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Membros da escola pitagórica celebrando o nascimento do sol - Fyodor Bronnikov, 1869. |
Os pitagóricos davam grande
importância ao número 1, ao qual denominavam mônad, palavra grega que significa “unidade”, gerador dos números,
que por sua vez deu origem à primeira díade ou dupla, o 2, o primeiro par,
simbolizando o feminino e a opinião. O 2 por sua vez gerou o 3, o primeiro arithmós, que significa “número”, que
simbolizava o masculino, a verdade, pois é composto da unidade e da díade. O
número 4 simbolizava a justiça, o primeiro quadrado perfeito; o número 5 estava
associado ao matrimônio, pois continha em si mesmo a soma de 2 (um número
feminino, ou par) com 3 (este um número masculino, ou ímpar). O número 10, ou tetractys, era o mais sagrado dos números e representava o universo,
pois era a soma de todas as dimensões geométricas: 1 ponto, que gera as dimensões;
2 pontos, que formam uma reta unidimensional; 3 pontos, que formam um triângulo
bidimensional; e 4 pontos dispostos em diferentes planos para formar um
tetraedro, que é uma estrutura tridimensional. A soma: 1 + 2 + 3 + 4 dá 10, ou
seja, a totalidade das dimensões. Pitágoras notou também que havia dois tipos
de arithmós: os protói arithmós (números primários ou primos), que são aqueles que
não podem ser gerados pela multiplicação de outros números, como é o caso do 2,
3, 5, 7, etc.; e os deuterói arithmós
(números secundários), que são gerados pela multiplicação de outros números,
como é o caso do 4, 6, 8, 9, etc. A obra grega mais antiga que detalha o estudo
dos números primos é o Elementos de
Euclides (cerca de 300 a.C.), um dos maiores catedráticos que o Museu de Alexandria
jamais abrigou em suas paredes; sabe-se que Euclides seguiu de perto os preceitos
matemáticos pitagóricos e, por isso, não causa surpresa a definição que ele dá
para número primo, no volume VII, definição 11, dessa obra:
“protós arithmós estin monadi mone metroymenos”
Ou seja:
“número primo é todo aquele que só pode ser medido
pela unidade”
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Busto de Pitágoras – Museu do Vaticano |
Euclides provou muitos fatos
básicos importantes que hoje consideramos corretos, por exemplo, o de que
existem infinitos primos, bem como a relação entre números perfeitos e números
primos. Na teoria dos números, um número perfeito é um inteiro positivo cuja
soma de seus divisores resulta nele próprio. Por exemplo: o número 6 é
perfeito, pois a soma de seus divisores (1, 2 e 3) resulta nele mesmo:
$$ 1 + 2 + 3 = 6 $$
De
fato, Euclides mostrou que se:
$$ 2^{n} - 1 $$
é
um número primo, então:
$$ 2^{n-1}(2^{n}-1) $$
será
um número perfeito. Outro pensador helênico que
se debruçou sobre este assunto foi o matemático Eratóstenes de Cirene (276 a.C.
– 194 a.C.), mais um grande catedrático que o Museu de Alexandria produziu, e a
quem se atribui a criação de um algoritmo para encontrar números primos chamado
“coador de Eratóstenes”. Vejamos então como funciona esse algoritmo, procurando
por números primos no intervalo entre 2 e 20:
Começamos o algoritmo pela marcação de todos os números múltiplos de 2 (para isso, temos de nos lembrar das tabuadas!), ou seja, todos os deuterói arithmós múltiplos de 2. Teremos:
Marcamos os números 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18 e 20, pois são todos múltiplos de 2. Agora, seguindo o mesmo procedimento, pegamos o próximo número não selecionado à direita do 2 (neste caso, o 3), e marcaremos todos os seus múltiplos. Chegamos a:
Apenas os números 9 e 15 foram marcados, pois o 6, o 12 e o 18, que também são múltiplos de 3, já haviam sido previamente selecionados, pois também são múltiplos de 2. Seguindo este mesmo raciocínio, pegamos agora o próximo número não selecionado à direita do 3, que é o 5. Os números 15 e 20, que são múltiplos de 5, já haviam sido respectivamente marcados previamente como múltiplos de 3 e 2. Logo, não há números múltiplos de 5 entre 2 e 20 a serem selecionados. O mesmo ocorre para o próximo número não marcado à direita do 5, o número 7, pois o único múltiplo de 7 entre 2 e 20 é o 14, que também é múltiplo de 2. Já os números 11, 13, 17 e 19 não têm múltiplos entre 2 e 20, pois o primeiro múltiplo de 11 é 22, de 13 é 26, de 17 é 34 e de 19 é 38. O resultado final obtido com o coador de Eratóstenes é:
Resulta que os números 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17 e 19, em destaque nas caixas pretas, são todos números primos. Observe que à medida que o procedimento avança, vão sobrando cada vez menos números, dando a impressão de que foram "coados" (ou filtrados) dos demais, daí o nome deste interessante algoritmo.
