Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

terça-feira, julho 14, 2015

Os notáveis números primos



Discursos de la cifra - século 16 d.C. - dedicado a Juan Fernandez de Velasco (autor desconhecido). Esta obra lida com os conhecimentos de criptografia existentes à época, incluindo a descrição técnica dos diferentes métodos de encriptação e decriptação com o uso de tabelas.
 
Um número inteiro maior que 1 é dito primo (cujo significado é primário, primeiro) quando sua divisão por qualquer outro número inteiro (ou divisor) nunca resulta exata, ou seja, há sempre um resto, excetuando-se duas situações: quando tal número primo tem por divisores o 1 ou ele mesmo. Todos os números primos são ímpares, salvo o número 2, o único número que além de primo, é par. Os indícios arqueológicos apontam que a humanidade tem conhecimento dos números primos desde tempos imemoriais. O osso de Ishango, por exemplo, um dos artefatos matemáticos mais antigos já descobertos, com idade estimada em cerca de 20.000 anos, possui um total de 4 conjuntos de ranhuras, cada um representando um número primo:

À esquerda, duas vistas do osso de Ishango. À direita, a totalização das ranhuras em cada uma dessas vistas. Observe as totalizações de ranhuras na vista da direita, todas representando números primos: 11, 13, 17 e 19. Curiosamente, a soma destes números é igual a 60, assim como a soma dos números à esquerda (11, 21, 19 e 9) também é 60.
Por exemplo, o número 7 é primo, porque somente quando ele é dividido por 1 ou por ele mesmo o resto é zero. Já o número 6 é dito composto porque, além do 1 e do 6, sua divisão não gera resto quando é dividido por 2 ou por 3. Entre os egípcios, a presença dos números primos se faz presente no papiro de Rhind, onde o escriba preocupa-se em expressar a fração 2/n como uma soma de frações unitárias, com n sendo um número ímpar dentro do intervalo:

$$ 4 < n < 102 $$

Quando n é um número primo, a expansão de 2/n em frações unitárias é bem mais trabalhosa de se alcançar do que nos casos em que n não é primo. Credita-se à civilização grega a primazia pelo estudo a sério dos números primos e suas propriedades. É provável que a noção de número primo tenha sido introduzida pelo matemático e filósofo grego Pitágoras. Nascido na ilha egéa de Samos, Grécia, em 571 ou 570 a.C., e influenciado pelos três maiores pensadores jônicos da época: Ferécides de Sira, Tales de Mileto e Anaximando de Mileto, fundou posteriormente um grupo filosófico de caráter científico e místico que conquistou inúmeros adeptos. Aliás, a palavra filosofia foi cunhada por Pitágoras, do grego philosophía, cujo significado é “amor à sabedoria”. Influenciada por Ferécides[1], a escola pitagórica – como ficou conhecido o grupo – acreditava na imortalidade da psique e na transmigração das almas, ou metempsicose, doutrina que distribuía punições ou recompensas em função do comportamento em vidas anteriores, fazendo com que a alma encarnasse como homem, animal ou vegetal. Atribui-se a Pitágoras o seguinte preceito:

Somos estrangeiros no mundo; o corpo é o túmulo da alma, mas não devemos fugir pelo suicídio; porque somos bens da Divindade, e sem sua ordem não temos o direito de nos evadirmos. Na vida há três espécies de homens, exatamente como nos jogos olímpicos. A classe inferior é a dos que vêm comprar e vender; a seguinte, a dos competidores; e, acima de todos, os que simplesmente vêem. A maior purificação é, portanto, a ciência desinteressada, e o homem que mais se lhe dedica, o verdadeiro filósofo, é quem mais se liberta da roda dos nascimentos.

[1] Ferécides de Siro foi um filósofo grego pré-socrático, um dos primeiros a professar a eternidade e a transmigração das almas humanas, dando um tratamento rudimentar à imortalidade da alma, suas andanças no submundo e as razões para as encarnações da mesma.


