Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

segunda-feira, julho 20, 2015

Frações: um giro pela história


Cubo mágico, criado em 1974 pelo professor húngaro Erno Rubik, quando era professor do Departamento de Desenho de Interiores da Academia de Artes e Trabalhos Manuais Aplicados de Budapeste. Quando Rubik projetou este quebra-cabeça, a sua intenção era criar uma peça que fosse perfeita do ponto de vista geométrico, e que ajudasse a ilustrar o conceito de tridimensionalidade aos seus alunos de arquitetura.
Diz-se que a unicidade é um atributo da contagem, na medida em que há uma associação unívoca para cada coisa contada, seja por meio dos dedos das mãos, seja por ranhuras em um pedaço de osso ou madeira. Assim, cada dedo, ou cada ranhura, representa uma pessoa, ou um cavalo, ou uma fruta. A contagem, nestes termos, lida basicamente com coisas discretas, ou inteiras. A mensuração, por sua vez, vai além da unicidade, pois uma unidade de medida lidará com quantidades contínuas, como áreas e volumes, que não necessariamente representam coisas discretas. A idéia do todo e das partes (como a totalidade de uma área agricultável, ou a metade do volume de um cântaro) estão associados à medição, muito mais que à contagem; desse modo, melhorar a precisão da unidade de medição, reduzindo-a em partes cada vez menores, possibilitou a conceituação de fração, ao permitir que a parte restante de uma medição fosse incluída nos cálculos e seu valor devidamente computado, evitando desperdícios.
Esticadores de corda (à direita) sob supervisão do escriba Djerserkereseneb (ao centro), mensurando uma área para plantio. Tumba do escriba, datada de 1.400 – 1.390 a.C.
Essa melhoria proporcionada pelo cômputo das partes menores é devidamente ilustrada pelo historiador grego Heródoto, que viveu no século 5 a.C., ao relatar que por volta de 1.400 a.C. o faraó Sesóstris:

"...distribuiu a terra a todos os egípcios, dando uma porção quadrada igual a cada homem e, a partir disso, ele fazia a sua receita... e se o rio viesse a tirar parte da porção de terra de qualquer indivíduo, o rei costumava enviar homens para examinar e descobrir por medições quão menor havia se tornado aquele pedaço de terra, a fim de que, no futuro, o homem [prejudicado] pudesse pagar menos..."

Como se pode observar, o fracionamento da terra, dos impostos, era algo conhecido e utilizado desde eras remotas. A palavra fração deriva do latim fractione, cujo significado é "quebra", e sua função é representar a divisão entre um numerador (ou seja, o número que está sendo dividido) e um denominador (o número que promove a divisão), separados por uma barra horizontal, conforme o esquema a seguir:
Os babilônios trabalhavam com frações, mas não possuíam um símbolo para representá-las, ou seja, elas eram subentendidas em função do contexto. Observe esta plaqueta de argila cozida babilônica:
Plaqueta de argila cozida babilônica, atualmente conhecida pelo código YBC7289
Calcadas exatamente sobre a diagonal do quadrado inclinado, temos as seguintes inscrições cuneiformes, entre outras ao redor da placa:
Estas inscrições correspondem a agrupamentos de números, como destacado a seguir:
Note que existem apenas dois tipos distintos de glifos, que representam números, cujos valores são:
O agrupamento desses glifos gera a seguinte sequência numérica: 1, 24, 51 e 10. Mas, conforme comentado e em função do contexto, esta sequência numérica representa de fato uma soma de frações:

$$ \frac{1}{1}+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60} $$

Esta soma de frações equivale à medição da diagonal do quadrado desenhado na plaqueta de argila. Vale dizer que entre 2.900 e 2.300 a.C. a metrologia e a matemática sumérias eram vistas como uma única disciplina, ainda hoje complexa e não totalmente compreendida; todas as quantidades eram escritas como símbolos metrológicos e nunca como numerais seguidos de um símbolo para a unidade mensurada, fosse uma medida de área, de tempo ou de volume, totalizando mais de 600 símbolos diferentes. Entretanto, as medidas de comprimento, volume e massa derivavam de um cubo padrão teórico chamado gur, preenchido com cevada, trigo, água ou óleo. Mas como esses produtos possuem pesos específicos diferentes, os sumérios fizeram uso de vários tamanhos diferentes desses cubos gur, porém sem consenso. Uma grande melhoria nesse sistema de medição surgiria em 2.150 a.C., durante o Império Acadiano, sob o reinado de Naram-Sin, onde os sistemas metrológicos concorrentes foram unificados em um único padrão oficial, o gur-cubo real, um cubóide teórico preenchido com água com medidas aproximadas de 6 metros x 6 metros x 0,5 metro, a partir do qual todas as outras medidas eram derivadas. Assim, para as medidas de comprimento, os povos babilônicos utilizavam as seguintes unidades fracionárias e inteiras:

