Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

quinta-feira, dezembro 25, 2014

Qual a origem da matemática?

Pinturas rupestres do Parque Nacional do Peruaçu – Minas Gerais
Pinturas rupestres da Caverna de Lascaux - França

N


ão poderíamos iniciar este capítulo sem falar na origem da palavra matemática. Etimologicamente, ela veio do grego arcaico máthema, que significa “aquilo que se é aprendido” ou “aquilo que se passa a conhecer” podendo ser traduzida também como “estudo” ou “ciência”. A palavra máthema deriva do verbo manthanó, cujo significado é “aprender”. O adjetivo de manthanó é mathematikós que se traduz como “estudioso”. No latim era denominada ars mathematica, ou “técnica matemática” que bem poderia ser traduzida como a “técnica da aprendizagem”, chegando à sua forma léxica atual na língua portuguesa e que se traduz, segundo o dicionário Aurélio, como “a ciência que investiga relações entre entidades definidas abstrata e logicamente”. Bom, se não é difícil depreender que essa palavra modificou-se e evoluiu em seu significado ao longo do tempo, tanto mais a ciência à qual ela se refere passou por constantes transformações ao acompanhar a dinâmica humana e por essa razão é que sua origem se vê sempre envolta em mistérios e teorias às vezes um tanto polêmicas que buscam situá-la e justificá-la da melhor maneira possível. Ainda que nenhuma dessas teorias pouco convencionais venha a ser tratada aqui parece consenso que, começando pela solução de tarefas bem simples como a contagem de frutos e animais ou o ordenamento - primeiro, segundo, terceiro, quarto - para classificações hierárquicas ou fins ritualísticos, passando pela consecução de relações mais complexas como a divisão de alimentos entre indivíduos, cálculos de equivalências entre trocas comerciais ou a mensuração de áreas e a construção de edificações com o uso adequado de formas geométricas como o quadrado, o triângulo e o círculo, foram as necessidades de sobrevivência face às adversidades climáticas, à disponibilidade de alimentos, abrigo e proteção e a consequente exigência de priorizar e de organizar a própria subsistência que nos levou a andar de mãos dadas com a matemática desde priscas eras.
O ato de contar coisas utilizando os dedos das mãos é talvez o método mais antigo utilizado pelos humanos para manter um controle da quantidade daquilo que estava sendo contado, muito embora não houvesse um nome para cada número. A habilidade de contar e o conceito de número que a acompanhou começaram com o reconhecimento da diferença entre um, dois e muitos, uma distinção que sobreviveu em algumas culturas primitivas em tempos relativamente recentes, como a dos índios Abipones do Paraguai, que combinavam suas palavras para os números um e dois para formar números maiores; assim, para esses índios o número três era descrito como um-dois, o número quatro como dois-dois e assim sucessivamente. Outro exemplo vem de algumas tribos aborígenes da Austrália que também só contavam até dois, e qualquer número acima disso era denominado simplesmente de “muito”.
Porém, à medida que a vida em comunidade foi se tornando mais organizada e complexa, surgiu a necessidade de refinar as distinções de quantidades para “muito”. O uso de palavras para descrever quantidades maiores que dois utilizando a anatomia do corpo humano se tornaram comuns. Tome-se como exemplo os índios Tamanacas, provenientes do Rio Orinoco, que possuíam palavras para descrever os números de 1 a 4; já o número 5 era denominado “mão inteira”, o número 10 era “duas mãos” e o número 20 era “um índio”. O avanço que se dá nesse processo de contagem ocorre quando a correspondência um-para-um entre palavras numéricas e uma coleção de objetos passou a refletir a capacidade de reconhecer a equivalência quantitativa entre esses conjuntos, ou seja, percebeu-se que a representação daquilo que se contava ficava preservada nessa analogia. Assim é que uma coleção de seixos poderia ser dividida e recombinada da mesma maneira que um rebanho de cabras, exceto talvez de forma mais rápida e fácil porque os seixos não se mexem nem ficam balindo o tempo todo. As primeiras evidências arqueológicas que, supõe-se, apresentam capacidades cognitivas associadas à contagem um-para-um vêm do Paleolítico Superior, ou Idade da Pedra Lascada, que compreende um intervalo de tempo que vai de 300.000 anos a.C. até 10.000 anos a.C. aproximadamente. É desse período que são encontrados artefatos, em geral simples bastões feitos de ossos de animais com marcas ou ranhuras, bem como pin-turas rupestres com o mesmo padrão de marcas ou traços. Entre esses artefatos, uns dos mais antigos são os ossos de Cellier, com cerca de 28.000 anos de idade, encontrados na caverna Cellier, próxima ao vilarejo francês de Peyzac-le-Moustier. Outro exemplo deste tipo de artefato é o osso de Ishango, encontrado em 1960 na cabeceira do rio Nilo junto ao lago Edward no que hoje é a fronteira entre a Uganda e o Congo.
Os ossos de Cellier
