Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

terça-feira, maio 22, 2018

As origens dos gráficos

Tyrrell-P34, o revolucionário carro de Fórmula 1 com seis rodas, criado pelo projetista Derek Gardner. Este carro participou das temporadas de 1.976 e de 1.977 da F-1. Atualmente, todos os parâmetros de desempenho dos carros de corrida são acompanhados em tempo real através de gráficos.
O movimento das estrelas no céu noturno sempre maravilhou a humanidade. Desde eras ignotas, o homem eleva seus olhos para as profundezas do espaço, buscando encontrar ali respostas a todas as suas perguntas, fossem relacionadas a assuntos prementes, como a expectativa de boas colheitas, fossem questões intangíveis, como seu destino após a morte. Civilizações pré-históricas, sumérios, babilônios, egípcios, maias, gregos, todos sem exceção observaram os céus e estudaram o deslocamento dos corpos celestes. Esses movimentos uniformes eram bem conhecidos pelos antigos matemáticos gregos. O astrônomo, matemático e geógrafo grego Autólico de Pitane (360 a.C. a 290 a.C.) em sua obra Sobre a esfera móvel, estudou o movimento circular uniforme das estrelas nos céus, ao afirmar que um objeto movia-se uniformemente se percorresse distâncias iguais em tempos iguais, ou seja, que para períodos fixos de tempo o objeto percorre sempre a mesma distância. Arquimedes fez uso das definições de Autólico para provar que um objeto movendo-se uniformemente percorrerá distâncias proporcionais ao tempo. Significa que a distância x percorrida em um intervalo de tempo t será proporcional a uma distância y percorrida em um intervalo de tempo s:
$$ \frac{x}{y}=\frac{t}{s} $$
Observe que a proporção acima não faz menção a velocidades, apenas distâncias percorridas e tempos, pois os gregos antigos aceitavam apenas razões cujas magnitudes fossem da mesma natureza, no caso, distância com distância (x e y) e tempo com tempo (t e s). Assim, temos uma razão entre duas distâncias igualada a outra razão entre dois intervalos de tempo. Se os gregos aceitassem razões mistas, envolvendo magnitudes de naturezas distintas, a proporção acima poderia ser alterada para:
$$ \frac{x}{t}=\frac{y}{s} $$
Que interpretamos atualmente como a velocidade x/t que se iguala à velocidade y/s, ou seja, um objeto que se move uniformemente quando se desloca a uma velocidade constante.


Inscrições rupestres pré-históricas escavadas na rocha, provavelmente representando estrelas, com estimados 6.000 de idade, elaboradas por comunidades indígenas e identificadas como itacoatiaras (ou 'pedras riscadas' em tupi-guarani) no sítio arqueológico Pedra do Ingá, no Estado da Paraíba, Brasil.
Fragmento de um calendário estelar circular babilônio, da biblioteca subterrânea do rei Assurbanípal (668 a 627 a.C.) na cidade de Nínive, atual Iraque.
Carta estelar da tumba de Senemute, um arquiteto e oficial de governo da 18ª dinastia do antigo Egito.
O movimento de rotação da Terra faz parecer que as estrelas no céu deslocam-se circularmente ao longo da noite.

Posteriormente, por volta da metade do século XIV d.C., o movimento uniforme já não despertava mais questionamentos; ao contrário, era o movimento não uniforme que se buscava compreender, quer dizer, quando a velocidade de um objeto não era constante. Um pequeno grupo composto de quatro escolásticos do colégio Merton (conhecidos como calculadores de Oxford) debruçou-se sobre esta questão. Eram eles:

·      Thomas Bradwardine (~ 1.290 a 1.349) – físico e matemático. Era um lógico talentoso, com teorias sobre os insolúveis – em particular sobre o paradoxo do mentiroso[1];
·     William Heytesbury – foi tesoureiro do colégio Merton até os finais da década de 1.330, bem como administrou propriedades do colégio na Nortúmbria;
·       Richard Swineshead – matemático, lógico e filósofo naturalista. Entrou para o grupo dos calculadores de Oxford em 1.344. Foi considerado pelo polímato italiano Girolamo Cardano no século XVI como um dos dez maiores intelectos de todos os tempos, ao lado de Arquimedes, Aristóteles e Euclides. Em seu tempo já era conhecido pela alcunha de “o calculador”;
·       John Dumbleton – tornou-se membro dos calculadores de Oxford entre 1.338-1.339.