 

Comprimento básico

Unidade

Razão

Nome sumério

Nome acadiano

Grão

1/180

še

uţţatu

Dedo

1/30

šu-si

ubānu

2/3

šu-du

šīzu

Côvado

1

kuš

ammatu

Passo

2

ĝiri

šēpu

Junco

6

kimono

qanû

Cajado

12

nindan

nindanu

Corda

120

eše

aslu

 

Já as unidades de distância sumérias eram geodésicas, distintas dos comprimentos básicos, estes não geodésicos:

 

Distância

Unidade

Razão

Nome sumério

Nome acadiano

Cajado

1/60

nidan

nindanu

Cordão

1/6

eše

aslu

Cabo

1

Légua

30

da-na

bêru


Para as áreas, os sumérios possuíam uma unidade especial chamada “jardim de tijolos”, que continha 720 tijolos:

 

Área básica

Unidade

Razão

Dimensões

Nome sumério

Nome acadiano

Shekel

1/60

1 kuš × 1 kuš

gin

šiqlu

Jardim

1

12 kuš × 12 kuš

sar

mūšaru

Quarto de campo

5

60 kuš × 60 kuš

uzalak

?

Meio campo

10

120 kuš × 120 kuš

upu

ubû

Campo

100

60 ĝiri × 60 ĝiri

iku

ikû

Estádio

1800

3 eše × 3 eše

bur

būru

 

Por outro lado, as capacidades volumétricas eram medidas de acordo com o conteúdo: seco ou úmido; a seguir, as medidas volumétricas fracionárias e inteiras para volumes básicos:

 

Volume básico

Unidade

Razão

Nome sumério

Nome acadiano

Shekel

1/60

gin

šiqlu

Tigela

1

sila

Vasilha

10

ban

sutū

Alqueire

60

ba-ri-ga

parsiktu

Gur-cubo

300

gur

kurru

 

Para massas ou pesos, os valores abaixo são uma média dos artefatos para mensurar pesos nas cidades-estados de Ur e Nippur, representados por ± 1 desvio-padrão, sendo que todos os valores foram arredondados para o segundo dígito do desvio-padrão:

 

Massa básica

Unidade

Razão

Valor médio

Nome sumério

Nome acadiano

Grão

1/180

46,6 ± 1,9 mg

še

uţţatu

Shekel

1

8,40 ± 0,34 g

gin

šiqlu

Mina

60

504 ± 20 g

ma-na

manû

Talento

3600

30,2 ± 1,2 kg

gun

biltu ou kakaru

 

Finalmente, para o tempo, existiam vários calendários lunisolares sumérios, porém o calendário civil da cidade de Nippur acabou sendo adotado pela Babilônia como o seu próprio. Este calendário data de 3.500 a.C. e foi baseado em conhecimentos astronômicos ancestrais de origem incerta. Os principais ciclos astronômicos para construir esses calendários eram: o mês sinódico[1] e o dia sideral[2].

 

Tempo básico

Unidade

Razão

Nome sumério

Nome acadiano

Gesh

1/360

mu-eš

geš

Vigia

1/12

da-na

bêru

Dia

1

ud

immu

Mês

30

itud

arhu

Ano

360

mu

šattu


[1] Nos calendários lunares, um mês lunar é o tempo entre duas sizígias sucessivas do mesmo tipo: luas novas ou luas cheias. Sizígia: conjunção da lua e do sol, na lua nova e na lua cheia, quando as marés altas são maiores e as marés baixas são menores, que provocam as chamadas marés de águas vivas. (fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Lunar_month#Synodic_month)