Feito a partir da fíbula de um babuíno, tem como característica principal três colunas de ranhuras em sua extensão. Inicialmente estimado como tendo sido produzido entre 6.500 e 9.000 a.C., novas datações do sítio arqueológico onde foi encontrado aponta que esse artefato possa ter mais de 20.000 anos de idade. No Brasil, são muito interessantes as pinturas rupestres do Parque Nacional do Peruaçu em Minas Gerais, apresentadas no início deste capítulo, cujos conjuntos de cinco traços estão ao lado de figuras simplificadas de homens e animais e cuja idade em que foram produzidas foi datada em 15.000 a.C. Entretanto, esta capacidade unívoca de associar cada traço ou ranhura a um objeto sofreu uma aparentemente simples mas poderosa evolução quando nossos ancestrais se tornaram capazes da contagem concreta ao criar símbolos que passaram a representar quantidades específicas para os objetos quantificados. Estes símbolos, que suprimiram completamente os artefatos com ranhuras, eram fichas de argila cozida de diversos formatos geométricos (como esferas, discos e triângulos), apropriados inclusive para identificar o tipo de mercadoria em trocas comerciais, cujos mais antigos exemplares foram encontrados na região de Zagros, atual Irã, e datam de cerca de 8.000 a.C. Este tipo de registro envolvendo um sistema de contagem foi utilizado sem interrupções por mais de 5.000 anos. Assim por exemplo, para criar um registro que representasse dois carneiros, eram selecionadas duas fichas redondas, cada ficha representando um carneiro. Dá para imaginar a dor de cabeça provocada pela representação e contagem de cem carneiros com essas fichas, de modo que foram sendo criadas diferentes fichas, cada uma simbolizando não apenas diferentes quantidades como diferentes mercadorias, incluindo marcas variadas nas fichas para essas diferenciações. Com o intuito de garantir lisura nas transações comerciais, evitando que alguém alterasse o número e o tipo de ficha, foram inventados envelopes de argila com formatos esféricos denominados bulas, dentro dos quais as fichas eram colocadas, seladas e cozidas. Se por acaso alguém questionasse os números, essas bulas poderiam ser quebradas e as fichas nela contidas seriam recontadas. Para evitar possíveis danos desnecessários aos registros guardados quando as bulas eram quebradas, estes envelopes passaram a receber sinais semelhantes às fichas que seriam guardadas, além da aplicação de selos testemunhais do lado externo, antes de serem cozidos, garantindo as quantidades registradas. Não havendo mais a necessidade de se quebrar os envelopes, estes sinais externos tornaram-se possivelmente na primeira linguagem escrita para representação numérica. Sendo assim, por volta de 3.500 a.C. as fichas e envelopes foram sendo gradualmente substituídos por numerais que eram representados por pontos e cunhas calcadas em plaquetas de argila que depois eram cozidas.
Bula com fichas de argila
Os pontos eram produzidos por meio de hastes feitas de ossos arredondadas nas pontas chamadas de estilos, e as cunhas eram produzidas com estilos pontiagudos, formando pictogramas esculpidos que representavam várias fichas, sendo que cada signo simbolizava tanto a mercadoria que estava sendo contada quanto o volume ou quantidade daquela mercadoria.
Plaqueta de argila calcada com diferentes estilos
Estima-se que ao redor de 3.100 a.C. os números escritos nessas plaquetas foram enfim dissociados das coisas a serem contadas para se transformarem em numerais abstratos. Credita-se aos sumérios (considerados por muitos como a mais antiga civilização a contar com uma escrita, antes mesmo dos egípcios) a primazia pelo desenvolvimento dessa técnica de contagem em plaquetas de argila cozida. Todavia, esta civilização que era formada por diversas cidades-estados na região atualmente ocupada pelo Iraque possuía variados sistemas numéricos incompatíveis uns com os outros. Apenas na cidade-estado de Uruque havia mais de uma dúzia de sistemas numéricos diferentes. Cada sistema numérico tinha uma utilização específica: um era usado para a contagem unívoca de animais, ferramentas e recipientes; outro para a contagem de queijos e grãos; um terceiro para a contagem volumétrica de grãos que também incluía frações; um quarto sistema para contar pesos; um quinto para contar áreas de terra; outro ainda para a contagem de unidades de tempo e unidades calendáricas e assim por diante. Para piorar a situação, estes sistemas mudavam ao longo dos anos e também os números para a contagem volumétrica de grãos mudavam sempre que o tamanho dos cestos se alterava, obrigando as pessoas a utilizar suas habilidades de somar e subtrair sempre que ocorria alguma mudança. Também a multiplicação e a divisão eram feitas por esses povos utilizando placas de argila, sendo os sumérios, por esse motivo, considerados os inventores da aritmética, que é o ramo mais antigo e elementar da matemática, responsável por lidar com números inteiros e as possíveis operações entre eles. Seja como for, aos poucos os estilos arredondados foram desaparecendo, ficando em seu lugar somente os estilos com pontas em cunha, de modo que o sistema numérico dessa civilização cristalizou-se em definitivo na grafia cuneiforme. São dessas raras evidências arqueológicas coletadas até hoje e das inúmeras análises e estudos científicos sobre esses achados que temos uma breve noção de como a matemática surgiu entre nós.

