo retângulo de lados iguais a 1, também chamado constante de Pitágoras, temos:

$$ ?^{2}=2\Rightarrow ?\times ?=2 \Rightarrow \frac{?\times ?}{?}=\frac{2}{?}\Rightarrow ?=\frac{2}{?} $$

Os egípcios nos fariam a seguinte pergunta: "Que número, ao dividir o 2, resulta nele mesmo?". Se substituirmos ? pelo número 1, obtemos:

$$ 1=\frac{2}{1}\Rightarrow 1=2 $$

O que não é possível, pois o resultado é maior que o número escolhido, e não igual. Por outro lado, ao substituirmos ? pelo número 2, obtemos:

$$ 2=\frac{2}{2}\Rightarrow 2=1 $$

O que também não é possível, pois o resultado agora é menor que o número escolhido, e não igual. Não é preciso muito esforço para perceber que o número procurado situa-se entre 1 e 2. Como não sabemos o seu valor, somos forçados a estimá-lo. Uma maneira de fazer isso é utilizando uma reta e posicionando os números nela, como se tivéssemos uma régua:



Uma boa estimativa inicial para o número procurado pode ser dada observando-se os resultados da expressão original: se ao escolhermos o número 1 o resultado foi 2, e ao escolher o número 2 o resultado foi 1, então o número procurado deve estar próximo da média entre 1 e 2. A média entre dois números é obtida somando-os e dividindo a soma por 2:

$$ \frac{1+2}{2}=\frac{3}{2} $$

Numa régua, a razão 3/2 será posicionada bem no meio entre os números 1 e 2:



Estimada a razão cujo valor fique entre esse intervalo, obtemos na equação original o seguinte resultado:

$$ \frac{3}{2}=\frac{2}{\frac{3}{2}}\Rightarrow \frac{3}{2}=\frac{2\times 2}{\frac{3}{2}\times 2}\Rightarrow \frac{3}{2}=\frac{4}{3} $$

Observe que substituindo o ponto de interrogação na igualdade acima, obtemos uma desigualdade, pois que 3/2 não é igual a 4/3, ao contrário, 3/2 é maior que 4/3, o que indica que superestimamos o valor da incógnita. Então vamos escolher um segundo valor para a incógnita que seja menor que 3/2, por exemplo, 7/5. Na régua, a razão 7/5 será posicionada proporcionalmente entre o número 1 e a fração 3/2:



Agora substituímos o novo valor na expressão original:

$$ \frac{7}{5}=\frac{2}{\frac{7}{5}}\Rightarrow \frac{7}{5}=\frac{2\times 5}{\frac{7}{5}\times 5}\Rightarrow \frac{7}{5}=\frac{10}{7} $$

Desta vez, a substituição do ponto de interrogação pela fração 7/5 forneceu, como resultado, a fração 10/7, que é maior que 7/5, o que indica que subestimamos o valor da incógnita. Ou seja, o número irracional procurado está entre 3/2 e 7/5. Uma estimativa pode ser obtida tirando-se a média entre estas duas frações:

$$ \frac{\frac{3}{2}+\frac{7}{5}}{2}=\frac{\frac{15+14}{10}}{2}=\frac{\frac{29}{10}}{2}=\frac{\frac{29}{10}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{29}{20}}{1}=\frac{29}{20} $$

Na régua, a razão 29/20 será posicionada bem no meio entre as frações 7/5 e 3/2:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{29}{20}=\frac{2}{\frac{29}{20}}\Rightarrow \frac{29}{20}=\frac{2\times 20}{\frac{29}{20}\times 20}\Rightarrow \frac{29}{20}=\frac{40}{29} $$

A fração 40/29 é menor que a fração 29/20, o que significa que a fração 29/20 está superestimada, mas ela é menor que 3/2 e maior que 7/5; assim, o valor procurado está entre 7/5 e 29/20. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{7}{5}+\frac{29}{20}}{2}=\frac{\frac{28+29}{20}}{2}=\frac{\frac{57}{20}}{2}=\frac{\frac{57}{20}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{57}{40}}{1}=\frac{57}{40} $$

Na régua, a razão 57/40 será posicionada bem no meio entre as frações 7/5 e 29/20:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{57}{40}=\frac{2}{\frac{57}{40}}=\frac{2\times 40}{\frac{57}{40}\times 40}=\frac{80}{57} $$

A fração 80/57 é menor que a fração 57/40, o que significa que a fração 57/40 está superestimada, sendo maior que 7/5 e menor que 29/20; portanto, o valor procurado está entre 7/5 e 57/40. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{7}{5}+\frac{57}{40}}{2}=\frac{\frac{56+57}{40}}{2}=\frac{\frac{113}{40}}{2}=\frac{\frac{113}{40}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{113}{80}}{1}=\frac{113}{80} $$

Na régua, a razão 113/80 será posicionada bem no meio entre as frações 7/5 e 57/40:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{113}{80}=\frac{2}{\frac{113}{80}}=\frac{2\times 80}{\frac{113}{80}\times 80}=\frac{160}{113} $$

A fração 160/113 é maior que a fração 113/80, o que significa que a fração 113/80 está subestimada, sendo maior que 7/5 e menor que 57/40; portanto, o valor procurado está entre 113/80 e 57/40. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{113}{80}+\frac{57}{40}}{2}=\frac{\frac{113+114}{80}}{2}=\frac{\frac{227}{80}}{2}=\frac{\frac{227}{80}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{227}{160}}{1}=\frac{227}{160} $$

Na régua (ampliada), a razão 227/160 será posicionada bem no meio entre as frações 113/80 e 57/40:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{227}{160}=\frac{2}{\frac{227}{160}}=\frac{2\times 160}{\frac{227}{160}\times 160}=\frac{320}{227} $$