[2] Tempo sideral é um sistema de cronometragem que os astrônomos utilizam para localizar objetos celestes. Usando o tempo sideral, é possível apontar facilmente um telescópio para as coordenadas adequadas no céu noturno. Em resumo, o tempo sideral é uma escala de tempo que se baseia na rotação da Terra medida em relação às estrelas fixas. (fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Sidereal_time#Sidereal_day)

Pesos mesopotâmicos feitos de hematita. O maior pesa 1 mina e o menor 3 shekels
Os egípcios também levavam a sério esse assunto de medição, tanto é que utilizavam cordas e varas, ou réguas-côvados, tal como a encontrada em Tebas, com comprimento ao redor de 50 cm, dividida em sete palmos, cada palmo dividido em quatro dedos, estes por sua vez fatiados em frações ainda menores.
Régua-côvado egípcia, atualmente no Museu de Turim
Observe no detalhe dessa régua-côvado a representação hieroglífica, da direita para a esquerda, das frações 1/2, 1/3, 1/4 e 1/5, em verde:
Detalhe da régua. Em azul, a medida de um palmo; em vermelho, a medida de um dedo; em verde, da direita para a esquerda, os hieróglifos das frações 1/2, 1/3, 1/4 e 1/5 e as medidas que os representam. Todas as medidas possuem sua respectiva representação hieroglífica.
Além de réguas-côvados, a topografia e a medição eram realizadas pelos egípcios através de cordas com nós:

Pintura na tumba de Menna,construído entre 1.420 e 1411 a.C. no Vale dos Reis. Observe os esticadores de corda mensurando uma terra agricultável

Nesta cena, podemos observar esticadores de corda sob o comando de Menna (que está segurando o rolo de corda), um oficial com vários títulos associados às propriedades agrícolas do templo de Karnak e do rei egípcio. As unidades de comprimento utilizadas por esta civilização estão descritas a seguir:


Comprimento

Unidade

Razão

Nome egípcio

Valor métrico

Dedo

1/4

db

1,875 cm

Palma

1

šsp

7,5 cm

Mão

1 ¼

drt

9,38 cm

Punho

1 ½

hf

11,25 cm

Mão dupla

2

šspwy

15 cm

Pequeno shat

3

p d šsp

22,5 cm

Grande shat

3 ½

pd

26 cm

Braço dobrado

4

dsr

30 cm

Braço superior

5

rmn

37,5 cm

Cúbito pequeno

6

m h n ds

45 cm

Cúbito real

7

mh

52,5 cm

Nebiu

8

nbiw

60 cm

Khet

100 côvados

ht

52,5 m

Iteru

20.000 côvados

itrw

10,5 km

 

Já as unidades de áreas datam desde o início do período dinástico ou arcaico (após a unificação do Alto e do Baixo Egito, por volta de 3.100 a.C.) e registra concessões de terras em termos de kha e setat:

 

Área

Unidade

Razão

Nome egípcio

Valor métrico

1/800

z

3,4456 m2

Heseb

1/400

hsb

6,8913 m2

Remen

1/200

rmn

13,783 m2

Khet

1/100

ht

27,565 m2

Kha

1/10

h

275,65 m2

Setat

1

stt

2.756,5 m2

 

Unidades de volume aparecem em papiros, como no cálculo do volume de um celeiro circular no problema 42 do papiro de Rhind:

 

Volume

Unidade

Razão

Nome egípcio

Valor métrico

Ro

1/320

r

0,015 litro

Dja

1/16

dja

0,3 litro

Hinu

1/10

hnw

0,48 litro

Heqat

1

hqt

4,8 litros

Duplo heqat

2

hqty

9,6 litros

Quádruplo heqat

4

hqt-fdw

19,2 litros

Khar

16

khar

76,8 litros

Deny

30

deny

144 litros

 

A unidade básica de peso egípcio vigente durante o antigo e o médio império era o deben, que equivale a 13,6 gramas e durante o novo império passou a valer 91 gramas. E para quantidades menores os egípcios tinham o qedet (1/10 de um deben) e o shematy (1/12 de um deben). Por fim, para unidades de tempo, as horas – conhecidas por uma variante da palavra egípcia para “estrelas” – eram inicialmente apenas demarcadas à noite e variavam em magnitude e seu cálculo estava baseado em estrelas decanas[3]. A divisão do dia em 24 partes iguais foram introduzidas apenas em 127 a.C. Por outro lado, a civilização maia possivelmente lidava muito bem com divisões e frações, mas a destruição massiva de seus registros pelos espanhóis no período colonial eliminaram quaisquer evidências mais contundentes sobre o tema; entretanto, em seus cálculos calendáricos os maias adotavam, ao invés de décadas, os k’atuns, cujo intervalo de tempo era de 20 anos, pois seu sistema numérico era o vigesimal. Por outro lado, para descrever um período de 10 anos, os maias usavam o glifo abaixo, que representava a metade de um k’atun, ou seja, a metade de um período de 20 anos:
Glifo maia para representação de um período de 10 anos