Os pitagóricos dividiam-se em dois ramos de pensamento: os mathématikoi, palavra grega cujo significado é “aprendiz”, aos quais se supõe terem expandido e desenvolvido o trabalho mais matemático e científico de Pitágoras; e os akôusmatikoi, cujo significado é “ouvinte”, estes mais preocupados com os aspectos religiosos e ritualísticos do mestre. Tinham como símbolo o pentagrama, ou estrela de cinco pontas, e o lema da escola pitágórica era: “tudo é número”, pois acreditavam piamente que a essência de tudo, seja na geometria, seja nas questões práticas da vida cotidiana, é preenchido e explicado pelos números, suas propriedades e pelas relações que expressam entre si. O entendimento integral dessas relações, através do esforço puramente intelectual do homem, libertaria sua alma do ciclo de reencarnações, ao compreender os segredos do Universo e ficar, desse modo, mais próximo da divindade.

Membros da escola pitagórica celebrando o nascimento do sol - Fyodor Bronnikov, 1869.
Os pitagóricos davam grande importância ao número 1, ao qual denominavam mônad, palavra grega que significa “unidade”, gerador dos números, que por sua vez deu origem à primeira díade ou dupla, o 2, o primeiro par, simbolizando o feminino e a opinião. O 2 por sua vez gerou o 3, o primeiro arithmós, que significa “número”, que simbolizava o masculino, a verdade, pois é composto da unidade e da díade. O número 4 simbolizava a justiça, o primeiro quadrado perfeito; o número 5 estava associado ao matrimônio, pois continha em si mesmo a soma de 2 (um número feminino, ou par) com 3 (este um número masculino, ou ímpar). O número 10, ou tetractys, era o mais sagrado dos números e representava o universo, pois era a soma de todas as dimensões geométricas: 1 ponto, que gera as dimensões; 2 pontos, que formam uma reta unidimensional; 3 pontos, que formam um triângulo bidimensional; e 4 pontos dispostos em diferentes planos para formar um tetraedro, que é uma estrutura tridimensional. A soma: 1 + 2 + 3 + 4 dá 10, ou seja, a totalidade das dimensões. Pitágoras notou também que havia dois tipos de arithmós: os protói arithmós (números primários ou primos), que são aqueles que não podem ser gerados pela multiplicação de outros números, como é o caso do 2, 3, 5, 7, etc.; e os deuterói arithmós (números secundários), que são gerados pela multiplicação de outros números, como é o caso do 4, 6, 8, 9, etc. A obra grega mais antiga que detalha o estudo dos números primos é o Elementos de Euclides (cerca de 300 a.C.), um dos maiores catedráticos que o Museu de Alexandria jamais abrigou em suas paredes; sabe-se que Euclides seguiu de perto os preceitos matemáticos pitagóricos e, por isso, não causa surpresa a definição que ele dá para número primo, no volume VII, definição 11, dessa obra:

 

“protós arithmós estin monadi mone metroymenos”

 

Ou seja:

 

“número primo é todo aquele que só pode ser medido pela unidade”

 

Busto de Pitágoras – Museu do Vaticano
Euclides provou muitos fatos básicos importantes que hoje consideramos corretos, por exemplo, o de que existem infinitos primos, bem como a relação entre números perfeitos e números primos. Na teoria dos números, um número perfeito é um inteiro positivo cuja soma de seus divisores resulta nele próprio. Por exemplo: o número 6 é perfeito, pois a soma de seus divisores (1, 2 e 3) resulta nele mesmo:

$$ 1 + 2 + 3 = 6 $$

De fato, Euclides mostrou que se:

$$ 2^{n} - 1 $$

é um número primo, então:

$$ 2^{n-1}(2^{n}-1) $$

será um número perfeito. Outro pensador helênico que se debruçou sobre este assunto foi o matemático Eratóstenes de Cirene (276 a.C. – 194 a.C.), mais um grande catedrático que o Museu de Alexandria produziu, e a quem se atribui a criação de um algoritmo para encontrar números primos chamado “coador de Eratóstenes”. Vejamos então como funciona esse algoritmo, procurando por números primos no intervalo entre 2 e 20:


Começamos o algoritmo pela marcação de todos os números múltiplos de 2 (para isso, temos de nos lembrar das tabuadas!), ou seja, todos os deuterói arithmós múltiplos de 2. Teremos:


Marcamos os números 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18 e 20, pois são todos múltiplos de 2. Agora, seguindo o mesmo procedimento, pegamos o próximo número não selecionado à direita do 2 (neste caso, o 3), e marcaremos todos os seus múltiplos. Chegamos a:


Apenas os números 9 e 15 foram marcados, pois o 6, o 12 e o 18, que também são múltiplos de 3, já haviam sido previamente selecionados, pois também são múltiplos de 2. Seguindo este mesmo raciocínio, pegamos agora o próximo número não selecionado à direita do 3, que é o 5. Os números 15 e 20, que são múltiplos de 5, já haviam sido respectivamente marcados previamente como múltiplos de 3 e 2. Logo, não há números múltiplos de 5 entre 2 e 20 a serem selecionados. O mesmo ocorre para o próximo número não marcado à direita do 5, o número 7, pois o único múltiplo de 7 entre 2 e 20 é o 14, que também é múltiplo de 2. Já os números 11, 13, 17 e 19 não têm múltiplos entre 2 e 20, pois o primeiro múltiplo de 11 é 22, de 13 é 26, de 17 é 34 e de 19 é 38. O resultado final obtido com o coador de Eratóstenes é:


Resulta que os números 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17 e 19, em destaque nas caixas pretas, são todos números primos. Observe que à medida que o procedimento avança, vão sobrando cada vez menos números, dando a impressão de que foram "coados" (ou filtrados) dos demais, daí o nome deste interessante algoritmo.

Coador grego em forma de jarro, séculos 7 a 6 a.C.
Depois de Eratóstenes, foi o matemático grego Nicômaco de Gerasa (~60 d.C. - ~120 d.C.) quem se ocupou da teoria dos números com sua obra Arithmetike eisagoge (Introdução à aritmética), um material que chegou até os dias atuais contendo apenas dois livros, possivelmente uma versão abreviada da original. Pouco se sabe sobre Nicômaco, exceto que era oriundo de Gerasa, uma província romana da Síria (atual Jordânia). Os historiadores costumam considerá-lo um neo-pitagórico, dada a sua tendência de se interessar mais pelas propriedades místicas dos números do que por suas propriedades matemáticas. O Arithmetike eisagoge lida com a diferenciação entre os números imateriais totalmente conceituais (números divinos) e os números que medem as coisas materiais (números científicos); aborda ainda a importância dos números primos, e argumenta que a aritmética é ontologicamente anterior às demais ciências matemáticas, sendo sua causa (na época, as outras ciências matemáticas eram a música, a geometria e a astronomia). Foi Nicômaco quem observou que o número 8128 é perfeito; até então, somente se conheciam outros três números perfeitos: 6, 28 e 496, estabelecendo (sem provas) que todo número perfeito obedece ao algoritmo de Euclides:

$$ 2^{n-1}(2^{n}-1) $$

Nicômaco ainda afirma, erroneamente, que os números perfeitos terminam em 6 e 8 alternadamente. A Introdução à aritmética de Nicômaco serviu de base a outra obra, esta em latim: De Institutione Arithmetica (A Instituição Aritmética) do filósofo, estadista e teólogo romano Anício Mânlio Torquato Severino Boécio, ou simplesmente Boécio (~480 d.C. – 524/525 d. C.).

Busto de Boécio. Desenho de autor desconhecido
Nascido nos estertores do império romano do ocidente, numa Europa que se afastava da antiguidade clássica para aproximar-se da idade média, Boécio pertencia a uma família patrícia tradicional, os Anícios, que deram a Roma vários cônsules, ao menos dois papas e um imperador (Anício Olíbrio). Notabilizou-se pela tradução, do grego para o latim, de obras clássicas de filosofia, de tratados sobre matemática, lógica e teologia, e foi ainda um teórico da música da antiguidade clássica greco-romana. Não se sabe onde nem como Boécio aprendeu a língua grega com tal proficiência e profundidade, nem onde adquiriu os amplos conhecimentos dos autores clássicos apresentados em suas obras, mas alguns pesquisadores supõem que ele tenha estudado em Alexandria, já que existem evidências de que um Boécio, talvez seu próprio pai, houvera sido, por volta de 470 d.C., procurador de uma escola nessa cidade. Enfim, os conhecimentos de grego, literatura e filosofia que Boécio demonstrava estavam muito além da média, mesmo para um indivíduo de uma classe tradicional e abastada como a dos Anícios, principalmente se levarmos em consideração o período de conturbação social vigente, marcado pela decadência de um império e por invasões bárbaras, com um ensino em pleno declínio e um evidente recuo da filosofia clássica. Frente a escassez de pessoas com formação erudita, um jovem Severino Boécio viria a prestar seus serviços ao rei ostrogótico Teodorico, o Grande (que governou o reino ostrogótico entre 474 e 526 d.C.) tendo sido encarregado de diversas funções de grande responsabilidade.

