Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

quinta-feira, julho 23, 2015

Operações aritméticas com frações


Partitura do Aleluia Nativitas Gloriose Virgines Marie, do compositor francês Pérotin (c. 1.160 a c. 1.236. Latim: Perotinus). Sua especialidade eram os “órganons” – um dos vários estilos de polifonia medieval – que requerem a adição de uma ou mais vozes ao fundo monofônico do canto. O Aleluia Nativitas é um belíssimo exemplo de organa, com um tenor contraposto a duas ou três vozes executando vocalizações altamente decorativas. Música das esferas celestes...

Alleluia Nativitas (composta em 1.200), cantada a 3 vozes masculinas, à imitação de um órgão de fole. Há mais de 800 anos essa canção revive a melodia  da baixa idade média...
Os egípcios possuíam um método baseado na divisão, especialmente interessante para lidar com frações, chamado de "duplicação e corte pela metade", e que será demonstrado com este exemplo: 8 homens querem dividir 59 ânforas de vinho entre si. Quantas ânforas cada homem deve receber?
 
Ânfora egípcia de vinho – séc. 4 a 6 d.C.
Utilizando o método egípcio da divisão, montamos duas colunas, sendo que na da esquerda começamos a duplicação sempre a partir do número 1 e na coluna da direita iniciamos a duplicação do divisor, ou seja, do 8:

1
8
2
16
4
32
8
64

 A seguir, agregam-se os números da coluna da direita de modo que sua soma seja igual ou a mais próxima possível do valor do dividendo, que é 59. A combinação que mais se aproxima de 59 é 8 + 16 + 32 = 56, destacada em marrom. E na coluna à esquerda selecionam-se os números correspondentes àqueles utilizados para formar 56, que são: 1 + 2 + 4 = 7. O valor 7 é o quociente de 59 ÷ 8, com resto 3. Ou seja, sobraram 3 ânforas de vinho que devem ser divididas entre os 8 homens, além das 7 ânforas que cada um já recebeu na divisão. Para dividir este resto, os egípcios montavam uma nova tabela: na coluna à esquerda iniciamos o corte pela metade, começando sempre pelo número 1; e na coluna à direita iniciamos o corte pela metade do divisor, ou seja, 8.

1
8
1/2
4
1/4
2
1/8
1

 A soma de números da coluna da direita deve ser igual ao resto, neste caso, 2 + 1 = 3, destacado em marrom. Na coluna da esquerda obtemos as frações de vinho que compete a cada um receber. Assim, cada homem receberá 7 ânforas inteiras de vinho, mais 1/4 do volume de uma  ânfora, mais 1/8 do volume de uma ânfora. Mas será que a soma das frações destinadas a cada um dos 8 homens totalizam 3 ânforas? Vejamos: se dividirmos o volume de vinho de duas das três ânforas em 4 partes iguais e o volume da terceira ânfora em 8 partes iguais, e distribuirmos 1/4 + 1/8 do volume de vinho a cada um dos 8 homens, teremos:


Nota-se pelo esquema acima que a distribuição de vinho reparte-se igualmente entre as 3 ânforas restantes; mas, é importante destacar que este método de divisão nem sempre é aplicável. Uma curiosidade acerca das frações egípcias é que elas eram unitárias, o que implica dizer que o numerador era sempre 1 e o denominador assumia diferentes valores; a única exceção à regra é a fração 2/3, permitida nas contas egípcias. Outra curiosidade é que o resultado de uma divisão fracionária não pode ter duas frações com o mesmo valor. Para ilustrar estes casos, vejamos outro exemplo: como podemos dividir 66 alqueires de terra entre 7 pessoas? Mais uma vez, aplicando o método egípcio da divisão, montaremos uma tabela com duas colunas: na da esquerda começamos a duplicação sempre a partir do número 1 e na coluna da direita iniciamos a duplicação do divisor, ou seja, do 7:

1
7
2
14
4
28
8
56

A seguir, agregam-se os números da coluna da direita de modo que sua soma seja igual ou a mais próxima possível do valor do dividendo, que é 66. A combinação que mais se aproxima de 66 é 7 + 56 = 63, destacada em marrom na tabela. E na coluna à esquerda selecionam-se os números correspondentes àqueles utilizados para formar 63, que são: 1 + 8 = 9. O valor 9 é o quociente de 66 ÷ 7, com resto 3. Ou seja, sobraram 3 alqueires de terra que devem ser divididos entre as 7 pessoas. Neste caso, o processo de corte pela metade não é aplicável, pois o dividendo, 7, não é múltiplo de 2. Então, temos como resto da divisão a área de terra 3/7 que, entretanto, não é um tipo de fração aceito pelos egípcios. Mas podemos facilmente transformar a fração 3/7 em uma soma de frações unitárias, assim:


Mais uma vez os egípcios não aceitariam esta resposta, pois não permitiam duas ou mais frações iguais. Como último recurso, eles faziam uso do algoritmo do desdobramento, que consiste no seguinte: pegue uma das frações 1/7 e a transforme em duas outras, de modo que na primeira fração o denominador seja seu próprio valor somado de 1, ou seja, 1 + 7 = 8, resultando 1/8:


E na segunda fração o denominador seja a multiplicação de seu próprio valor pela soma do denominador mais 1, ou seja, 7 × (7 + 1) = 7 × 8 = 56, de modo que a segunda fração é 1/56:


O resultado obtido até aqui será:

Veja que se aplicou o algoritmo do desdobramento em duas das três frações 1/7. Ainda assim, temos a repetição das frações 1/8 e 1/56, de modo que para cada uma aplicaremos novamente o algoritmo do desdobramento. Começando pela fração 1/8, ao desdobrá-la em outras duas, seguindo o mesmo procedimento, vem: 1/(8 + 1) = 1/9 e 1/[8 × (8 + 1)] = 1/72. Repetindo a regra para a fração 1/56, obtém-se: 1/(56 + 1) = 1/57 e 1/[56 × (56 + 1)] = 1/3192. O resultado final deste desmembramento será:


Assim, cada pessoa receberá 9 alqueires de terra, mais as sete frações de alqueire. Note que esta segmentação em sete frações é muito pouco didática, ao contrário do exemplo das ânforas de vinho, em que a divisão fracionária do volume pôde ser visualmente demonstrada. Aqui, ao contrário, temos 7 frações, cada uma correspondendo a segmentações que crescem em dificuldade de representação. Se os egípcios aceitassem frações unitárias repetidas, ficaria fácil representar os 3 alqueires restantes segmentados em apenas 7 partes iguais. A impressão que se tem neste exemplo é que o objetivo do fracionamento é aumentar a precisão matemática da divisão representada pela fração 3/7 (que não é exata), e não necessariamente propor uma solução de cunho educativo, por assim dizer, para a divisão do terreno. O papiro de Ahmes nos fornece diversos problemas de representação fracionária, entre os quais este: como dividir 2 pães entre 7 pessoas? A divisão, neste caso, era levada a cabo com o bi seccionamento dos pães. Assim, num primeiro momento, teríamos:


Em seguida, bi seccionavam as metades de cada pão:


Por enquanto temos 2 pães, cada um dividido em 4 partes iguais. Ao distribuir os pedaços repartidos de pão entre as 7 pessoas, cada uma receberá 1/4 de pão e ainda sobrará uma quarta parte, que para ser igualmente repartida, deverá ser segmentada em 7 fatias idênticas:


Se um pão tivesse cada quarta parte dividida em 7 pedaços iguais, teríamos ao todo 28 fatias. Logo, cada sétima parte em que esse quarto de pão foi dividido corresponde, de fato, à 28ª parte do todo, ou seja, a 1/28 de um pão inteiro. Assim, cada uma das sete pessoas receberá 1/4 + 1/28 de pão.