A fração 320/227 é menor que a fração 227/160, o que significa que a fração 227/160 está superestimada, sendo maior que 113/80 e menor que 57/40; portanto, o valor procurado está entre 113/80 e 227/160. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{113}{80}+\frac{227}{160}}{2}=\frac{\frac{226+227}{160}}{2}=\frac{\frac{453}{160}}{2}=\frac{\frac{453}{160}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{453}{320}}{1}=\frac{453}{320} $$

Na régua, a razão 453/320 será posicionada bem no meio entre as frações 113/80 e 227/160:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{453}{320}=\frac{2}{\frac{453}{320}}=\frac{2\times 320}{\frac{453}{320}\times 320}=\frac{640}{453} $$

A fração 453/320 é maior que a fração 640/453, o que significa que a fração 453/320 está superestimada, sendo maior que 113/80 e menor que 227/160; portanto, o valor procurado está entre 113/80 e 453/320. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{113}{80}+\frac{453}{320}}{2}=\frac{\frac{452+453}{320}}{2}=\frac{\frac{905}{320}}{2}=\frac{\frac{905}{320}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{905}{640}}{1}=\frac{905}{640} $$

Na régua, a razão 905/640 será posicionada bem no meio entre as frações 113/80 e 453/320:



Uma vez obtida a nova estimativa, substitui-se o ponto de interrogação da equação original pela nova fração média:

$$ \frac{905}{640}=\frac{2}{\frac{905}{640}}=\frac{2\times 640}{\frac{905}{640}\times 640}=\frac{1280}{905} $$

A fração 905/640 é menor que a fração 1280/905, o que significa que a fração 905/640 está subestimada. Bom, como um número irracional não pode ser integralmente expresso por uma razão, é de se esperar que o processo acima continue indefinidamente nesse vai-e-vem entre fração original e fração resultante. Significa dizer que as frações obtidas a cada iteração aproximam-se sempre e cada vez mais do número irracional procurado, mas nunca fornecem seu valor exato. De fato, a fração 905/640 corresponde, em notação decimal, a:

$$ 1,414\overline{0625} $$

Os décimos sobrescritos com um travessão representam o erro de aproximação da fração em relação ao valor correto da constante de Pitágoras, ou vale dizer que somente os quatro primeiros décimos representam corretamente o valor do número irracional que corresponde à magnitude da hipotenusa. Às magnitudes incomensuráveis, os helênicos davam o nome de alógos, cujo significado é 'inexpressivo'. Hipaso, por seu lado, não foi louvado por seus esforços: conforme reza uma lenda, ele teria feito essa descoberta em alto-mar, tendo sido atirado para fora do barco por seus companheiros pitagóricos por ter produzido um elemento no universo "que negava a doutrina de que todos os fenômenos do mundo tangível pudessem ser reduzidos a números inteiros e suas razões". Outra lenda afirma que Hipaso fora expulso da escola de Pitágoras por sua revelação. Independentemente do desfecho, o fato é que esta descoberta tornou-se um sério problema para os matemáticos pitagóricos, uma vez que ela estraçalhou o pressuposto de que número e geometria eram entes inseparáveis – um pilar dessa filosofia. Muito antes dos gregos, porém, os babilônios já lidavam com números irracionais e não se sentiam nada incomodados com eles. Existe uma plaqueta de argila cozida, conhecida pelo código YBC7289, que apresenta o mesmo problema estudado por Hipaso, mas utilizando um quadrado de lados iguais a 1; a diagonal desse quadrado divide essa figura geométrica em dois triângulos retângulos iguais, e portanto o que é diagonal do quadrado transforma-se em hipotenusa dos triângulos, cujo valor é o mesmo número irracional que atormentou o pobre Hipaso.


A plaqueta de argila YBC7289
Sobre a diagonal do quadrado desenhado nessa plaqueta (linha horizontal), existe um número em caligrafia cuneiforme, reproduzida a seguir:



Já vimos estes símbolos no capítulo Operações aritméticas com frações, do segundo volume desta série. Relembremos o que representam os dois glifos cuneiformes do esquema anterior:



Estes glifos estão agrupados em 4 conjuntos numéricos, cujos valores absolutos são 1, 24, 51 e 10. Em função da resposta apresentada na placa de argila, estes números equivalem a frações, cuja representação moderna é a que se segue:

$$ 1+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60}=\frac{305.470}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 1,41421\overline{296296}... $$

A precisão obtida pelos babilônios é de 5 casas decimais com suas frações sexagesimais (na verdade 6 casas decimais se houver arredondamento na sexta casa ao passar de 2 para 3). Outra boa aproximação para esse número irracional aparece em antigos textos matemáticos hindus, os Sulbasutras (escritos entre 800 e 200 a.C.), em que o mesmo problema é apresentado nestes termos:

Aumentar o comprimento [do lado] por sua terça parte e esta terça parte pela sua própria quarta parte menos a trigésima-quarta parte dessa quarta parte.


Em termos matemáticos essa frase transcreve-se para:

$$ 1+\frac{1}{3}+\frac{1}{3\times 4}-\frac{1}{3\times 4\times 34}=\frac{577}{408} $$

A soma de frações dos hindus equivale, em números decimais, a:

$$ 1,41421\overline{568627}... $$

A precisão alcançada para este número irracional é de 5 casas decimais, uma casa a menos que o resultado dos babilônios. Mesmo que outras civilizações antigas tenham tido contato com números irracionais e calculado suas próprias frações para representá-los parcialmente, foram os gregos que mais sentiram o impacto pela 'descoberta' das razões incomensuráveis, em parte por conta de outro problema que enfrentavam: a relação entre o discreto e o contínuo. Zenão de Eléia (~490/485 a.C. a ~430 a.C.) foi um filósofo pré-socrático que abordou esse assunto por meio de paradoxos.


Busto de Zenão de Eléia
São de Zenão as curiosas definições que envolvem conceitos como o ilimitado e o uso de formas geométricas para os seguintes atributos de Deus, numa época em que filosofia e ciência eram uma só coisa:

“É impossível que algo surja; pois teria que surgir ou do igual ou do desigual. Ambas as coisas são, porém, impossíveis; pois não se pode atribuir, ao igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido, já que os iguais devem ter entre si as mesmas determinações. Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais fraco se originasse o mais forte, ou do menor o maior, ou do pior o melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do melhor, originar-se-ia o Não-Ser do Ser, o que é impossível; portanto, Deus é eterno.”