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Coador grego em forma de jarro, séculos 7 a 6 a.C. |
Depois de Eratóstenes, foi
o matemático grego Nicômaco de Gerasa (~60 d.C. - ~120 d.C.) quem se ocupou da
teoria dos números com sua obra Arithmetike
eisagoge (Introdução à aritmética), um material que chegou até os dias
atuais contendo apenas dois livros, possivelmente uma versão abreviada da
original. Pouco se sabe sobre Nicômaco, exceto que era oriundo de Gerasa, uma
província romana da Síria (atual Jordânia). Os historiadores costumam
considerá-lo um neo-pitagórico, dada a sua tendência de se interessar mais
pelas propriedades místicas dos números do que por suas propriedades
matemáticas. O Arithmetike eisagoge
lida com a diferenciação entre os números imateriais totalmente conceituais (números
divinos) e os números que medem as coisas materiais (números científicos); aborda
ainda a importância dos números primos, e argumenta que a aritmética é
ontologicamente anterior às demais ciências matemáticas, sendo sua causa (na
época, as outras ciências matemáticas eram a música, a geometria e a astronomia).
Foi Nicômaco quem observou que o número 8128 é perfeito; até então, somente se
conheciam outros três números perfeitos: 6, 28 e 496, estabelecendo (sem
provas) que todo número perfeito obedece
ao algoritmo de Euclides:
$$ 2^{n-1}(2^{n}-1) $$
Nicômaco ainda afirma,
erroneamente, que os números perfeitos terminam em 6 e 8 alternadamente. A
Introdução à aritmética de Nicômaco serviu de base a outra obra, esta em latim:
De Institutione Arithmetica (A
Instituição Aritmética) do filósofo, estadista e teólogo romano Anício Mânlio
Torquato Severino Boécio, ou simplesmente Boécio (~480 d.C. – 524/525 d. C.).
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Busto de Boécio. Desenho de
autor desconhecido |
Nascido nos estertores do império
romano do ocidente, numa Europa que se afastava da antiguidade clássica para
aproximar-se da idade média, Boécio pertencia a uma família patrícia
tradicional, os Anícios, que deram a Roma vários cônsules, ao menos dois papas
e um imperador (Anício Olíbrio). Notabilizou-se pela tradução, do grego para o
latim, de obras clássicas de filosofia, de tratados sobre matemática, lógica e
teologia, e foi ainda um teórico da música da antiguidade clássica
greco-romana. Não se sabe onde nem como Boécio aprendeu a língua grega com tal
proficiência e profundidade, nem onde adquiriu os amplos conhecimentos dos
autores clássicos apresentados em suas obras, mas alguns pesquisadores supõem que
ele tenha estudado em Alexandria, já que existem evidências de que um Boécio,
talvez seu próprio pai, houvera sido, por volta de 470 d.C., procurador de uma
escola nessa cidade. Enfim, os conhecimentos de grego, literatura e filosofia
que Boécio demonstrava estavam muito além da média, mesmo para um indivíduo de
uma classe tradicional e abastada como a dos Anícios, principalmente se
levarmos em consideração o período de conturbação social vigente, marcado pela
decadência de um império e por invasões bárbaras, com um ensino em pleno
declínio e um evidente recuo da filosofia clássica. Frente a escassez de
pessoas com formação erudita, um jovem Severino Boécio viria a prestar seus
serviços ao rei ostrogótico Teodorico, o Grande (que governou o reino
ostrogótico entre 474 e 526 d.C.) tendo sido encarregado de diversas funções de
grande responsabilidade.