[3] Decanos são 36 grupos de estrelas (pequenas constelações) utilizados na antiga astronomia egípcia para dividir convenientemente os 360 graus da elíptica em 36 partes de 10 graus cada. A subida de cada decanato marcava o início de uma nova hora decanal da noite para os antigos egípcios e foram utilizados como relógios estelares siderais pelo menos a partir da 9ª ou 10ª dinastia, cerca de 2.100 a.C.


Para indicar partes em geral, os maias utilizavam o termo tzuc, que literalmente significa “parte”. Mas não há muito mais sobre frações maias além dessas poucas constatações...  Ao contrário dos egípcios, os hindus lidavam com frações mistas, além das unitárias. O conhecimento das frações na Índia vem de tempos remotos; por exemplo, a fração um-meio, chamada ardha, e a fração três-quartos, denominada tripada, aparecem no Rigveda, um dos trabalhos védicos mais antigos que se conhecem, datado de cerca de 1.000 a.C. Já nos Sulbasutras, escritos por volta de 500 a.C., as frações eram não apenas mencionadas, mas também usadas em proposições e soluções de problemas; as frações aparecem também no manuscrito Bakhshali, nas regras aritméticas do Brahmasphutasiddhanta, entre outros.
Folha do manuscrito Bakhshali, com representação de frações dentro de 'caixas', mas sem o traço característico separando o numerador do denominador

Os termos sânscritos geralmente aplicados para descrever fração eram: bhinna, cujo significado é “quebrado”, bem como bhaga e amsa, significando “parte” ou “porção”. Na civilização grega, a notação para frações era ambígua e o contexto era de vital importância para a correta leitura de seu valor. Para frações unitárias, por exemplo, os gregos aplicavam a apóstrofe após o denominador; assim: β' equivalia a 1/2 e μβ' era o mesmo que 1/42. Para frações não unitárias, o contexto se mantinha importante, mas nestes casos o numerador era sobrescrito com uma barra e o denominador recebia uma apóstrofe, tudo junto. Desse modo:

$$ \overline{\nu \alpha }\pi \delta ' $$

Corresponderia à fração 51/84. As frações, porém, participaram de um assunto que influenciaria fortemente não apenas a cultura grega, mas as demais civilizações que a sucederam: a música, pelas mãos de Pitágoras. Observando uma lira grega, o filósofo grego queria entender exatamente porque as cordas eram ajustadas em determinados tons e porque esses tons seguiam uma determinada escala.
Vaso grego com musa tocando a phorminx, um tipo de lira, 440–430 a.C.
Em outras palavras, Pitágoras queria descobrir porque os músicos gregos utilizavam-se de uma sequência particular de notas para a sua escala musical. Porém, antes de respondermos a essa questão, é preciso lembrar que, para a escola pitagórica, o cosmos (nosso universo) nada mais é que o resultado imposto pelo Demiurgo, o Grande Geômetra, no caos primitivo[4]. Para os pitagóricos, existe uma única ferramenta capaz de encontrar ordem no universo: a matemática, que pode ocorrer em um de seus dois aspectos, quais sejam, a geometria e a aritmética. Estas duas disciplinas, associadas à música e à astronomia, formariam as quatro artes liberais. Naquela época, o estudo das propriedades dos números era o assunto mais importante a ser estudado, uma vez que essas propriedades podiam ser observadas em todos os níveis da criação, desde o movimento das estrelas no firmamento – o macrocosmo – até o homem propriamente dito – o microcosmo. Para os pitagóricos em particular, número era o progenitor da geometria, e o verdadeiro significado dos números inteiros poderia ser estudado através da representação geométrica. Desta sorte, os quatro primeiros números representariam a música universal e o cosmos: o número 1 seria ao mesmo tempo o ponto finito e a unidade infinita, ou Deus. O número 2 representaria o poder (díade: limitado/ilimitado) e ainda o princípio feminino, o primeiro (e único) primo par; o número 3, por outro lado, representaria a harmonia (tríade) e também o princípio masculino, o primeiro primo ímpar. O número 4 representaria o cosmos (tétrade: toda a estrutura do universo em sua totalidade, desde o macrocosmo até o microcosmo). Já o número 5 seria o número humano, por ser a soma do princípio feminino (2) com o masculino (3). O número 6 era considerado o número perfeito, por ser a soma de 1, 2 e 3 – representando a união do divino com as naturezas feminina e masculina. A década (o número 10, então chamado tetractys), por exemplo, era considerado o maior número simples e a representação de uma ordem mais elevada, uma vez que era a soma dos quatro primeiros números: 1 mais 2 mais 3 mais 4 resulta 10 – e, por isso, era visto como a soma das propriedades de um ponto (zero dimensões), uma linha (unidimensional, definida por dois pontos), um triângulo (bidimensional, uma área definida por três pontos) e um tetraedro (ou seja, um objeto tridimensional definido por quatro pontos).