“Se Deus é o mais poderoso de tudo, então lhe é próprio que seja Um; pois, na medida em que dele houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder sobre eles; mas enquanto lhe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, portanto, houvesse mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos um em face do outro; não seriam, por conseguinte, deuses; pois faz parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o igual não é nem pior nem melhor que o igual – ou não se distingue dele. Se, portanto, Deus é, e se ele é de tal natureza, então só há um Deus; não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais deuses.”

“Sendo Um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda a parte, os outros sentimentos, pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam uma sobre a outra, o que é impossível. Como Deus é em toda parte igual, possui ele a forma esférica; pois não é aqui assim, e em outra parte de outro modo, mas em toda parte igual.”

“O Um, portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece nem com o Não-Ser nem com o Múltiplo. Em tudo isso, Deus se comporta assim; pois ele é eterno e uno; idêntico a si mesmo e esférico, nem ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento.”


Segundo a concepção dos antigos gregos, números inteiros representam objetos discretos e uma razão comensurável representa uma relação entre duas coleções de objetos discretos. Zenão, entretanto, questionava o conceito de que quantidades fossem discretas e compostas de um número finito de unidades de um determinado tamanho, afirmando que "na realidade, quantidades em geral não são coleções discretas de unidades; daí porque surgem quantidades de razões incomensuráveis...". Isto significa que, ao contrário da concepção ordinária que se tem do tempo, por exemplo, não há uma unidade que seja a menor, indivisível, para qualquer quantidade. De fato, as divisões de uma quantidade têm de ser necessariamente infinitas. Zenão ilustra esses conceitos através de seus paradoxos de movimento, dos quais o primeiro já foi comentado no capítulo Zero, o número filosofal, no primeiro volume desta série: o que trata da disputa de uma corrida entre Aquiles e uma tartaruga.



Conforme Aristóteles (que viveu entre 384 e 322 a.C. e é quem faz referência aos paradoxos de Zenão) em sua obra Física:

"Em uma corrida, o corredor mais rápido nunca ultrapassa o mais lento, uma vez que o perseguidor deverá primeiramente alcançar o ponto em que esteve o perseguido, de modo que o perseguido mantém sempre uma vantagem".


O esquema a seguir demonstra por imagens o conceito que Aristóteles apresenta por palavras:



Neste paradoxo, Aquiles permite à tartaruga uma vantagem antes de iniciar a partida (primeira imagem). Se considerarmos que cada corredor comece a corrida a uma velocidade constante (o grego muito rápido e a tartaruga muito devagar), então após um intervalo finito de tempo Aquiles terá alcançado o ponto de parti-da da tartaruga. Durante este mesmo intervalo de tempo, a tartaruga percorreu uma distância muito menor que aquela percorrida pelo atleta (segunda imagem). Então, Aquiles consumirá mais algum tempo para percorrer a nova distância, mas nesse ínterim a tartaruga também conseguiu avançar, ainda que lentamente (terceira imagem). Logo, mais algum tempo será necessário a Aquiles para percorrer mais este trecho, porém igualmente a tartaruga terá avançado ainda um pouco mais (quarta imagem). Assim, sempre que Aquiles alcança o ponto em que a tartaruga esteve, ele ainda tem mais um trecho a galgar. Portanto, porque existe um número infinito de pontos que Aquiles precisa alcançar, nos quais a tartaruga já passou, ele nunca consegue ultrapassá-la. O segundo paradoxo do movimento de Zenão, conhecido como paradoxo da dicotomia, citado por Aristóteles, afirma:

"Aquilo que está em movimento deve alcançar a metade do percurso antes de chegar à meta"


Recorrendo mais uma vez a uma imagem para ilustrar o conceito, temos:



Suponha que um atleta deva percorrer uma determinada distância. Antes de chegar à meta, ele deve percorrer metade do percurso; antes de chegar à metade do percurso, deve percorrer um quarto do trajeto; antes de chegar a um quarto do trajeto, deve percorrer um oitavo do caminho; antes de chegar a um oitavo do caminho, deve alcançar 1/16 avos do percurso, e assim sucessivamente. Esta descrição requer um número infinito de tarefas para que se complete, o qual Zenão afirma ser uma impossibilidade. Esta sequência apresenta outro problema, que é o de que não há uma primeira distância a ser percorrida, uma vez que qualquer primeira distância a se percorrer pode ser dividida ao meio e por isso não seria a primeira de todas. Em outras palavras, a viagem sequer começaria. A conclusão paradoxal é que viajar ao longo de uma distância finita não pode nem ser completada nem iniciada, donde se concluiria que todo movimento é uma ilusão. O último paradoxo de Zenão, recontado por Aristóteles, afirma:

"Se tudo o que ocupa um igual espaço está em repouso, e se o que está em movimento está sempre ocupando esse espaço, então o vôo é imóvel"


Utilizemos ainda uma vez mais uma imagem para facilitar o entendimento desse paradoxo:



Zenão estabelece aqui que, para que ocorra movimento, um objeto deve mudar a posição que ocupa. No exemplo da flecha em vôo, estabelece-se que em qualquer instante de tempo (sem duração) a flecha não está se movendo nem para onde ela está, nem para onde ela não está. Ela não pode mover-se para onde não está, pois não há lapso de tempo para que se mova até lá; e não pode mover-se para onde está, pois a flecha já está lá. Em outras palavras, em cada instante de tempo não há ocorrência de movimento. Se tudo está sem movimento a cada instante, e o tempo é composto inteiramente de instantes, então o movimento é impossível. Os paradoxos de Zenão procuravam demonstrar as contradições inerentes ao pensamento matemático da época e as deficiências da notação matemática de que dispunham, mas não fornecia alternativas para superá-las. O passo seguinte no entendimento das razões incomensuráveis foi dado pelo matemático e astrônomo grego Eudoxo de Cnido (408 a 355 a.C.) que formalizou uma nova teoria das proporções que levava em conta tanto quantidades comensuráveis quanto incomensuráveis. A idéia central estava baseada na distinção entre número e magnitude. Uma magnitude "... não é um número, mas aplica-se a entidades tais como linhas, segmentos, ângulos, áreas, volumes e tempo" que podem variar, poderíamos dizer, continuamente. Magnitudes são opostas aos números, que pulam de um valor para o outro, como o 4 para o 5. Números são compostos da menor unidade indivisível, ao passo que magnitudes são infinitamente redutíveis. Porque não há valores quantitativos associados a magnitudes, Eudoxo estava apto a considerar ambas as razões comensuráveis e incomensuráveis ao definir razão em termos de sua magnitude e proporção como uma igualdade entre duas razões. O livro X do Elementos de Euclides (cujo manuscrito provavelmente foi escrito entre 323 e 283 a.C., portanto após as proposições de Eudoxo), é todo dedicado à classificação das magnitudes irracionais. Como resultado da distinção entre número e magnitude pelos gregos, a geometria tornou-se o único método para o cálculo de razões incomensuráveis ou números irracionais e acabou por influenciar os matemáticos de todas as civilizações que os sucederam. Esta cisão criou fundamentos, métodos e objetivos distintos na matemática, separando-a em dois ramos: a aritmética – envolvendo o estudo dos números inteiros e do discreto – e a geometria, que tratava do estudo das grandezas e do contínuo. Não por acaso, Euclides apresenta no Livro VI, proposição 30 do Elementos, um problema geométrico que gera outro número irracional que se tornaria famoso:


Dividir uma linha em sua extrema e média razão


A divisão proposta por Euclides está indicada a seguir:



Diz-se que uma linha está dividida em sua extrema e média razão quando o tamanho da linha (segmento AC) está para o comprimento maior (segmento AB, em vermelho), assim como o comprimento maior está para o menor (segmento AC, em azul). Temos aqui uma simples proporção, que em termos matemáticos pode ser expressa como:

$$ \frac{AC}{AB}=\frac{AB}{BC} $$

Observa-se da figura acima que o segmento AC é a soma dos segmentos AB com BC. Então, nossa proporção pode ser alterada para:

$$ \frac{AB+BC}{AB}=\frac{AB}{BC} $$

Rearranjando a fração à esquerda da igualdade, vem:

$$ \frac{AB}{AB}+\frac{BC}{AB}=\frac{AB}{BC} $$

Simplificando:

$$ 1+\frac{BC}{AB}=\frac{AB}{BC} $$

Multiplicando os dois lados da igualdade pela razão AB/BC:

$$ \left (1\times  \frac{AB}{BC} \right )+\left ( \frac{BC}{AB}\times \frac{AB}{BC} \right )=\left ( \frac{AB}{BC}\times \frac{AB}{BC} \right ) $$

Resultando:

$$ \frac{AB}{BC}+1=\left ( \frac{AB}{BC} \right )^{2} $$

Isolando a razão AB/BC, vem:

$$ \frac{AB}{BC}=\left ( \frac{AB}{BC} \right )^{2}-1 $$

Como não conhecemos o valor dos segmentos AB e BC, podemos representar a razão entre ambos por um ponto de interrogação. Deste modo, a expressão acima fica assim:

$$ ?=?^{2}-1 $$

Da expressão resultante, podemos fazer a seguinte pergunta à moda dos egípcios: “que número, elevado ao quadrado e subtraído de uma unidade, resulta nele mesmo?”. Se considerarmos que o número procurado seja o 1, teremos que o seu quadrado é 1; subtraído de 1 resulta 0. Mas 0 é menor que 1. Se escolhermos o 2, teremos que o seu quadrado é 4; subtraído de 1 resulta 3. Mas 3 é maior que 2, logo o número tampouco é 2. Se ao escolhermos o número 1 resultou num valor menor que 1 e ao escolhermos 2 resultou num valor maior que 2, então o número procurado, uma vez mais, estará entre 1 e 2. Adotando a média entre 1 e 2 (que é 3/2) e posicionando esta fração numa reta, temos:



Substituindo a fração 3/2 na expressão original, obtemos:

$$ \frac{3}{2}=\left ( \frac{3}{2} \right )^{2}-1 $$

Já vimos potenciação de frações no capítulo A potenciação, no segundo volume desta série; logo, o quadrado de 3/2 é 9/4. Então, temos:

$$ \frac{3}{2}=\frac{9}{4}-1\Rightarrow \frac{3}{2}=\frac{9-4}{4}\Rightarrow \frac{3}{2}=\frac{5}{4} $$

Veja que 5/4 não é igual a 3/2, mas menor. Para que o termo à esquerda fosse igual ao da direita, a fração à direita deveria resultar 6/4. Logo, subestimamos nossa estimativa ao escolher a fração 3/2; por isso, vamos escolher outro valor para a incógnita que seja maior que 3/2, por exemplo: 17/10. Na régua, a razão 17/10 será posicionada proporcionalmente entre o número 2 e a fração 3/2:



Substituindo esta fração na equação original, temos:

$$ \frac{17}{10}=\left ( \frac{17}{10} \right )^{2}-1 $$

Desenvolvendo as contas, vem:

$$ \frac{17}{10}=\frac{289}{100}-1\Rightarrow \frac{17}{10}=\frac{289-100}{100}\Rightarrow \frac{17}{10}=\frac{189}{100} $$

Veja que 189/100 não é igual a 17/10, mas maior. Para que o termo à esquerda fosse igual ao da direita, a fração à direita deveria resultar 170/100. Logo, o número procurado, ou incógnita, é menor que 17/10, o que significa que nossa estimativa agora foi superestimada. Podemos calcular a média entre as duas estimativas iniciais, pois a incógnita está entre 3/2 e 17/10. Assim:

$$ \frac{\frac{3}{2}+\frac{17}{10}}{2}=\frac{\frac{15+17}{10}}{2}=\frac{\frac{32}{10}}{2}=\frac{\frac{32}{10}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{32}{20}}{1}=\frac{32}{20}=\frac{8}{5} $$