Reino ostrogótico ao tempo de Teodorico: note que Roma faz parte dele

Por volta de 520 d.C., então com cerca de 40 anos, Boécio ocupava a posição de mestre de ofícios (correspondente à de governador da corte) bem como chefe dos serviços governamentais do monarca. Mesmo tendo se tornado amigo e confidente do rei, o destino não o livraria no ano de 523 d.C. de ser preso por ordem de Teodorico, depois de discursar defendendo a inocência do senador Albino, que caíra em desgraça ao ser acusado de traição por ter escrito uma missiva ao imperador bizantino Justino I, na qual teria se queixado da maneira de governar de Teodorico. Outras fontes afirmam que Boécio teria sido acusado de ter se envolvido em uma conspiração para restaurar a república romana a favor do imperador bizantino, um cristão ortodoxo, e contra o reino de Teodorico – este, um defensor do arianismo[2]. Ainda que o cisma religioso entre o reino ostrogótico e o império bizantino fosse um assunto superado em 520 d.C., as tensões entre ambos ainda era intensa e o helenismo de Boécio – que o deixava mais próximo de Constantinopla que de Roma – tornava-o um alvo óbvio para os seus detratores. Para piorar a situação, ele também seria acusado de magia, envolvido que estava em estudos de astronomia (sendo que a astrologia nessa época também fazia parte da astronomia, não se distinguindo claramente desta), assunto considerado sacrílego, o que Boécio negou veementemente, afirmando que sua prisão ocorria por influência de seus desafetos pessoais.

[2] O arianismo foi uma visão cristológica antitrinitária sustentada pelos seguidores de Ário, presbítero cristão de Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva, que negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus.

Iluminura de Boécio preso, manuscrito de Gregorius de Gênova e do escriba “Irmão Amadeus”, Itália, 1.385.
Seja com for, Boécio viu retiradas todas as suas honras, seus bens foram confiscados e ele foi aprisionado e torturado na cidade italiana de Pávia. Uma vez na prisão, escreveria a obra De Consolatione Philosophiae (A Consolação da Filosofia), considerada um dos seus melhores trabalhos, na qual reflete sobre a instabilidade de um Estado cujo governo depende de um único homem, e aborda princípios metafísicos, entre os quais o conceito de eternidade. Foi também nessa obra que surgiria a “roda de Boécio” ou “roda da Fortuna”, um conceito que estabelece que a sorte dos indivíduos se alterne, permitindo que ricos e poderosos sejam humilhados e destruídos e que os desprotegidos possam ascender à grandeza.