[4] Segundo Platão, Demiurgo é o artesão divino ou o princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos.


Exemplo pitagórico de um tetractys

Isto posto, voltemos à questão da lira grega estudada por Pitágoras. Sua primeira observação foi notar que se tivermos duas cordas com o mesmo comprimento, espessura e igualmente tensionadas, elas soarão igualmente quando dedilhadas. Significa dizer que elas possuem o mesmo tom e soam bem (ou consonantes) quando tocadas juntas. A relação, ou intervalo, entre essas notas chama-se uníssono. A segunda observação que Pitágoras fez aponta que, se tivermos duas cordas de comprimentos diferentes, com a mesma espessura e mantido o mesmo tensionamento, as cordas terão tons diferentes que geralmente soarão mal (ou dissonantes) quando dedilhadas em conjunto. Por fim, ele notou que para certos comprimentos as cordas ainda terão diferentes tons, porém soarão consonantes mais que dissonantes. Pitágoras denominou a relação entre essas duas notas de intervalo. Nesta última condição, se uma corda tiver exatamente a metade do comprimento da outra, seu tom será bem maior, mas ainda assim soarão consonantes quando tocadas juntas; este intervalo é denominado oitava. Finalmente, se uma corda tiver exatamente 2/3 do comprimento da outra, elas ainda soarão consonantes quando tocadas juntas e este intervalo é denominado quinta justa. Em resumo, temos as seguintes razões entre as cordas:

 

Nome

Razão

Uníssono

1:1

Oitava

2:1

Quinta justa

3:2

 

Mexendo com esses intervalos, é possível definir uma nova combinação. Por exemplo, podemos subir um tom no intervalo de uma oitava e descer um tom no intervalo de uma quinta justa. Subir uma oitava significa multiplicar a frequência por um fator de 2. Descer uma quinta justa significa dividir a frequência por um fator de 3/2, ou seja:

$$ Intervalo=2\div \frac{3}{2}=2\times \frac{2}{3}=\frac{4}{3} $$

Pela combinação desses dois intervalos, produziu-se um terceiro. A este novo intervalo dá-se o nome de quarta justa, definida pela razão 4/3. Em resumo, tem-se que:


ü  ü  Razões 1/2 e 2/1 geram oitavas

ü   ü  Razões 2/3 e 3/2 geram quintas justas

ü   ü  Razões 4/3 e 3/4 geram quartas justas


Apesar da possibilidade de obtenção de outros intervalos a partir de razões 5, 6, 7, etc., Pitágoras – um grande adepto da simplicidade – parou em 4 porque percebeu que já possuía todos os intervalos necessários para construir uma escala musical, que era o seu objetivo inicial. O que ele fez a seguir foi propor um método simples para a geração de uma escala musical baseada em intervalos, sendo que seu método fez uso de apenas dois: a oitava e a quinta justa. O método é o seguinte: toma-se uma corda de determinado comprimento, espessura e tensionamento, cuja frequência ao ser tocada gera um . Esta será a primeira nota dessa escala, cuja razão será 1:1. Subindo uma oitava, obtém-se outro , mais agudo e à razão 2:1, definindo deste modo o intervalo da escala que se quer criar, que será preenchido com as demais notas. Dispondo essa escala musical se fosse uma régua, onde as notas são posicionadas junto às suas respectivas razões, teremos, até aqui, a seguinte composição indicada a seguir:
Para obter a próxima nota a partir do primeiro , sobe-se uma quinta justa à razão 3/2, gerando um . A partir do primeiro também desceremos uma quinta justa à razão 2/3, gerando uma nota Sol que, apesar de não estar dentro da escala, será útil para a montagem de outras notas que se situarão dentro da escala. Obtemos:
Partindo do Sol fora da escala, subimos uma oitava, gerando agora um segundo Sol, este dentro da escala. A razão deste segundo Sol é:

$$ Sol=2\times \frac{2}{3}=\frac{4}{3} $$

O resultado obtido até aqui está indicado a seguir:
Seguindo esse mesmo raciocínio, buscamos encontrar notas cujas razões estejam no intervalo (1:1, 2:1) da escala musical. Assim, a partir de , sobe-se uma quinta justa à razão 3/2, gerando um Mi fora da escala, ou seja:

$$ Mi=La\times \frac{3}{2}=\frac{3}{2}\times \frac{3}{2}=\frac{9}{4} $$

Temos até aqui a seguinte composição:
Agora, descendo a nota Mi uma oitava, obtemos outro Mi, este dentro da escala; observe:

$$ Mi=\frac{9}{4}\times oitava=\frac{9}{4}\times \frac{1}{2}=\frac{9}{8} $$

Resultando na composição indicada a seguir:
Prosseguindo, descemos – a partir do Sol de dentro da escala – uma quinta justa à razão 2/3, gerando um fora da escala:

$$ Do=Sol\times \text{quinta justa}=\frac{4}{3}\times \frac{2}{3}=\frac{8}{9} $$

Porém, ao subirmos uma oitava, gera-se outro , este dentro da escala; observe:

$$ Do=Do\times oitava=\frac{8}{9}\times 2=\frac{16}{9} $$

A composição de nossa escala musical até aqui segue o padrão indicado a seguir:
Este arranjo é conhecido por escala pentatêuca, pois entre os limites da escala temos 5 notas musicais distintas. Para alcançarmos a escala diatônica ou escala ocidental, basta repetir o processo realizado até agora. Então, tomando o de dentro da escala e fazendo-o descer uma quinta justa à razão 2/3, obtemos um dentro da escala, conforme segue:

$$ Fa=Do\times \text{quinta justa}=\frac{16}{9}\times \frac{2}{3}=\frac{32}{27} $$

E pegando o Mi de dentro da escala e fazendo-o subir uma quinta justa à razão 3/2, obtemos um Si dentro da escala; observe:

$$ Si=Mi\times \text{quinta justa}=\frac{9}{8}\times \frac{3}{2}=\frac{27}{16} $$

O processo de montagem de nossa escala musical está concluído! Agora temos 7 notas musicais distintas, compondo a escala diatônica. A composição final está indicada na figura abaixo:

Avançando na história, falemos dos romanos, que mesmo com seu intrincado sistema numérico, e sem o número zero, tinham frações! O sistema fracionário romano provinha dos pesos e das medições de terras e era duodecimal, porque a divisibilidade de 12 por 2, 3, 4 e 6 tornava mais fácil o manuseio de frações comuns (como o 1/2, 1/3, 1/4, 1/6, 2/3 e 3/4) que a divisibilidade de 10, que é divisível apenas por 2 e por 5 no sistema decimal. Cada fração romana possuía um nome, conforme a tabela a seguir:

 

Fração

Numeral

Romano

Nome (nominativo e genitivo)

Significado

1/12

Uncia, unciae

Um doze avos

2/12 = 1/6

•• ou :

Sextans, sextantis

Um sexto

3/12 = 1/4

••• ou

Quadrans, quadrantis

Um quarto

4/12 = 1/3

•••• ou ::

Triens, trientis

Um terço

5/12

••••• ou :·:

Quincunx, quincunsis

Cinco doze avos

6/12 = 1/2

S

Semis, semissis

Meio

7/12

S•

Septunx, septuncis

Sete doze avos

8/12 = 2/3

S•• ou S:

Bes, bessis

Dois terços

9/12 = 3/4

S••• ou S

Dodrans, dodrantis

Menos um quarto

10/12 = 1/6

S•••• ou S::

Dextans

Menos um sexto

11/12

S••••• ou S:·:

Deunx

Menos um doze avos

12/12 = 1

I

As, assis

Unidade



Nas moedas romanas, muitas das quais valiam frações duodecimais da unidade as, usava-se um sistema de marcas de registro baseado em duodécimos.