Apesar de não serem capazes de definir velocidade com precisão, trabalharam com velocidades como se fossem quantidades reais. Além disso, compreenderam que quando a velocidade variava, havia uma taxa de mudança: a aceleração (ou desaceleração, quando a velocidade fosse negativa; mas estes casos não eram considerados, pois eles não conheciam os números negativos). Suas descobertas sobre certos movimentos não uniformes recebeu o nome de Teorema da velocidade média de Merton. Diz-se que, se um objeto se move com uma aceleração constante, então a distância que percorre é igual à distância que teria percorrido se estivesse se movendo a uma velocidade constante, onde tal velocidade seria a média entre as velocidades inicial e final desse objeto. Nessa mesma época outro escolástico – francês – ampliou o estudo analítico de quantidades variáveis: Nicolau Oresme, bispo de Lisieux. Foi um filósofo que escreveu influentes trabalhos em economia, matemática, física, astronomia, filosofia e teologia.



[1] O paradoxo do mentiroso consiste na declaração de um mentiroso absoluto que afirma: “Estou mentindo”. Se a afirmação do mentiroso é verdadeira, então a sentença é falsa, pois o mentiroso mente sempre; mas se a sentença é falsa, então o mentiroso estaria dizendo a verdade, o que não é possível; logo, a sentença tem que ser verdadeira, e assim por diante. O paradoxo surge desta incoerência lógica cíclica.

Página do livro: “Tratado da esfera; Aristóteles, do céu e do mundo”. Tradução para o francês por Nicolau Oresme, que aparece no alto da página, escrevendo, com um globo à direita.
Atribui-se a Oresme o surgimento da primeira tentativa de construção de um gráfico para expressar quantidades variáveis, que aparece em sua obra Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum, escrito por volta de 1.370.

Fac-símile de uma página da obra "Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum", de Nicolau Oresme. Observe as construções geométricas à esquerda e ao final da página para descrever quantidades variáveis.
É interessante observar que o físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano Galileu Galilei, em sua obra Discorsi, de 1.656, apresenta sua prova para a lei da queda livre com um diagrama muito semelhante ao utilizado por Nicolau Oresme, como se pode observar abaixo:

Página da obra "Discorsi", de Galileu. Observe o gráfico na metade inferior esquerda, que utiliza uma construção geométrica muito semelhante à de Oresme para descrever um corpo em queda livre.
Na ilustração a seguir temos um bom exemplo de como Nicolau lidava com suas interpretações gráficas:


Neste exemplo, Oresme representava o tempo como uma linha horizontal, neste caso o segmento AB, à qual denominava de longitude. Dado um objeto em movimento, a cada instante no tempo esse objeto possui uma velocidade, representada por linhas verticais que Oresme denominava de latitudes, como é o caso do segmento EF. Em conjunto, estas latitudes formam a região plana ABDC, à qual dava o nome de forma, delimitada em sua base pela longitude AB, à esquerda pela primeira latitude, AC – representando a velocidade inicial – à sua direita pela última latitude, BD – representando a velocidade final – e no topo pela curva CFD, à qual dava o nome de curva cimeira. Por fim, Oresme afirmava que a área da forma ABDC era proporcional à distância percorrida. Nicolau montou os vários comprimentos proporcionais a distâncias ou tempos uma vez que, tal como pensavam os antigos gregos, esses comprimentos representavam coisas de naturezas diferentes, mas é provável que ele fizesse uso da linguagem da igualdade: traçavam-se longitudes cujos comprimentos fossem iguais ao tempo decorrido e latitudes cujos comprimentos fossem iguais à velocidade naquele instante. Oresme ainda publicaria outra obra em que faria extenso uso dessas formas para descrever quantidades variáveis: o Tractatus de latitudinibus formarum, que só viria a ser publicado em 1.486. Nesta obra, é possível identificar diversos elementos gráficos diferentes, com curvas ou composições geométricas que buscavam traduzir fenômenos físicos.

Página do livro Tractatus de latitudinibus formarum, de Nicolau Oresme, publicado em 1.486. Observe as longitudes e latitudes nas figuras à direita para descrever quantidades variáveis associadas a fenômenos físicos.
Com suas latitudes e longitudes, Oresme foi capaz de tabular duas magnitudes variáveis que guardam entre si uma relação de dependência e representá-las graficamente, trazendo implicitamente a idéia de um sistema proto-cartesiano. Porém, os gráficos só atingiriam sua maturidade mais de 150 anos depois das publicações de Nicolau Oresme, quando René Descartes lança o seu Discurso sobre o método, em 1.637, demonstrando o uso de um sistema de coordenadas para a construção de linhas e curvas, no volume Geometria.