A dama Fortuna e sua roda. Iluminura da obra “Coëtivy Master” (Henri de Vulcop, 1450 - 1485), pertencente ao Museu J. Paul Getty, Los Angeles, Ms. 42 (91.MS.11)
De todo modo, por ordem do rei Teodorico e ratificada pelo Senado (aparentemente sob coação), Boécio foi executado em Pávia no final de 524 d.C. ou início de 525 d.C., sem chegar a ser julgado. Considerado o “último dos romanos” e o primeiro entre os filósofos escolásticos, a fama de Boécio foi duradoura através de suas obras, que serviram durante a idade média como fonte de acesso à filosofia, à matemática e à música da antiguidade clássica. Especificamente sobre a obra De Institutione Arithmetica, é nela que aparece pela primeira vez a denominação numerus primus como tradução ao grego protói arithmós para números primos. Pouco mais de duzentos anos após a morte de Boécio, o desenvolvimento da matemática ganha novo alento graças ao império islâmico, que zelosamente traduziu inúmeras obras clássicas helênicas para o árabe. Thabit ibn Qurra (836 d.C. – 901 d.C.) um sábio oriundo de Harran (norte da Mesopotâmia), foi um importante tradutor e revisor dessas obras gregas. Além de traduzir obras dos principais matemáticos gregos, era médico da côrte do califado Omíada. Traduziu o Arithmetike eisagoge de Nicômaco, vindo a descobrir uma interessante regra para encontrar números amigáveis. Números amigáveis são dois números naturais relacionados de tal forma que a soma dos divisores de um dos números resulta no outro. Por exemplo, o menor par de números amigáveis é (220, 248); os fatores de 220 são: 1, 2, 4, 5, 10, 11, 20, 22, 44, 55 e 110, cuja soma é 284; e os fatores de 284 são: 1, 2, 4, 71 e 142, cuja soma é 220. A investigação dos números amigáveis criou uma tradição no antigo Islã: o matemático Kamal al-Din al-Farisi (? – ~1.320 d.C.) descobriu o par de números amigáveis 17.926 e 18.416 com base na regra de Thabit; e o matemático Muhammad Baqir Yazdi (? – 1.637 d.C.) descobriu o par 9.363.584 e 9.437.056. Thabit também desenvolveria uma fórmula para gerar números que atualmente são chamados de “números Thabit” ou “números 321”. A fórmula é a seguinte:

$$ 3\times 2^{n}-1 $$

Sendo n um número inteiro não negativo. Esta fórmula também gera números primos, sendo que o maior já obtido através da equação de Thabit foi encontrado em junho de 2015, cuja formulação é:

$$ 3\times 2^{11.895.718}-1 $$

Um número primo com 3.580.969 dígitos! Entretanto, o retorno de um estudo sério sobre os números primos só voltaria à baila no século XVII, através dos trabalhos do advogado e matemático francês Pierre de Fermat (1601 – 1665) em sua pesquisa com números perfeitos. Correspondendo-se com outros matemáticos de seu tempo, em particular com o monge e matemático francês Marin Mersenne (1588 – 1648), conjectura em uma de suas cartas que todos os números da forma:

$$ (2^{2^{n}}+1) $$

onde n é um número inteiro, são primos. Fermat validou sua fórmula somente até n = 4. Note que, para n = 1, temos:

$$ (2^{2^{1}}+1)=(2^{2}+1)=(4+1)=5 $$

Para n = 2:

$$ (2^{2^{2}}+1)=(2^{4}+1)=(16+1)=17 $$

Para n = 3:

$$ (2^{2^{3}}+1)=(2^{8}+1)=(256+1)=257 $$

Para n = 4:

$$ (2^{2^{4}}+1)=(2^{16}+1)=(65.536+1)=65.537 $$

Todos os resultados obtidos até aqui são números primos. Porém, para n = 5:

$$ (2^{2^{5}}+1)=(2^{32}+1)=(4.294.967.296+1)=4.294.967.297 $$

O número obtido não é primo, uma vez que possui um terceiro fator ou divisor (641), além do 1 e dele mesmo. Observe:

$$ 4.294.967.297\div641=6.700.417 $$

Foi o matemático suíço Leonhard Euler quem faria essa demonstração, mais de cem anos depois. De fato, até hoje nenhum outro número primo foi obtido a partir da fórmula de Fermat... Mersenne também estudou esses números, porém na forma (2p - 1), conjecturando que, se p for primo, os números obtidos também serão primos. Em 1644 ele publicaria um trabalho denominado Cogita physico-mathematica (Reflexões físico-matemáticas), onde afirma que (2p - 1) será primo para p = 2, 3, 5, 7, 13, 17, 19, 31, 67, 127 e 257. Estes números ficaram conhecidos como “números de Mersenne”[3] ou Mp. Note, entretanto, que o monge francês omite o número 11 que também é primo (entre outros primos até 257). Observe que, para M11, temos:

$$ M_{11}=(2^{11}-1)=(2.048-1)=2.047 $$

[3] Mersenne equivoca-se neste ponto, pois tanto o número 67 quanto o 257 são compostos.