Moeda romana triens (4/12 ou 1/3 da unidade), cerca de 241 a 235 a.C. Observe os quatro pontos nas duas faces indicando o seu valor

Curiosamente, a palavra latina as para a moeda unitária romana deu nome ao ás das cartas de baralho, que precede a carta de número 2.

A invenção da barra de fração, que divide o numerador do denominador, é atribuída ao matemático árabe Abu Bakr Muhammad ibn Abdallah ibn Ayyash al-Hassar, que viveu no Marrocos no século 12 d.C. Al-Hassar escreveu dois livros: o Kitab al-bayan wat-tadhkar (Livro da demonstração e memorização), um manual de cálculo, e o Kitab al-kamil fi sinaat al-adad (Livro completo na arte dos números) sobre a repartição de números, dividido em duas partes, das quais apenas parte da segunda sobreviveu aos nossos dias, livro este que faz uso das barras para indicar frações. A palavra árabe para fração era alkasr, que vem do verbo “quebrar”. Na idade média é Fibonacci quem primeiro se aproveita das barras de frações, ao demonstrá-las em seu Liber Abaci, como fazemos atualmente, seguindo a prática adotada pelos árabes. Entretanto, a barra horizontal normalmente era omitida nos livros medievais, principalmente após a introdução da prensa de tipos móveis de Gutenberg, talvez devido a dificuldades tipográficas, o que motivou o uso da barra diagonal (/) nas obras da época para a representação de frações simples na mesma linha do texto, um procedimento que adotamos até hoje. Seguindo os rumos da história, é interessante notar que a teoria musical pitagórica foi retomada durante o Renascentismo europeu pelas mãos do teórico musical e compositor italiano Franchino Gaffurio (1.451 – 1.522) – contemporâneo de ninguém menos que Leonardo da Vinci, de quem era amigo pessoal – em sua obra Theorica Musicae, de 1.492.

“Retrato de um Músico” (1.485 a 1.490), óleo sobre tela, por Leonardo da Vinci. Trata-se, possivelmente, de Franchinus Gaffurius