Na régua a razão 8/5 será posicionada bem no meio entre as frações 3/2 e 17/10:



Encontrada a nova fração, substituímo-la na equação inicial:

$$ \frac{8}{5}=\left ( \frac{8}{5} \right )^{2}-1 $$

Procedendo aos cálculos, vem:

$$ \frac{8}{5}=\frac{64}{25}-1\Rightarrow \frac{8}{5}=\frac{64-25}{25}\Rightarrow \frac{8}{5}=\frac{39}{25} $$

Desta vez, a fração obtida (39/25) é menor que 8/5, o que significa que a fração 8/5 é menor que o valor da incógnita e, portanto, o valor procurado está entre 8/5 e 17/10. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{8}{5}+\frac{17}{10}}{2}=\frac{\frac{16+17}{10}}{2}=\frac{\frac{33}{10}}{2}=\frac{\frac{33}{10}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{33}{20}}{1}=\frac{33}{20} $$

Na régua, a razão 33/20 será posicionada bem no meio entre as frações 8/5 e 17/10:



Encontrada a nova fração, substituímo-la na equação inicial:

$$ \frac{33}{20}=\left ( \frac{33}{20} \right )^{2}-1 $$

Procedendo aos cálculos, vem:

$$ \frac{33}{20}=\frac{1089}{400}-1\Rightarrow \frac{33}{20}=\frac{1089-400}{400}\Rightarrow \frac{33}{20}=\frac{689}{400} $$

A fração obtida (689/400) é maior que 33/20, o que significa que a fração 33/20 é maior que o valor da incógnita e, portanto, o valor procurado estará entre 8/5 e 33/20. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{8}{5}+\frac{33}{20}}{2}=\frac{\frac{32+33}{20}}{2}=\frac{\frac{65}{20}}{2}=\frac{\frac{65}{20}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{65}{40}}{1}=\frac{65}{40} $$

Na régua, a razão 65/40 será posicionada bem no meio entre as frações 8/5 e 33/20:



Encontrada a nova fração, substituímo-la na equação inicial:

$$ \frac{65}{40}=\left ( \frac{65}{40} \right )^{2}-1 $$

Procedendo aos cálculos, vem:

$$ \frac{65}{40}=\frac{4225}{1600}-1\Rightarrow \frac{65}{40}=\frac{4225-1600}{1600}\Rightarrow \frac{65}{40}=\frac{2625}{1600} $$

A fração obtida (2625/1600) é maior que 65/40, o que significa que a fração 65/40 é maior que o valor da incógnita e, portanto, o valor procurado está entre 8/5 e 65/40. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que se situará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{8}{5}+\frac{65}{40}}{2}=\frac{\frac{64+65}{40}}{2}=\frac{\frac{129}{40}}{2}=\frac{\frac{129}{40}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{129}{80}}{1}=\frac{129}{80} $$

Na régua (ampliada), a razão 129/80 será posicionada bem no meio entre as frações 8/5 e 65/40:



Encontrada a nova fração, substituímo-la na equação inicial:

$$ \frac{129}{80}=\left ( \frac{129}{80} \right )^{2}-1 $$

Procedendo aos cálculos, vem:


$$ \frac{129}{80}=\frac{16.641}{6400}-1\Rightarrow \frac{129}{80}=\frac{16.641-6400}{6400}\Rightarrow \frac{129}{80}=\frac{10.241}{6400} $$

A fração obtida (10.241/6400) é menor que 129/80, o que significa que a fração 129/80 é menor que o valor da incógnita e, portanto, o valor procurado estará entre 129/80 e 65/40. Calculando a média entre essas duas razões, encontraremos uma terceira razão que estará entre esses dois extremos:

$$ \frac{\frac{65}{40}+\frac{129}{80}}{2}=\frac{\frac{130+129}{80}}{2}=\frac{\frac{259}{80}}{2}=\frac{\frac{259}{80}\times \frac{1}{2}}{2\times \frac{1}{2}}=\frac{\frac{259}{160}}{1}=\frac{259}{160} $$

Na régua, a razão 259/160 será posicionada bem no meio entre as frações 129/80 e 65/40:



Tal como para a constante de Pitágoras, este número irracional, também conhecido como razão áurea ou dourada e representado pela letra grega Φ (pronuncia-se fí), não pode ser integralmente expresso por uma razão, de modo que o processo acima continuará igualmente nesse vai-e-vem entre médias e substituições sem fim. Tal como no caso anterior, as frações obtidas a cada iteração aproximam-se sempre e cada vez mais do número irracional procurado, mas nunca fornecem seu valor exato. Neste caso, a fração 259/160 corresponde, em notação decimal, a:

$$ 1,618\overline{75} $$

Os décimos sobrescritos com um travessão representam o erro de aproximação da fração em relação ao valor correto, ou vale dizer que somente os três primeiros décimos representam corretamente a razão áurea correspondente à magnitude que divide o segmento de linha AC em sua extrema e média razão. O número Φ também surge na solução obtida por Fibonacci a uma questão levantada em 1.223 em Pisa, na corte de Frederico II, proposta nestes termos:

Quantos pares de coelhos são obtidos em um ano – salvo em caso de morte – assumindo que cada par dá à luz outro par de coelhos a cada mês, e que os casais mais jovens são capazes de procriar aos 2 meses de vida?