O papiro de Ahmes ainda contém uma tabela que demonstra as divisões de 2 por números primos variando entre 3 e 101, expressas em somas de frações unitárias. Entretanto, o modo para se obter essas frações unitárias é motivo de intensos debates e não foi descoberto até hoje um método que funcione para todos os números primos dessa tabela, pois os egípcios não explicavam nos manuscritos como chegavam a tais resultados. Mas não eram apenas os egípcios que viviam de frações; os babilônios também lidavam com elas, ainda que à moda sexagesimal. De fato, o sistema numérico babilônico era posicional, mas de difícil interpretação, pois os cálculos efetuados dependiam totalmente do contexto. As frações babilônicas não precisavam ser unitárias, nem se exigia a ausência de frações repetidas, como no caso dos egípcios, mas o denominador era normalmente o número 60, pois o resultado da expressão seria conhecido. Assim, frações do tipo 1/7 ou 1/11 normalmente não eram utilizadas. Existem placas de argila que fazem a seguinte observação: "7 não divide", ou "11 não divide", o que revela a limitação que os babilônios enfrentavam no trato das frações. O exemplo a seguir ilustra bem a dificuldade de interpretação das contas babilônicas e o uso de frações:


Na ilustração acima, temos apenas dois glifos cuneiformes:


Estes glifos estão agrupados em 4 conjuntos numéricos, cujos valores absolutos são 1, 24, 51 e 10. Em função da resposta apresentada na placa de argila, estes números na verdade são frações, cuja representação moderna é a que se segue:

$$ 1+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60} $$


Também foi achada uma tabela em argila contendo todos os números inteiros inferiores a 60 cujo produto iguala-se a 60. Entre os números inteiros ausentes, estão o 7 e o 11, na coluna à esquerda; observe:

TABELA DE NÚMEROS INTEIROS CUJO PRODUTO É 60
2
30
16
3, 45
3
20
18
3, 20
4
15
20
3
5
12
24
2, 30
6
10
25
2, 25
8
7, 30
27
2, 13, 20
9
6, 40
30
2
10
6
32
1, 52, 30
12
5
36
 1, 40
15
4
40
1, 30
Por exemplo, para obter 60 a partir do número 27, destacado em verde na tabela acima, devemos adotar o seguinte procedimento:

$$ 27\times \left ( 2,13,20 \right )=27\times \left [ 2+\frac{13}{60}+\frac{20}{60\times 60} \right ] $$

Os mesmos números são válidos para obtermos seus recíprocos; assim, a fração 1/27 equivale a:

$$ \frac{1}{27}=\frac{2}{60}+\frac{13}{60\times 60}+\frac{20}{60\times 60\times 60} $$

Estes são exemplos que envolvem o mínimo múltiplo comum na solução de problemas envolvendo frações; de fato, toda soma ou subtração entre frações, ou entre números inteiros e frações, exige o uso do m.m.c. Considere o exemplo em que se obtém 60 a partir do número 27:

$$ \frac{1}{27}=\frac{2}{60}+\frac{13}{60\times 60}+\frac{20}{60\times 60\times 60} $$

Para resolver a soma de frações dentro dos colchetes, precisamos conhecer o mínimo múltiplo comum entre os denominadores 1, 60 e 3600. Seguindo o algoritmo de Euclides, concluiremos que 3600 é o mínimo múltiplo comum, mesmo porque as frações babilônicas são múltiplas de 60. A soma das frações será:

$$ \left [ \frac{2}{1}+\frac{13}{60}+\frac{20}{3600} \right ]=\left [ \frac{7.200+780+20}{3600} \right ]=\left [ \frac{8.000}{3.600} \right ]=\left [ \frac{80}{36} \right ]=\left [ \frac{40}{18} \right ]=\left [ \frac{20}{9} \right ] $$

A fração resultante, 20/9, é multiplicada por 27:


Na multiplicação de frações, numeradores multiplicam-se entre si, e o mesmo entre denominadores. Quando temos um número inteiro multiplicando uma fração, o número inteiro vira fração:


Dividir o 27 por 1 não altera em nada o seu valor, mas com esse artifício representamos o número em notação fracionária. Assim:


Já entre os gregos, podemos destacar os papiros de Hibeh, uma coleção de documentos datada de cerca de 300 a.C., descoberta em 1902 na necrópole ptolomaica de El-Hibeh, e que tratam de diversos assuntos (tais como calendário, correspondência privada, declarações e petições) oferecendo-nos uma imagem dos primórdios da aritmética grega e de como lidavam com frações em sua notação alfabética. Por exemplo, na linha 57 da segunda face da folha 27 encontra-se a seguinte notação, entre muitas outras:

ΙΑθ'Ι'Λ'