Referências bibliográficas:

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Almeida, M.C. “Origens da Matemática”, Editora Champagnat, 1998. Link: https://www.researchgate.net/publication/262860747_Origens_da_Matematica/link/586b963908ae8fce4919be4c/download

[2]

Overmann, K.A. “Material scaffolds in numbers and time”, Cambridge Archaeological Journal 23(01):19–39, February 2013.

[3]

Plester, V. “Does the Ishango Bone indicate knowledge of the base 12? An interpretation of a prehistoric discovery, the first mathematical tool of humankind”, Mathematics - History and Overview, April 2012:  https://arxiv.org/pdf/1204.1019v1

[4]

Almeida, M.C. “Origens da Matemática - A Pré-História da Matemática Vol.1 - A Matemática Paleolítica”, Editora Progressiva Ltda., 2009. ISBN: 978-85-60124-10-7.

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Coolidge, F. L.; Overmann, K. A. “Numerosity, abstraction, and the emergence of symbolic thinking”, Current Anthropology, Vol. 53, No. 2, April 2012, págs. 204-225.

[6]

Joseph, G. G. “The crest of the peacock: non-european roots of mathematics”, Princeton University Press, 2011. ISBN: 978-0-691-13526-7.

[7]

Woods, C. “Early writing and administrative practice in the ancient near east - New technology and the study of clay envelopes from the Choga Mish”, The Oriental Institute News & Notes, Nº 215, Fall 2012, págs. 3-8.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.