E o número 2.047 possui como fatores o 23 e o 89, além do 1 e dele mesmo, sendo portanto um número composto. Ou seja: nem todo p primo gera outro número primo a partir de (2p - 1). Fato é que durante muitos anos os maiores números primos conhecidos foram obtidos a partir da fórmula de Mersenne. O matemático italiano Pietro Cataldi (1548 – 1626) provaria que M19 é de fato primo, e este seria o maior número primo provado por cerca de duzentos anos, quando Euler provaria que M31 é primo. Em 1876, o matemático francês Édouard Lucas (1842 – 1891) provaria que M127 é realmente primo, como alegava Mersenne. Com o alvorecer da era computacional, novos avanços seriam alcançados: o matemático estadunidense Raphael Mitchel Robinson (1911 – 1995) descobriria os números primos M521, M607, M1279, M2203 e M2281. E em dezembro de 2018 foi anunciado o maior número de Mersenne jamais encontrado, pelo grupo GIMPS – Great Internet Mersenne Prime Search (Grande Busca na Internet pelos Primos Mersenne): o M82.589.933, um número primo contendo um total de 24.862.048 dígitos! O acaso muitas vezes fornece resultados intrigantes ao lidarmos com números; um desses acasos denomina-se “espiral de Ulam”, nada mais que um método simples de representar números primos por meio de um grafo[4], que revela um padrão até hoje sem explicação. A espiral foi descoberta pelo matemático polonês Stanislaw Marcin Ulam, durante um encontro científico em 1963. Entediado com a palestra, Ulam rabiscava um grafo com números num papel; começando pelo número 1 ele continuou a numeração sequencialmente, em uma espiral quadrada, para o exterior, conforme a seguir:


[4] Em matemática, grafo é a representação gráfica de um conjunto de pontos chamados vértices (geralmente representados por um círculo), e para cada aresta é desenhada uma linha, denominada arco, conectando suas extremidades. Um artigo do matemático Leonhard Euler, de 1760, sobre o problema das sete pontes de Königsberg, é considerado o primeiro resultado da teoria dos grafos, e também um dos primeiros resultados topológicos na geometria.


Ao assinalar todos os primos, a figura alterou-se para:

Ulam observou, surpreso, que os números primos assinalados tendiam a agrupar-se em diagonais. A figura abaixo é uma espiral de Ulam, montada em uma matriz composta de 200 por 200 pontos, representando o grafo sequencial de 40.000 números inteiros, onde os primos estão marcados em preto. Nota-se claramente a formação de diagonais, confirmando o padrão:

Espiral de Ulam com os números primos como pontos negros, formando diagonais

Existe um problema bem conhecido em teoria dos números (ramo da matemática pura que estuda os números em geral e em particular os números inteiros) que é atualmente conhecida como "Conjectura de Goldbach". Foi enunciada pela primeira vez pelo matemático alemão Christian Goldbach em uma carta enviada em 7 de Julho de 1742 a outro gigante da matemática, o suíço Leonhard Euler.

Carta de Goldbach a Euler, em que tece suas considerações sobre certas propriedades dos números primos, atualmente conhecidas como Conjectura de Goldbach.
Em sua carta, Goldbach comenta que:

"qualquer número maior que 6 parece ser a soma de três números primos"

Euler não apenas constatou que a afirmação era verdadeira, como se decompunha em duas:
  • Todo número par maior que 2 é a soma de dois primos;
  • Todo número ímpar é a soma de 3 primos.
Leonhard Euler
A segunda afirmação de Euler, chamada “Conjectura fraca de Goldbach” foi comprovada pelo matemático russo Ivan Matveyevich Vinogradov na década de 1930, mas apenas para números ímpares suficientemente grandes, e por isso recebe o nome de "Teorema de Vinogradov".
Ivan Vinogradov
Somente em 2013 o matemático peruano Harald Andrés Helfgott conseguiu provar que qualquer número ímpar maior que 5 pode ser decomposto na soma de até 3 números primos; por esse feito, Harald foi o primeiro latino americano a ganhar o prêmio de pesquisa Humboldt, da Alemanha, em 2015.

O matemático peruano Harald Andrés Helfgott
Já a primeira afirmação, a que permanece sem solução, é o que chamamos de "Conjectura forte de Goldbach"; de fato, ela parece válida, como se observa nos casos a seguir:
8=3+5
10=3+7
22=5+17

Estes exemplos demonstram que um número par pode ser obtido pela soma de dois primos. O que ainda não se conseguiu provar é se todo número par pode ser obtido pela soma de dois primos.