Retomando a tradição medieval que remonta ao De institutione musicae de Severino Boécio, Franchino desenvolveu uma espécie de “filosofia músical” segundo a qual a arte dos sons é assimilada à ciência dos números e tratada com base em proporções matemáticas, ligando-se assim à tradição pitagórica e neoplatônica, que considerava a harmonia dos sons como resultado de precisas relações numéricas. Portanto a música não seria tão somente uma arte prática, mas também uma disciplina especulativa cujas leis eram análogas àquelas que regulam o movimento dos corpos celestes. Algumas décadas depois, outro teórico musical e compositor italiano abordaria a teoria musical pitagórica: Gioseffo Zarlino (1.517 a 1.590), responsável – entre outros avanços – pela ampliação da gama dos intervalos harmônicos pitagóricos ao definir a 3ª e a 6ª escalas maiores e menores, estabelecidas por razões racionais, como o quarto e quinto pitagóricos.
Gioseffo Zarlino
Zarlino tinha como um de seus alunos o músico experimentalista Vincenzo Galilei, pai do astrônomo, físico e engenheiro florentino Galileu Galilei. Diz-se que Vincenzo foi o primeiro a observar uma incorreção na obra Theorica Musicae, de Gaffurio, especificamente na xilogravura indicada a seguir:
A intenção desta xilogravura é ilustrar as razões pitagóricas e como elas são aplicadas aos instrumentos musicais. O cartão inferior direito mostra flautas cujos comprimentos correspondem a razões pitagóricas. O problema identificado por Vincenzo está no cartão inferior esquerdo: as maças com diferentes pesos penduradas às cordas alteram a tensão aplicada às mesmas; porém, as notas produzidas pelas cordas não estão relacionadas apenas ao tensionamento a elas aplicado, de modo que essas cordas não soarão de acordo com os intervalos pitagóricos. Os exemplos indicados nos cartões superiores da xilogravura são ainda mais complicados, mas é possível dizer que os sinos, os copos d’água e as bigornas tampouco produzirão os intervalos corretos... Fato é que o termo pitagórico “música universal” (representada pelos quatro primeiros números inteiros) ou “música das estrelas” possui conexões históricas entre música, matemática e astronomia, e tiveram um forte impacto nessas disciplinas. Senão, vejamos: os astrônomos gregos postulavam que haviam certas estrelas fixas cujas posições relativas na abóbada celeste não se modificavam ao longo do ano; e também que existiam estrelas errantes que se moviam em relação às estrelas fixas, aos quais davam o nome de planetas (planeta é a palavra grega para errante). Para explicar essas observações, os gregos conceberam uma grande esfera negra que definia os limites do universo, à qual as estrelas fixas estavam apensas. Os planetas ficariam fixos em diversas esferas girantes, umas dentro das outras, internas à esfera negra, tendo a Terra como centro de todas elas (modelo geocêntrico grego); porém, essas esferas internas não poderiam ser igualmente negras, já que ocultariam a esfera-limite do universo bem como ocultar-se-iam umas às outras.
Modelo grego geocêntrico de esferas para estrelas fixas e errantes
Assim, os gregos definiram que essas esferas internas seriam todas de cristal, cada uma contendo uma estrela planeta, ou estrela errante. À época, eram conhecidas sete estrelas errantes: a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Sete estrelas errantes, sete esferas de cristal. O motivo de haver sete estrelas errantes para os gregos era óbvio: se a grande descoberta de Pitágoras foi mostrar que a matemática era capaz de explicar os fenômenos na natureza, bem como soubera compreender porque havia sete notas na escala musical, então a razão para haver sete esferas de cristal partiria do mesmo fundamento. Os astrônomos gregos estavam tão convencidos dessa correlação que a chamaram de música das esferas: um conceito tão poderoso que perdurou por cerca de 1.800 anos... a força desses conceitos fica evidente nos trabalhos do astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler (1.571 a 1.630), um contemporâneo de Galileu, sobre seus estudos em proporções harmônicas no sistema solar, que o levou à descoberta das leis do movimento planetário[5]. Os estudos iniciais de Kepler no assunto consistiram em tentar conciliar as órbitas planetárias com as geometrias dos cinco sólidos platônicos; assim, ele colocou um octaedro entre as órbitas de Mercúrio e Vênus, um icosaedro entre Vênus e a Terra, um dodecaedro entre a Terra e Marte, um tetraedro entre Marte e Júpiter e um cubo entre Júpiter e Saturno. Estes primeiros resultados foram publicados em sua obra Mysterium Cosmographicum, de 1.597. Para descrever a sensação que teve ao conceber sólidos platônicos entre as órbitas dos planetas, Kepler teria afirmado que:

...adormecera ao som da música celestial, aquecido, após ter bebido um gole generoso da taça de Pitágoras.

[5] Como professor de matemática da universidade de Tübingen de 1.583 até 1.631, Kepler estudou tanto o sistema ptolomaico quanto o sistema copernicano dos movimentos planetários, vindo a abraçar este último. Em um debate estudantil, defenderia o heliocentrismo de uma perspectiva tanto teórica quanto teológica, sustentando que o Sol era a principal fonte de poder motriz no Universo.


Modelo do sistema solar baseado em sólidos platônicos, de Kepler

Nicolau Copérnico (1.473 a 1.543), astrônomo e matemático polonês, em sua obra De revolutionibus orbium coelestium, de 1.543, cita Pitágoras como sua mais importante influência no desenvolvimento de seu modelo heliocêntrico do universo. Até mesmo o grande matemático e físico inglês Isaac Newton, que sabidamente não era afeito a reconhecer o mérito científico de seus antecessores, via na música pitagórica das esferas uma descrição prévia de sua própria lei da gravitação universal. Um visitante escreveria que:

 

O Sr. Newton crê, sem sombra de dúvida, que os antigos – tais como Pitágoras, Platão etc. – possuíam todas as demonstrações de que ele mesmo forneceu acerca do verdadeiro sistema do mundo.

 

Agora que já fizemos um breve passeio pela história das frações e seus incríveis desdobramentos, vejamos como algumas das antigas civilizações as operavam aritmeticamente.

 

Referências bibliográficas:

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Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.