Fragmento do volume Geometria, da obra Discurso sobre o método, de Descartes. Observe os eixos cartesianos e a construção da curva, neste que é o protótipo dos gráficos atuais.
O interesse inicial de Descartes em matemática estava relacionado às leis dos corpos em queda livre e ele utilizou-se em seus estudos de diagramas semelhantes àqueles existentes nos trabalhos de Oresme. Porém, é indubitável que Descartes evitou meticulosamente qualquer referência a seu antecessor e não se pode dizer com certeza que ele estivesse familiarizado com o trabalho de Nicolau, ainda que tudo indique que sim.

Outro exemplo de um sistema de coordenadas de Descartes para a construção de linhas e curvas, representando geometricamente a solução de raízes positivas de equações algébricas.
O conceito de função emergiu no século XVII como resultado do desenvolvimento da geometria analítica e do cálculo infinitesimal. Porém, o embrião de quantidades variáveis independentes e dependentes, que caracterizam as funções, surge com os trabalhos de Nicolau Oresme. A partir da obra de Descartes, os matemáticos foram capazes de trabalhar com problemas envolvendo curvas e equações algébricas como relações entre coordenadas variáveis x e y em um plano cartesiano. Mas o termo “função” passou a ser utilizado com mais frequência nas correspondências trocadas entre o gigante da matemática – o alemão Gottfried Leibniz – e o não menos importante matemático, o suíço Johann Bernoulli, para descrever uma quantidade associada a uma curva (como a inclinação de uma curva em um ponto específico).
O matemático suíço Johann Bernoulli
Bernoulli começou a chamar as expressões compostas de uma única variável como funções. Em 1.698 ele concordou com a proposição de Leibniz de que qualquer quantidade formada “de um modo algébrico e transcendental” poderia ser chamada uma função de x. Em 1.718, Bernoulli passou a considerar uma função “qualquer expressão composta de uma variável e algumas constantes”. Finalmente, por volta de 1.714, o matemático francês Alexis Claude Clairaut e outro dos gigantes da matemática, o suíço Leonhard Euler, introduziram a notação agora familiar de “f(x)” para o valor de uma função.

O matemático francês Alexis Claude Clairaut
Em matemática, uma função é a relação entre um conjunto de dados de entrada e um conjunto admissível de dados de saída, com a propriedade de que cada entrada está associada exatamente a uma saída. Um exemplo é a função que relaciona cada número real x com o seu quadrado x2. A função pode ser visualizada como uma máquina processadora: o conjunto de dados de entrada são as quantidades variáveis independentes (que denotamos por x), e o conjunto de dados de saída são as admissíveis quantidades variáveis dependentes, que denominamos f(x). A função f é a máquina que processa cada valor de x na entrada, transformando-a em outro valor f(x). A figura a seguir demonstra este conceito:

A máquina função f, que recebe quantidades variáveis independentes (x) e as transforma em quantidades variáveis dependentes f(x).
O conjunto de dados de entrada também é conhecido como domínio da função e os dados de saída como imagem da função e o conjunto de todos os pares entradas-saídas é denominado de gráfico. Vejamos o uso de funções na otimização de problemas, como este:

Um belo dia, um rei medieval convocou seu engenheiro real e ordenou que iniciasse a construção de um novo castelo em uma de suas propriedades de repouso. De modo particular, o rei deseja ter uma janela normanda em seu quarto, que ficará na face norte do castelo. Esta janela deve permitir tanta entrada de luz solar e ar fresco quanto possível. Por limitações técnicas construtivas naquela época, o engenheiro informou ao seu rei que o perímetro externo total da janela deveria ter, no máximo, 18 metros lineares. O rei, que não entendia de matemática, não se incomodou muito e aceitou esta restrição. O engenheiro, porém, precisa agora encontrar as melhores medidas para que a janela normanda tenha a máxima área possível para a entrada de luz solar e ar fresco que o rei tanto deseja.

A questão principal do problema, como enunciado, é maximizar a área da janela normanda. O primeiro passo neste caso é definir as medidas das figuras geométricas que compõem a janela, como indicado a seguir:

A parte retangular da janela tem base igual a x e altura y; a parte arredondada – um semi-círculo – tem raio igual a r. Nestas condições, podemos estabelecer que perímetro externo total da janela normanda é dado e igual a 18 metros lineares. A equação que define este perímetro será:
$$ P=2y+x+\pi r $$
$$ 18=2y+x+\pi r $$
Onde P representa o perímetro e vale 18 metros; 2y + x corresponde às alturas e base da parte retangular da janela e πr corresponde ao perímetro do semi-círculo que, somados, perfazem o perímetro externo total. Da figura, é possível observar que o raio do semi-círculo corresponde à metade da base retangular da janela, ou seja:
$$ r=\frac{x}{2} $$
Finalmente, a área da janela normanda será dada por:
$$ A=xy+\frac{\pi r^{2}}{2} $$
Onde A é a área da janela que se deseja maximizar, xy é a área da parte retangular da janela e πr2/2 é a área da parte semi-circular. Vamos agora transformar a área da janela na variável dependente em relação à base x da janela, ou seja, ela assumirá valores que dependem das possíveis dimensões de x, que passa a ser a variável independente do problema (poderíamos fazer o mesmo para a altura y ou para o raio r). Em resumo, a área passará a ser uma função da dimensão x da janela:
$$ A(x)=xy+\frac{\pi r^{2}}{2} $$
Mas para que isso seja verdade, temos que fazer com que as demais dimensões (y e r) fiquem também em função de x. Já sabemos que o raio r corresponde à metade da base x da janela:
$$ r=\frac{x}{2} $$
Resta agora calcular a relação de dependência entre a altura y da parte retangular da janela com sua base x, o que pode ser obtido através da fórmula do perímetro:
$$ 18=2y+x+\pi r $$
Isolando y na equação acima, temos:
$$ 2y=18-x-\pi r $$
$$ 2y=18-x-\pi \frac{x}{2} $$
$$ y=9-\frac{x}{2}-\pi \frac{x}{4} $$
A fórmula da área da janela normanda agora tem como ser uma função de sua base x. Com os devidos cálculos, temos:
$$ A(x)=x\left [ 9-\frac{x}{2}-\pi \frac{x}{4} \right ]+\frac{\pi x^{2}}{8} $$
$$ A(x)=9x-\frac{x^{2}}{2}-\frac{\pi x^{2}}{4}+\frac{\pi x^{2}}{8} $$
$$ A(x)=9x-\frac{x^{2}}{2}-\frac{\pi x^{2}}{8} $$
$$ A(x)=9x+x^{2}\left [ \frac{-4-\pi }{8} \right ] $$
A equação obtida condiciona a área da janela como uma função de uma de suas medidas, neste caso, sua base x. Esta área – como não poderia deixar de ser – resulta em uma equação quadrática. Tabulando as variáveis x, A, y, r e P e utilizando as fórmulas calculadas, temos:

x
A(x)
y
r
P
0
0
9
0
18
1
8,11
7,72
0,5
18
2
14,43
6,43
1
18
3
18,97
5,14
1,5
18
4
21,72
3,86
2
18
5
22,68
2,57
2,5
18
6
21,86
1,29
3
18
7
19,56
0,002
3,5
18
A linha destacada em laranja indica a máxima área que se pode obter na janela normanda dada a restrição de seu perímetro. Observe que na última linha da tabela a medida da variável y praticamente zera. Montando um gráfico cartesiano com base nas dimensões x e área A, temos:

No gráfico, o topo da curva quadrática indica, respectivamente, o valor em que a área da janela é máxima. Note que, se a base x da janela corresponde a 5 metros e a altura y da parte retangular vale, aproximadamente, 2,57 metros, então a aparência desta janela de fato será:

Com essa área, certamente não faltará luz solar e ar fresco no quarto do rei!

Referências bibliográficas:

[1]
Benestad, C.; Sanguinet, W.; Winders, M. “Origin of the fundamental theorem of calculus”, Math 121, Calculus II, Clark University. Acessado em Abril/2018 no sítio: https://mathcs.clarku.edu/~ma121/.
[2]
Wikipedia “Autólico de Pitane”, acessado em Abril/2018 no sítio:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Autólico_de_Pitane.
[3]
Restall, G. “Modal models for bradwardine’s theory of truth”, Review of
Symbolic Logic 1, págs. 225-240, 2008.
[4]
Eastman, T. E.; Epperson, M.; Griffin, D. R. "Physics and Speculative Philosophy: Potentiality in Modern Science", Walter de Gruyter GmbH & Co KG, 2016. ISBN: 3-1104-5181-6, 978-3-1104-5181-8.
[5]
Boyer, C. B. “History of analytic geometry”, Dover Books on Mathematics, 2012. ISBN: 0-4861-5451-3, 978-0-4861-5451-0.
[6]
Wikipedia, “History of the function concept”, acessado em Dez/2015. Site: https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_the_function_concept.
[7]
Wikipedia, “Function (mathematics)”, acessado em Dezembro/2015. Site: https://en.wikipedia.org/wiki/Function_(mathematics).