Há uma maneira visual de demonstrar se um número é par ou ímpar: utilizando uma balança. Considere que um determinado número possa ser representado por pesos de valor unitário. Se um número for par, como o 4, ele será composto de 4 pesos unitários que, divididos igualmente em duas partes e colocados nos pratos de uma balança, a manterão em equilíbrio. Se um número for ímpar, como o 5, ele será composto de 5 pesos unitários que não poderão ser divididos em partes iguais nos pratos da balança: um dos pratos terá um peso a mais, colocando-a em desequilíbrio. Entretanto, considere a balança abaixo:

Esta balança contém zero pesos unitários em cada um de seus pratos, divididos igualmente em dois grupos nulos, mantendo-a em equilíbrio. Outra forma visual interessante de demonstrar que o zero é par está indicada abaixo:

Observe que os números pares, à esquerda, não possuem meias-luas individuais; cada número ímpar, porém, possui uma meia-lua solitária, destacada em azul. Para o zero, temos:


Como ocorre com os demais números pares, não há meia-lua solitária no exemplo acima. Observa-se que o zero é um número par. Quanto à questão se o zero é primo, devemos lembrar a definição de um número primo: qualquer número inteiro positivo que tenha exatamente dois fatores. O número 7 é primo, pois só é divisível por 1 e por ele mesmo (dois fatores). O número 8 não é primo, pois é divisível por 1, por 2, por 4 e por ele mesmo (4 fatores). O número zero, por sua vez, é divisível por infinitos fatores (qualquer número inteiro pode dividir o zero), logo ele não é primo.


Mas será que os números primos servem apenas para o deleite de abstração das mentes racionais? Não, no presente caso; de fato, os números primos são amplamente utilizados nas modernas comunicações digitais criptografadas. A criptografia, uma junção das palavras gregas kryptós (escondido) e gráphein (escrita), é o estudo dos princípios e técnicas pelas quais a informação pode ser transformada de sua forma original por outra ilegível, de modo que o conteúdo só possa ser conhecido pelo destinatário detentor da chave secreta capaz de decifrá-la. O uso de mensagens cifradas para a transmissão segura contra olhares indiscretos é tão antiga quanto a necessidade do homem em esconder a informação, e dela fizeram uso os egípcios, os gregos com suas cítalas, os romanos com a “cifra de César”, os alemães na segunda guerra mundial com a máquina Enigma, e o mundo nos dias de hoje com a mensageria eletrônica pela Internet entre pessoas, corporações e governos. Até meados de 1970 o trabalho de criptografia era secreto e realizado em setores governamentais especializados. Em 1976, dois pesquisadores estadunidenses, o matemático Bailey Whitfield Diffie e o criptógrafo Martin Edward Hellman, publicaram o artigo científico New Directions in Cryptography (Novas direções em criptografia), que iniciou a pesquisa em sistemas de criptografia de chaves públicas, que fazem uso de números primos muito grandes em sua estrutura e cujo método criptográfico é a base de todas as comunicações cifradas modernas.

À esquerda, o matemático Stanislaw Ulam; ao centro, o matemático Whitfield Diffie; à direita, o criptógrafo Martin Hellman.
Se os números primos são um elemento essencial nas comunicações criptográficas atuais, são também o seu calcanhar-de-Aquiles. Ainda não se encontrou uma fórmula que forneça, exatamente e sem exceções, apenas números primos. Porém, o matemático alemão Bernhard Riemann (1826 – 1866) propôs em 1859 um magnífico artigo de apenas oito páginas, seu único trabalho em teoria dos números, onde investiga o padrão de aparecimento dos números primos entre os números naturais. Embora não tenha obtido sucesso em sua demonstração, Riemann esquematizou o caminho para futuros progressos nessa investigação em diversas conjecturas bem estruturadas, dentre as quais destaca-se a famosa “hipótese de Riemann”, que afirma que a distribuição dos números primos não é aleatória, tal como é classificada, mas seguiria um padrão descrito por uma equação chamada “função zeta de Riemann”.