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Reino ostrogótico ao tempo de Teodorico: note que Roma faz
parte dele |
Por volta de 520 d.C.,
então com cerca de 40 anos, Boécio ocupava a posição de mestre de ofícios
(correspondente à de governador da corte) bem como chefe dos serviços
governamentais do monarca. Mesmo tendo se tornado amigo e confidente do rei, o
destino não o livraria no ano de 523 d.C. de ser preso por ordem de Teodorico, depois
de discursar defendendo a inocência do senador Albino, que caíra em desgraça ao
ser acusado de traição por ter escrito uma missiva ao imperador bizantino
Justino I, na qual teria se queixado da maneira de governar de Teodorico.
Outras fontes afirmam que Boécio teria sido acusado de ter se envolvido em uma
conspiração para restaurar a república romana a favor do imperador bizantino,
um cristão ortodoxo, e contra o reino de Teodorico – este, um defensor do
arianismo.
Ainda que o cisma religioso entre o reino ostrogótico e o império bizantino
fosse um assunto superado em 520 d.C., as tensões entre ambos ainda era intensa
e o helenismo de Boécio – que o deixava mais próximo de Constantinopla que de
Roma – tornava-o um alvo óbvio para os seus detratores. Para piorar a situação,
ele também seria acusado de magia, envolvido que estava em estudos de
astronomia (sendo que a astrologia nessa época também fazia parte da
astronomia, não se distinguindo claramente desta), assunto considerado
sacrílego, o que Boécio negou veementemente, afirmando que sua prisão ocorria
por influência de seus desafetos pessoais. |
Iluminura de Boécio preso,
manuscrito de Gregorius de Gênova e do escriba “Irmão Amadeus”, Itália, 1.385. |
Seja com for, Boécio viu
retiradas todas as suas honras, seus bens foram confiscados e ele foi
aprisionado e torturado na cidade italiana de Pávia. Uma vez na prisão,
escreveria a obra De Consolatione
Philosophiae (A Consolação da Filosofia), considerada um dos seus melhores
trabalhos, na qual reflete sobre a instabilidade de um Estado cujo governo
depende de um único homem, e aborda princípios metafísicos, entre os quais o
conceito de eternidade. Foi também nessa obra que surgiria a “roda de Boécio”
ou “roda da Fortuna”, um conceito que estabelece que a sorte dos indivíduos se
alterne, permitindo que ricos e poderosos sejam humilhados e destruídos e que
os desprotegidos possam ascender à grandeza.
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A dama Fortuna e sua roda.
Iluminura da obra “Coëtivy Master” (Henri de Vulcop, 1450 - 1485), pertencente
ao Museu J. Paul Getty, Los Angeles, Ms. 42 (91.MS.11) |
De todo modo, por ordem do
rei Teodorico e ratificada pelo Senado (aparentemente sob coação), Boécio foi
executado em Pávia no final de 524 d.C. ou início de 525 d.C., sem chegar a ser
julgado. Considerado o “último dos romanos” e o primeiro entre os filósofos
escolásticos, a fama de Boécio foi duradoura através de suas obras, que serviram
durante a idade média como fonte de acesso à filosofia, à matemática e à música
da antiguidade clássica. Especificamente sobre a obra De Institutione Arithmetica, é nela que aparece pela primeira vez a
denominação numerus primus como
tradução ao grego protói arithmós
para números primos. Pouco mais de duzentos anos após a morte de Boécio, o
desenvolvimento da matemática ganha novo alento graças ao império islâmico, que
zelosamente traduziu inúmeras obras clássicas helênicas para o árabe. Thabit
ibn Qurra (836 d.C. – 901 d.C.) um sábio oriundo de Harran (norte da
Mesopotâmia), foi um importante tradutor e revisor dessas obras gregas. Além de
traduzir obras dos principais matemáticos gregos, era médico da côrte do
califado Omíada. Traduziu o Arithmetike
eisagoge de Nicômaco, vindo a descobrir uma interessante regra para encontrar
números amigáveis. Números amigáveis são dois números naturais relacionados de
tal forma que a soma dos divisores de um dos números resulta no outro. Por
exemplo, o menor par de números amigáveis é (220, 248); os fatores de 220 são: 1,
2, 4, 5, 10, 11, 20, 22, 44, 55 e 110, cuja soma é 284; e os fatores de 284 são:
1, 2, 4, 71 e 142, cuja soma é 220. A investigação
dos números amigáveis criou uma tradição no antigo Islã: o matemático Kamal
al-Din al-Farisi (? – ~1.320 d.C.) descobriu o par de números amigáveis 17.926 e
18.416 com base na regra de Thabit; e o matemático Muhammad Baqir Yazdi (? –
1.637 d.C.) descobriu o par 9.363.584 e 9.437.056. Thabit também desenvolveria
uma fórmula para gerar números que atualmente são chamados de “números Thabit”
ou “números 321”. A fórmula é a seguinte:
$$ 3\times 2^{n}-1 $$
Sendo
n um número inteiro não negativo.