De início, temos apenas um casal recém-nascido (branco e amarelo) de coelhos:


Passado o primeiro mês, continuamos apenas com um casal de coelhos branco e amarelo, que pela pouca idade ainda não é capaz de procriar:


No segundo mês, o casal branco e amarelo já é capaz de procriar e, seguindo as regras do problema, gera o casal branco e marrom; temos um total de dois casais até aqui:



No terceiro mês, o casal branco e amarelo gera outro casal (marrom e amarelo), mas o casal branco e marrom, com apenas um mês de vida, não é capaz de procriar ainda; temos até aqui 3 casais de coelhos:



No quarto mês, o casal branco e amarelo gera outro casal (amarelo e amarelo) e o casal branco e marrom – agora com dois meses de vida – já pode procriar e gera um casal (preto e preto). O casal marrom e amarelo, com 1 mês de vida, não procria; temos até aqui 5 casais de coelhos:



E assim sucessivamente, os casais de coelhos, à medida que atingem 2 meses de vida, vão gerando a cada mês um par de coelhos, sem nunca parar de procriar. Se observarmos a quantidade de casais a cada mês que passa, temos:

Início: 1 casal
1º mês: 1 casal
2º mês: 2 casais
3º mês: 3 casais
4º mês: 5 casais

Observe: a cada mês que passa a quantidade total de casais de coelhos é a soma dos dois meses anteriores. Em um ano, teremos:

5º mês: 8 casais (soma de 5 mais 3 casais)
6º mês: 13 casais (soma de 8 mais 5 casais)
7º mês: 21 casais (soma de 13 mais 8 casais)
8º mês: 34 casais (soma de 21 mais 13 casais)
9º mês: 55 casais (soma de 34 mais 21 casais)
10º mês: 89 casais (soma de 55 mais 34 casais)
11º mês: 144 casais (soma de 89 mais 55 casais)
12º mês: 233 casais (soma de 144 mais 89 casais)


A sequência numérica: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, etc. é a famosa sequência de Fibonacci.



Como o número Φ pode ser obtido a partir da razão entre dois números, ele aparece quando dividimos a quantidade de casais de coelhos de um mês em relação ao mês anterior:

1º mês: (Quantidade de coelhos no 1º mês / Quantidade de coelhos inicial)
$$ \frac{1}{1}=1 $$
2º mês: (Quantidade de coelhos no 2º mês / Quantidade de coelhos no 1º mês)
$$ \frac{2}{1}=2 $$
3º mês: (Quantidade de coelhos no 3º mês / Quantidade de coelhos no 2º mês)
$$ \frac{3}{2}=1,5 $$
4º mês: (Quantidade de coelhos no 4º mês / Quantidade de coelhos no 3º mês)
$$ \frac{5}{3}=1,66666... $$
5º mês: (Quantidade de coelhos no 5º mês / Quantidade de coelhos no 4º mês)
$$ \frac{8}{5}=1,6 $$
6º mês: (Quantidade de coelhos no 6º mês / Quantidade de coelhos no 5º mês)
$$ \frac{13}{8}=1,625 $$
7º mês: (Quantidade de coelhos no 7º mês / Quantidade de coelhos no 6º mês)
$$ \frac{21}{13}=1,61538... $$
8º mês: (Quantidade de coelhos no 8º mês / Quantidade de coelhos no 7º mês)
$$ \frac{34}{21}=1,61904... $$
9º mês: (Quantidade de coelhos no 9º mês / Quantidade de coelhos no 8º mês)
$$ \frac{55}{34}=1,61764... $$
10º mês: (Quantidade de coelhos no 10º mês / Quantidade de coelhos no 9º mês)
$$ \frac{89}{55}=1,61818... $$
11º mês: (Quantidade de coelhos no 11º mês / Quantidade de coelhos no 10º mês)
$$ \frac{144}{89}=1,61797... $$
12º mês: (Quantidade de coelhos no 12º mês / Quantidade de coelhos no 11º mês)
$$ \frac{233}{144}=1,61805... $$

Observe: quanto maior a quantidade de casais entre dois meses consecutivos, mais a razão se aproxima do valor de Φ. O último número irracional de que trataremos neste capítulo está associado, tal como ocorre com a constante de Pitágoras e a razão áurea, a uma razão entre duas magnitudes do tipo 'segmentos de linha' e a figura geométrica envolvida na geração desse número é o círculo. Alguma suspeita? Se sua resposta foi o π (pronuncia-se pí), acertou na mosca! De fato, a razão entre a circunferência c e o diâmetro d de um círculo, qualquer que seja o seu tamanho, gera sempre este número irracional.


O número π é um velho conhecido desde a época dos babilônios. Dessa civilização foi encontrada uma plaqueta de argila, conhecida pela sigla YBC7302, que envolve diretamente esse número:

Plaqueta de argila cozida, conhecida pela sigla YBC7302
Neste pequeno disco de argila temos a seguinte inscrição:


Como a escrita cuneiforme matemática dos babilônios é baseada no contexto, observou-se que os glifos na parte superior do círculo representam o comprimento dessa circunferência, ou seja: 3. E, dentro da circunferência, os dois conjuntos de glifos correspondem ao valor 45, que equivale à área do círculo. Lembrando que os babilônios não faziam uso de uma simbologia para representar frações, o número dentro círculo de fato é:

$$ \frac{45}{60} $$

Respeitando-se a notação sexagesimal por eles utilizada. A área do círculo está relacionada ao diâmetro e ao número π, mas para demonstrá-la lançaremos mão do seguinte procedimento: com um compasso, escolha um ponto no papel, chame esse ponto de A e, em seguida, desenhe um círculo cujo raio (ou abertura do compasso) tenha magnitude igual a 2:



Marque um ponto qualquer sobre a circunferência do círculo e chame-o de B:



Posicionando a ponta seca do compasso no ponto B, mantendo a abertura inicial, trace um arco de círculo acima e abaixo do ponto; chame os pontos de intersecção desses dois arcos com o círculo respectivamente de C e D. Siga o mesmo procedimento com os pontos C e D e chame as intersecções entre os arcos e o círculo de E e F, como indicado na figura a seguir:



Finalmente, seja a partir do ponto E ou do ponto F, faça uma última intersecção com o círculo e chame-a de G:



Agora, com a ponta seca do compasso a partir do ponto B, desenhe um arco de círculo externamente ao círculo e faça o mesmo partindo do ponto C, de modo que os dois arcos externos se cruzem:



Trace um segmento de reta entre a intersecção dos arcos externos e o ponto A e chame a intersecção do segmento de reta com o círculo de H:



Repita esse mesmo procedimento entre os pontos C, D, E, F e G, de modo a obter, além do ponto H, os pontos I, J, K, L e M:



Finalmente, com segmentos de reta, una os pontos BG, HK, CF, IL, ED e JM:



Agora que dividimos o círculo em doze partes iguais, com uma tesoura efetuamos cortes ao longo das linhas que unem os pontos, e alinhamos as fatias obtidas umas contra as outras, conforme abaixo:



Observe: a figura obtida é semelhante a um paralelogramo, à exceção de que a base e o topo da figura contêm ondulações. Ao desenharmos um paralelogramo com as mesmas dimensões da figura obtida pela junção das fatias do círculo original, a área de ambas é muito semelhante, como se observa a seguir:



Podemos afirmar que a área do paralelogramo é um pouquinho menor que a área das fatias de círculo justapostas. Quanto mais fatias obtivermos de um círculo, menor a ondulação e portanto menor também a diferença de tamanho entre as áreas do paralelogramo (que vai se aproximando de um retângulo) e das fatias em justaposição. Conhecidas a base e a altura do paralelogramo:



Sua área será dada por:

$$ Area = base\times altura $$


Muito simples: o paralelogramo é composto por duas figuras geométricas bem simples: dois triângulos retângulos (destacados em laranja) e um retângulo (em azul), como se observa abaixo:


Se deslocarmos o triângulo retângulo da esquerda para uní-lo ao triângulo da direita, a figura resultante transforma-se num simples retângulo laranja justaposto ao retângulo azul:


A altura e a base da figura resultante são as mesmas do paralelogramo, que por sua vez corresponde aproximadamente à área do círculo. A base do paralelogramo equivale à borda de seis das doze fatias em que o círculo foi recortado, ou seja, à metade da circunferência. Logo:

$$ base=\frac{circunferencia}{2} $$

Por outro lado, a altura do paralelogramo corresponde aproximadamente ao raio do círculo:

$$ altura = raio $$

Lembrando que o número irracional π é a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo, temos:

$$ \pi =\frac{circunferencia}{diametro}=\frac{circunferenca}{2\times raio} $$

Se o raio do círculo equivale à altura do paralelogramo e a circunferência corresponde ao dobro da base, podemos fazer as seguintes substituições na equação acima:

$$ raio=\frac{circunferencia}{2\times \pi } $$

Como a área do círculo é 45/60 e lembrando que o raio do círculo é igual à altura do paralelogramo, temos por equivalência:

$$ \frac{45}{60}=base\times altura=\frac{circunferencia}{2}\times \frac{circunferencia}{2\times \pi } $$

Logo:

$$ \frac{45}{60}=\frac{\left ( circunferencia \right )^{2}}{4\times \pi } $$

Como a circunferência vale 3 na plaqueta de argila, temos:

$$ \frac{45}{60}=\frac{\left ( 3 \right )^{2}}{4\times \pi }\Rightarrow 45\times 4\times \pi =60\times 9 $$

Para descobrir o valor de π, modificamos a equação acima para:

$$ \pi =\frac{60\times 9}{45\times 4}=\frac{540}{180}=\frac{54}{18}=\frac{18}{6}=3 $$

Ou seja, o número irracional π valia para os babilônios, simplificadamente, o número inteiro 3...


Vejamos agora como os egípcios calculavam o valor de π usando como referência o nosso já bem conhecido papiro de Ahmes, especificamente o problema de número 50:

Papiro de Ahmes, com o problema 50 destacado em azul. A seta amarela aponta para um pequeno círculo, que ‘sugere’ o tipo de assunto abordado no texto.
A tradução desse problema para o português é:

Exemplo para encontrar a área de um campo redondo com um diâmetro de 9 khet. Qual é sua área? Tire 1/9 de seu diâmetro, ou seja, 1. O resto é 8. Multiplique 8 vezes 8, fazendo 64. Portanto, a área é de 64 setjat.

O valor de 1 khet corresponde a cerca de 52,3 metros. Sendo o diâmetro do campo redondo igual a 9 khet, 1/9 do diâmetro será igual a:

$$ \frac{1}{9}d $$

Ao tirarmos 1/9 do diâmetro, resulta:

$$ d-\frac{1}{9}d $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum e simplificando, fica:

$$ \frac{9d-d}{9}=\frac{8d}{9}=\frac{8}{9}d $$

Transformando esse comprimento baseado no diâmetro do campo redondo para o lado de um quadrado (figura geométrica), a área será o quadrado desse comprimento; assim:

$$ \left [ \frac{8}{9}d \right ]^{2}=\frac{64}{81}d^{2} $$

Sendo o diâmetro do campo igual a 9 khet, a área do campo será:

$$ \frac{64}{81}\left (9  \right )^{2}=\frac{64}{81}\left (81  \right )=64\left ( setjat \right ) $$

Que é a resposta do problema. Ao igualar essa conta à área de um círculo, teremos:

$$ \frac{64}{81}d^{2}=\pi \left ( \frac{d}{2} \right )^{2}\Rightarrow \frac{64}{81}=\frac{\pi }{4} $$