O matemático alemão Bernhard Riemann
A hipótese de Rieman é um dos sete problemas matemáticos sem solução propostos pelo Instituto Clay de Matemática de Cambridge; o instituto concede, para a solução de cada um desses problemas, um prêmio de um milhão de dólares. Se a hipótese de Riemann for provada um dia, todo o sistema de segurança criptográfico existente na Internet nos moldes atuais ficará vulnerável, pois a aparente aleatoriedade na distribuição dos números primos – um trunfo quando se trabalha com primos muito grandes (vide a dificuldade de se encontrar números primos pela equação de Mersenne, que até hoje só forneceu 51 primos) – deixaria de existir, sendo muito mais fácil sua identificação e, consequentemente, decriptografar as chaves públicas de qualquer comunicação na rede mundial tornar-se-ia tarefa exequível. Do exposto, nota-se que a humanidade levou ao menos 20.000 anos desde a confecção do osso de Ishango para dar uma aplicação prática aos números primos, nesse avançar paulatino do conhecimento, que os versos do Discursos de la cifra tão bem refletem, na astúcia de suas palavras:


Nesta vida emprestada / Em que o bem viver é a chave / Aquele que se salva, sabe / Que o outro não sabe nada.
 

Referências bibliográficas:

[1]

Pletser, V. “Does the Ishango bone indicate knowledge of base 12? An interpretation of a prehistoric discovery, the first mathematical tool of humankind”, European Space Research and Technology Centre, 2012.

[2]

Abdulaziz, A. A. "On the Egyptian method of decomposing 2/n into unit fractions", Historia Mathematica 35, pags. 1 - 18, 2008.

[3]

Cornelli, G. "O pitagorismo como categoria historiográfica", Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. ISBN: 978-989-8281-95-1, ISBN-e: 978-989-8281-96-8

[4]

Araújo, H.; Garapa, M.; Luís, R. "Elementos de Euclides - Livros VII e IX", Trabalho elaborado no âmbito da cadeira de Fundamentos Históricos da Matemática Inserida no Mestrado em Matemática, Funchal, Fevereiro/2005.

[5]

Platão, "Diálogos: Fédon", tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, Abril Cultural, 1972.

[6]

O'Connor, J. J.; Robertson, E. F. "Eratosthenes of Cyrene", School of Mathematics and Statistics University of St Andrews, Scotland, 1999. Site: https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/Biographies/Eratosthenes/

[7]

Gerasa, N. "Introduction to Arithmetic", tradução de Joseph Muscat, 2015.

[8]

Wikipedia, "Boécio", acessado em Abril/2021. Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bo%C3%A9cio

[9]

Wikipedia, "Teodorico, o Grande", acessado em Abril/2021. Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teodorico,_o_Grande

[10]

Britannica, “Mathematics In The Islamic World (8th–15th Century)”. Site: https://www.britannica.com/science/mathematics/Mathematics-in-the-Islamic-world-8th-15th-century. Acessado em Abril/2021.

[11]

Wikipedia “Thabit number”, acessado em Abril/2021. Site: https://en.wikipedia.org/wiki/Thabit_number

[12]

Nath, R. "A Primer on Prime Numbers", Dream 2047, Volume 14, No. 7, April/2012, págs. 29 – 31.

[13]

Fonseca, R. V. "Teoria dos Números", Universidade do Estado do Pará, 2011. ISBN: 978-85-88375-66-6

[14]

Euler, L. "Sobre números amigáveis", tradução de Fabrício Possebon, John A. Fossa e Sarah Mara Silva Leôncio, Editora da UFRN, 2015. ISBN: 978-85-425-0524-5

[15]

Wells, D. "The Penguin Dictionary of Curious and Interesting Numbers", Penguin Books, 1987.

[16]

Fiarresga, V. M. C. "Criptografia e Matemática", Mestrado em Matemática para Professores, Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Departamento de Matemática, 2010.

[17]

Diffie, W.; Hellman, M. "New Directions in Cryptography", IEEE Transactions on Information Theory, Volume IT-22, No. 6, November/1976, págs. 644 – 654.

[18]

Autor desconhecido, “Discursos de la cifra”, escrito por um criptógrafo a serviço de Martín de Córdova, vice-rei de Navarro e dedicado a Juan Fernandez de Velasco, século XVI d.C.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.