Esta fórmula também gera números primos, sendo que o maior já obtido através da
equação de Thabit foi encontrado em junho de 2015, cuja formulação é:
$$ 3\times 2^{11.895.718}-1 $$
Um
número primo com 3.580.969 dígitos! Entretanto, o retorno de um estudo sério
sobre os números primos só voltaria à baila no século XVII, através dos
trabalhos do advogado e matemático francês Pierre de Fermat (1601 – 1665) em
sua pesquisa com números perfeitos. Correspondendo-se com outros matemáticos de
seu tempo, em particular com o monge e matemático francês Marin Mersenne (1588
– 1648), conjectura em uma de suas cartas que todos os números da forma:
$$ (2^{2^{n}}+1) $$
onde
n é um número inteiro, são primos.
Fermat validou sua fórmula somente até n
= 4. Note que, para n = 1, temos:
$$ (2^{2^{1}}+1)=(2^{2}+1)=(4+1)=5 $$
Para
n = 2:
$$ (2^{2^{2}}+1)=(2^{4}+1)=(16+1)=17 $$
Para
n = 3:
$$ (2^{2^{3}}+1)=(2^{8}+1)=(256+1)=257 $$
Para n = 4:
$$ (2^{2^{4}}+1)=(2^{16}+1)=(65.536+1)=65.537 $$
Todos
os resultados obtidos até aqui são números primos. Porém, para n = 5:
$$ (2^{2^{5}}+1)=(2^{32}+1)=(4.294.967.296+1)=4.294.967.297 $$
O
número obtido não é primo, uma vez que possui um terceiro fator ou divisor
(641), além do 1 e dele mesmo. Observe:
$$ 4.294.967.297\div641=6.700.417 $$
Foi
o matemático suíço Leonhard Euler quem faria essa demonstração, mais de cem
anos depois. De fato, até hoje nenhum outro número primo foi obtido a partir da
fórmula de Fermat... Mersenne também estudou esses números, porém na forma (2p - 1), conjecturando que,
se p for primo, os números obtidos
também serão primos. Em 1644 ele publicaria um trabalho denominado Cogita physico-mathematica (Reflexões
físico-matemáticas), onde afirma que (2p
- 1) será primo para p = 2, 3, 5,
7, 13, 17, 19, 31, 67, 127 e 257. Estes números ficaram conhecidos como
“números de Mersenne”
ou Mp. Note, entretanto, que o monge francês omite o número 11 que
também é primo (entre outros primos até 257). Observe que, para M11,
temos:
$$ M_{11}=(2^{11}-1)=(2.048-1)=2.047 $$
E o
número 2.047 possui como fatores o 23 e o 89, além do 1 e dele mesmo, sendo
portanto um número composto. Ou seja: nem todo p primo gera outro número primo a partir de (2p - 1). Fato é que durante muitos anos os maiores
números primos conhecidos foram obtidos a partir da fórmula de Mersenne. O
matemático italiano Pietro Cataldi (1548 – 1626) provaria que M19 é
de fato primo, e este seria o maior número primo provado por cerca de duzentos
anos, quando Euler provaria que M31 é primo. Em 1876, o matemático
francês Édouard Lucas (1842 – 1891) provaria que M127 é realmente
primo, como alegava Mersenne. Com o alvorecer da era computacional, novos
avanços seriam alcançados: o matemático estadunidense Raphael Mitchel Robinson
(1911 – 1995) descobriria os números primos M521, M607, M1279,
M2203 e M2281. E em dezembro de 2018 foi anunciado o
maior número de Mersenne jamais encontrado, pelo grupo GIMPS – Great Internet
Mersenne Prime Search (Grande Busca na Internet pelos Primos Mersenne): o M82.589.933,
um número primo contendo um total de 24.862.048 dígitos! O acaso muitas vezes
fornece resultados intrigantes ao lidarmos com números; um desses acasos
denomina-se “espiral de Ulam”, nada mais que um método simples de representar
números primos por meio de um grafo,
que revela um padrão até hoje sem explicação. A espiral foi descoberta pelo
matemático polonês Stanislaw Marcin Ulam, durante um encontro científico em
1963. Entediado com a palestra, Ulam rabiscava um grafo com números num papel;
começando pelo número 1 ele continuou a numeração sequencialmente, em uma
espiral quadrada, para o exterior, conforme a seguir:
Ao assinalar todos os primos, a figura alterou-se para:
Ulam observou, surpreso, que os números primos assinalados tendiam a agrupar-se em diagonais. A figura abaixo é uma espiral de Ulam, montada em uma matriz composta de 200 por 200 pontos, representando o grafo sequencial de 40.000 números inteiros, onde os primos estão marcados em preto. Nota-se claramente a formação de diagonais, confirmando o padrão:
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Espiral de Ulam com os
números primos como pontos negros, formando diagonais |
Existe um problema bem conhecido em teoria dos números (ramo da matemática pura que estuda os números em geral e em particular os números inteiros) que é atualmente conhecida como "Conjectura de Goldbach". Foi enunciada pela primeira vez pelo matemático alemão Christian Goldbach em uma carta enviada em 7 de Julho de 1742 a outro gigante da matemática, o suíço Leonhard Euler.