Ou seja, para os egípcios, o valor implícito de π seria:

$$ \pi =\frac{64\times 4}{81}=\frac{256}{81}=3,1\overline{6049}... $$

O enunciado deste problema, e de outros existentes no papiro de Ahmes, é apresentado junto com a solução sem maiores explicações sobre como o escriba chegava aos resultados. Não é possível afirmar pelo conteúdo dos textos que os egípcios conhecessem ou tivessem uma fórmula para calcular áreas de círculos, mas tudo indica que eles fizessem uso de algum tipo de algoritmo, pois a mesma técnica é aplicada para diferentes parâmetros.  A grande sacada neste raciocínio foi calcular a área do círculo pela área equivalente (ainda que aproximada) de um quadrado, cujo cálculo da área era bem conhecido. Para o problema em questão, não se conhece o algoritmo que os egípcios utilizaram para subtrair a quantia correta (1/9 do diâmetro do círculo) que resultou no lado de um quadrado (de comprimento igual a 8/9 do diâmetro do círculo) cuja área equivale à área do círculo estudado. E essa técnica, ou algoritmo, permanece um mistério até hoje. Outra civilização que fazia uso da equivalência de área entre círculos e quadrados foram os hindus. Como já visto no capítulo Como os sistemas numéricos evoluíram ao longo da história?, no primeiro volume desta série, os Sulbasutras (apêndices dos Vedas) continham grande quantidade de conhecimento geométrico e consistiam de regras para a construção de altares. Entre estes, destaca-se o Baudhayana Sulbasutra (ou soluções de Baudhayana), em que orienta a construção de um altar, convertendo um quadrado em uma roda raiada (chamada rathachakra), ou seja, um círculo.


Ashoka Chakra, um dos relógios de sol do Templo do Sol, em Konark, Odisha, na Índia. O nome Konark deriva de duas palavras sânscritas: Kona (esquina) e Arka (sol). A Ashoka Chakra é um exemplo de rathachakra, ou roda raiada.
Como veremos a seguir, o texto começa com um projeto muito específico, utilizando tijolos de um determinado tamanho, mas fundamentalmente o projeto é descrito com tijolos de formatos completamente diferentes, com arcos circulares.


Uma rathachakra utilizada na construção de altares, segundo o Baudhayana Sulbasutra, utilizando tijolos moldados em arcos de diversos formatos.
Neste projeto, começa-se com uma área igual a 225 tijolos quadrados; depois, essa área é ampliada por mais 64 tijolos, de modo a se obter um novo quadrado igual a 17x17 = 289 tijolos, conforme se observa no texto abaixo:

Com 225 deles [tijolos] é produzido o sétuplo [altar] com dois aratnis e [um] pradesa;

A estes [225] outros 64 [tijolos] são adicionados e com eles um quadrado é feito. [De início] um quadrado é feito com um lado contendo 16 tijolos, deixando um saldo de 33 tijolos. Estes são colocados em todos os lados.

16 [tijolos] no centro constituem a nave [do altar]; 64 [tijolos, depois disso] constituem os raios e 64 os espaços vazios [entre os raios]; os [tijolos] restantes formam as pinas.

Segundo o dicionário Aurélio, pina é cada uma das peças que constituem a circunferência da roda de madeira de uma carruagem. A referência da segunda parte do primeiro sutra (verso) corresponde à área do altar, onde aratnis e pradesa são unidades de medida hindus; o altar de fogo principal no ritual agnicayana tinha que ter esse tamanho. A construção que se segue começa com um quadrado de 225 tijolos que é posteriormente alargada com um quadrado de 256 tijolos acrescentando-se 31 tijolos aos 225, ficando com um saldo de 33 tijolos (que é a quantidade que sobra para se chegar aos 64 tijolos adicionais).


Vejamos como isso funciona, começando com o quadrado com 225 tijolos (15 tijolos de lado), conforme abaixo:



Em seguida, acrescentamos mais 31 tijolos, formando um novo quadrado com um total de 256 tijolos, ou lado igual a 16, conforme abaixo:



Os 33 tijolos remanescentes são distribuídos na base e altura do quadrado maior para fornecer um altar circular de diâmetro igual a 17 tijolos, ou seja, existe a intenção de se fazer uma área circular com diâmetro de 17 tijolos, conforme a figura a seguir:



Retirando-se agora os 64 tijolos acrescidos ao quadrado de lado igual a 15 (e que nos auxiliaram na formação dos quadrados de lados iguais a 16 e 17 tijolos) formamos um ‘círculo’ de diâmetro igual a 17 tijolos, conforme abaixo:



Acatando o conceito de que existiria uma igualdade entre a área de um círculo com diâmetro de 17 tijolos e a área de um quadrado de lado igual a 15 tijolos, vem que:

$$ \pi \left ( \frac{d}{2} \right )^{2}=lado\times lado $$
$$ \pi \left ( \frac{17}{2} \right )^{2}=15\times 15 $$
$$ \pi \frac{289}{4}=225\Rightarrow \pi \times 289=225\times 4 $$
$$ \pi= \frac{900}{289}=3,1\overline{14187}... $$

Observe: houve a aplicação de um artifício na construção do templo, ao transformar o quadrado de lado igual a 15 tijolos em outro quadrado de lado igual a 17 tijolos que exigiu, para a sua construção, mais 64 tijolos. Ao retirarem-se 64 tijolos da parte externa do círculo, a quantidade inicial de tijolos utilizados (225) para a construção do quadrado de lado igual a 15 tijolos não se alterou. Da figura, é possível concluir que o círculo feito de tijolos não é perfeitamente redondo. Se cortássemos os pedaços de tijolos que extrapolam o círculo e colocássemos esses mesmos pedaços nos locais em que faltam tijolos para completar o círculo, o resultado seria bem próximo de um círculo, mas ainda assim não seria exato. Outros textos hindus fornecem valores ligeiramente diferentes para o número π, tal como o Satapatha Brahmana, onde o π é expresso pela fração:

$$ \pi= \frac{25}{8}=3,1\overline{25} $$

Seja como for, em todos os textos sagrados hindus, o artifício é começar com um quadrado para depois transformá-lo em um círculo de 'mesma' área, substituindo os tijolos quadrados por outros com diversos formatos em arco, a fim de construírem seus templos. Com o número π encerramos este capítulo com uma visão geral sobre os primeiros contatos das civilizações antigas com os números irracionais e as técnicas engenhosas com que lidaram com eles, em particular o uso da geometria e a aritmética com frações como ferramentas indispensáveis à identificação e o correto entendimento desses números peculiares.