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Carta de Goldbach a Euler, em que tece suas considerações sobre certas propriedades dos números primos, atualmente conhecidas como Conjectura de Goldbach. |
Em sua carta, Goldbach comenta que:
"qualquer número maior que 6 parece ser a soma de três números primos"
Euler não apenas constatou que a afirmação era verdadeira, como se decompunha em duas:
- Todo número par maior que 2 é a soma de dois primos;
- Todo número ímpar é a soma de 3 primos.
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Leonhard Euler |
A segunda afirmação de Euler, chamada “Conjectura fraca de Goldbach” foi comprovada pelo matemático russo Ivan Matveyevich Vinogradov na década de 1930, mas apenas para números ímpares suficientemente grandes, e por isso recebe o nome de "Teorema de Vinogradov".
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Ivan Vinogradov |
Somente em 2013 o matemático peruano Harald Andrés Helfgott conseguiu provar que qualquer número ímpar maior que 5 pode ser decomposto na soma de até 3 números primos; por esse feito, Harald foi o primeiro latino americano a ganhar o prêmio de pesquisa Humboldt, da Alemanha, em 2015.
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O matemático peruano Harald Andrés Helfgott |
Já a primeira afirmação, a que permanece sem solução, é o que chamamos de "Conjectura forte de Goldbach"; de fato, ela parece válida, como se observa nos casos a seguir:
8=3+5
10=3+7
22=5+17
Estes exemplos demonstram que um número par pode ser obtido pela soma de dois primos. O que ainda não se conseguiu provar é se todo número par pode ser obtido pela soma de dois primos.
Há uma maneira visual de demonstrar se um número é par ou ímpar: utilizando uma balança. Considere que um determinado número possa ser representado por pesos de valor unitário. Se um número for par, como o 4, ele será composto de 4 pesos unitários que, divididos igualmente em duas partes e colocados nos pratos de uma balança, a manterão em equilíbrio. Se um número for ímpar, como o 5, ele será composto de 5 pesos unitários que não poderão ser divididos em partes iguais nos pratos da balança: um dos pratos terá um peso a mais, colocando-a em desequilíbrio. Entretanto, considere a balança abaixo:
Esta balança contém zero pesos unitários em cada um de seus pratos, divididos igualmente em dois grupos nulos, mantendo-a em equilíbrio. Outra forma visual interessante de demonstrar que o zero é par está indicada abaixo:
Observe que os números pares, à esquerda, não possuem meias-luas individuais; cada número ímpar, porém, possui uma meia-lua solitária, destacada em azul. Para o zero, temos:
Como ocorre com os demais números pares, não há meia-lua solitária no exemplo acima. Observa-se que o zero é um número par. Quanto à questão se o zero é primo, devemos lembrar a definição de um número primo: qualquer número inteiro positivo que tenha exatamente dois fatores. O número 7 é primo, pois só é divisível por 1 e por ele mesmo (dois fatores). O número 8 não é primo, pois é divisível por 1, por 2, por 4 e por ele mesmo (4 fatores). O número zero, por sua vez, é divisível por infinitos fatores (qualquer número inteiro pode dividir o zero), logo ele não é primo.
Mas será que os números primos
servem apenas para o deleite de abstração das mentes racionais? Não, no
presente caso; de fato, os números primos são amplamente utilizados nas
modernas comunicações digitais criptografadas. A criptografia, uma junção das
palavras gregas kryptós (escondido) e
gráphein (escrita), é o estudo dos
princípios e técnicas pelas quais a informação pode ser transformada de sua
forma original por outra ilegível, de modo que o conteúdo só possa ser
conhecido pelo destinatário detentor da chave secreta capaz de decifrá-la. O
uso de mensagens cifradas para a transmissão segura contra olhares indiscretos
é tão antiga quanto a necessidade do homem em esconder a informação, e dela
fizeram uso os egípcios, os gregos com suas cítalas, os romanos com a “cifra de
César”, os alemães na segunda guerra mundial com a máquina Enigma, e o mundo nos dias de hoje com a mensageria eletrônica pela
Internet entre pessoas, corporações e governos. Até meados de 1970 o trabalho
de criptografia era secreto e realizado em setores governamentais
especializados. Em 1976, dois pesquisadores estadunidenses, o matemático Bailey
Whitfield Diffie e o criptógrafo Martin Edward Hellman, publicaram o artigo
científico New Directions in Cryptography
(Novas direções em criptografia), que iniciou a pesquisa em sistemas de criptografia
de chaves públicas, que fazem uso de números primos muito grandes em sua
estrutura e cujo método criptográfico é a base de todas as comunicações
cifradas modernas.
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À esquerda, o matemático Stanislaw Ulam; ao centro, o matemático Whitfield Diffie; à direita, o criptógrafo Martin Hellman. |
Se os números primos são um
elemento essencial nas comunicações criptográficas atuais, são também o seu
calcanhar-de-Aquiles. Ainda não se encontrou uma fórmula que forneça,
exatamente e sem exceções, apenas números primos. Porém, o matemático alemão Bernhard
Riemann (1826 – 1866) propôs em 1859 um magnífico artigo de apenas oito páginas,
seu único trabalho em teoria dos números, onde investiga o padrão de
aparecimento dos números primos entre os números naturais. Embora não tenha
obtido sucesso em sua demonstração, Riemann esquematizou o caminho para futuros
progressos nessa investigação em diversas conjecturas bem estruturadas, dentre
as quais destaca-se a famosa “hipótese de Riemann”, que afirma que a distribuição
dos números primos não é aleatória, tal como é classificada, mas seguiria um
padrão descrito por uma equação chamada “função zeta de Riemann”.
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O matemático alemão Bernhard
Riemann |
A hipótese de
Rieman é um dos sete problemas matemáticos sem solução propostos pelo Instituto
Clay de Matemática de Cambridge; o instituto concede, para a solução de cada um
desses problemas, um prêmio de um milhão de dólares. Se a hipótese de Riemann
for provada um dia, todo o sistema de segurança criptográfico existente na
Internet nos moldes atuais ficará vulnerável, pois a aparente aleatoriedade na
distribuição dos números primos – um trunfo quando se trabalha com primos muito
grandes (vide a dificuldade de se encontrar números primos pela equação de
Mersenne, que até hoje só forneceu 51 primos) – deixaria de existir, sendo
muito mais fácil sua identificação e, consequentemente, decriptografar as
chaves públicas de qualquer comunicação na rede mundial tornar-se-ia tarefa exequível.
Do exposto, nota-se que a humanidade levou ao menos 20.000 anos desde a
confecção do osso de Ishango para dar uma aplicação prática aos números primos,
nesse avançar paulatino do conhecimento, que os versos do Discursos de la cifra tão bem refletem, na astúcia de suas
palavras:
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Nesta vida emprestada / Em que o bem viver é a chave / Aquele que se salva, sabe / Que o outro não sabe nada.
Referências bibliográficas:
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"Criptografia e Matemática", Mestrado em Matemática para
Professores, Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Departamento de
Matemática, 2010.
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[17]
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Diffie, W.; Hellman, M. "New Directions in Cryptography",
IEEE Transactions on Information Theory, Volume IT-22, No. 6, November/1976,
págs. 644 – 654.
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[18]
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Autor desconhecido,
“Discursos de la cifra”, escrito por um criptógrafo a serviço de Martín de
Córdova, vice-rei de Navarro e dedicado a Juan Fernandez de Velasco, século
XVI d.C.
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