Cuja transcrição para o nosso sistema decimal é:

(10)(1)(9)'(10)'(30)'

Conforme visto antes, as letras gregas sucedidas de apóstrofes representam frações unitárias; logo, a notação acima, na forma moderna, seria:

$$ 10+1+\frac{1}{9}+\frac{1}{10}+\frac{1}{30} $$

O mínimo múltiplo comum entre os denominadores 9, 10 e 30 é, segundo o algoritmo de Euclides, 90. Somando separadamente as partes inteira e fracionária, obtém-se:

$$ 11+\frac{10+9+3}{90}=11+\frac{22}{90}=11+\frac{11}{45} $$

Ou ainda, na forma atual de frações mistas:

$$ 11\frac{11}{45} $$

Nota-se aqui a influência egípcia no uso de frações unitárias entre os gregos. Coube aos árabes a gradual extrapolação da barreira das frações unitárias com o auxílio do conceito de multiplicação. No início, eles faziam uso da decomposição em frações unitárias como os egípcios, mas depois passaram a permitir produtos de frações unitárias nas decomposições, tal como no caso da decomposição da fração 9/10:

$$ \frac{9}{10}=\frac{1}{2}+\frac{1}{3}+\frac{2}{3}\times \frac{1}{10} $$

Primeiro, multiplicamos as frações 2/3 e 1/10, resultando em 2/30; em seguida, encontramos o mínimo múltiplo comum entre os denominadores 2, 3 e 30 que, segundo o algoritmo de Euclides, é 30. Assim, temos:

$$ \frac{1}{2}+\frac{1}{3}+\frac{2}{30}=\frac{15+10+2}{30}=\frac{27}{30}=\frac{9}{10} $$

Problemas envolvendo frações eram comuns entre os árabes, inclusive nas questões testamentárias, como esta:

Um pai deixou em seu testamento 17 camelos a seus 3 filhos. Metade deles ao filho mais velho, a terça parte ao do meio, e a nona parte ao caçula. Cumpram o testamento, sem matar um camelo sequer!

Das condições expostas, temos:

$$ \frac{17}{2}+\frac{17}{3}+\frac{17}{9}  $$

O mínimo múltiplo comum entre os denominadores 2, 3 e 9 é 18. Logo, obtém-se:

$$ \frac{17}{2}+\frac{17}{3}+\frac{17}{9}=\frac{153+102+34}{18}=\frac{289}{18} $$

A divisão de 289 por 18 resulta, em camelos:

$$ 16\frac{1}{18} $$

restando 17/18 de um camelo. Ou seja, a distribuição testamentária dos 17 camelos na metade, terça e nona parte não é exata para nenhum dos 3 filhos, obrigando a que mais de um camelo seja fatiado para atender ao testamento... Logo, a vontade do pai não será satisfeita!


São chamadas de frações próprias aquelas em que o numerador é menor que o denominador; e são denominadas impróprias quando o numerador é maior que o denominador. Fibonacci, em seu Liber Abaci, demonstra como obter uma soma de frações unitárias a partir de frações próprias. Vejamos como isso funciona usando como exemplo a fração: 237/512. Pelo método de Fibonacci, procedemos à divisão do denominador (512) pelo numerador (237), contrariamente ao que indica a fração:


O quociente da divisão é 2; então, seguindo o método, pega-se o número imediatamente acima do quociente, ou seja, o 3, que será o denominador da primeira fração unitária obtida: 1/3. Em seguida, subtrai-se 1/3 de 237/512 (lembre-se: é preciso obter o mínimo múltiplo comum entre 512 e 3):

$$ \frac{237}{512}-\frac{1}{3}=\frac{711-512}{1.536}=\frac{199}{1.536} $$

Como a fração obtida (199/1536) não é unitária, repetiremos o processo, dividindo o denominador pelo numerador:


Agora, o quociente desta divisão é 7; então, pega-se o número acima do 7, ou seja, o 8, que será o denominador da segunda fração unitária obtida: 1/8. Em seguida, subtrai-se 1/8 de 199/1536 (mais uma vez, calcula-se o m.m.c. entre 1536 e 8):

$$ \frac{199}{1.536}-\frac{1}{8}=\frac{199-192}{1.536}=\frac{7}{1.536} $$

Como a fração obtida (7/1536) não é unitária, repetimos o processo, ao dividir o denominador pelo numerador:


O quociente da divisão é 219; então, pelo método de Fibonacci, pega-se o número acima do 219, ou seja, o 220, que será o denominador da terceira fração unitária obtida: 1/220. Em seguida, subtrai-se 1/220 de 7/1536 (de novo, calcule o m.m.c. entre 1536 e 220):

$$ \frac{7}{1.536}-\frac{1}{220}=\frac{385-384}{84.480}=\frac{1}{84.480} $$

Como esta última subtração resultou em uma fração unitária (1/84480), encerra-se o procedimento. Logo, segundo Fibonacci, a fração 237/512 pode ser representada pela soma das seguintes frações unitárias:

$$ \frac{237}{512}=\frac{1}{3}+\frac{1}{8}+\frac{1}{220} $$

De fato, qualquer fração própria pode ser representada por uma soma de frações unitárias, à moda egípcia. De modo análogo, qualquer fração imprópria pode ser representada por uma fração contínua, cuja representação se dá por números inteiros somados a frações unitárias encadeadas, neste formato:

$$ a+\frac{1}{b+\frac{1}{c+\frac{1}{d+...}}} $$

Onde a, b, c, d, etc. representam os tais números inteiros. Para ver como funciona essa estrutura, vamos transformar a fração imprópria 313/97 em uma fração contínua. Primeiro, dividiremos 313 por 97 seguindo o método tradicional:


Até aqui, sem novidades: 313 dividido por 97 dá 3; 3 multiplicado por 97 dá 291; 313 subtraído de 291 dá 22 de resto. O quociente 3 é o primeiro número inteiro da fração contínua. Agora aplicamos o método de Fibonacci, transformando o resto em divisor e o divisor em dividendo:


O quociente 4 é o segundo número inteiro da fração contínua. Mais uma vez, transformamos o resto em divisor e o divisor em dividendo:


O quociente 2 será o terceiro número inteiro da fração contínua. Prosseguindo, transformamos o resto em divisor e o divisor em dividendo, resultando:


O quociente 2 será o quarto número inteiro da fração contínua. Repetimos o processo, transformando o resto em divisor e o divisor em dividendo:


O quociente 4 será o quinto número inteiro da fração contínua. Como não há resto, encerramos o processo de divisão. A fração contínua resultante será:

$$ \frac{313}{97}=3+\frac{1}{4+\frac{1}{2+\frac{1}{2+\frac{1}{4}}}} $$

Bom, já vimos soma, subtração e multiplicação entre duas ou mais frações, faltando somente conhecer a divisão entre elas. Para isso, tomemos o seguinte exemplo:


Aqui, queremos dividir 3/8 por 2/5. A idéia por trás da divisão entre duas frações é reduzir o denominador (neste caso, o 2/5) à unidade, pois qualquer número dividido por 1 resulta no próprio número. Assim, para que a fração 2/5 se transforme na unidade, ela deve ser multiplicada por 5/2. Mas, como multiplicaremos o denominador por 5/2, devemos também multiplicar o numerador por 5/2, afim de não alterar o valor original dessa divisão. Assim, temos:


Esse é, de fato, o raciocínio matemático por trás da divisão entre duas frações. A regra aprendida na escola, em que passamos o denominador invertido para o numerador, multiplicando a ambos, é apenas uma simplificação, que apesar de válida só mascara o cálculo verdadeiro por trás dessa divisão.


Bom, vimos no primeiro volume que o hindu Brahmagupta, em 628 d.C., em sua obra Brahmaphutasiddhanta, foi o matemático que deu a melhor definição do número zero e de suas respectivas propriedades  aritméticas até aquela época, o que não quer dizer que estivessem todas corretas... Ele definiu o zero como a quantidade que se é obtida quando subtraímos um número dele mesmo, para em seguida elaborar os procedimentos da soma, subtração, multiplicação e divisão por zero. Ele escreve acertadamente:

“A soma de zero e um número é o próprio número, a soma de zero e zero é zero. Um número subtraído de zero é o próprio número. Zero subtraído de zero é zero.”

A multiplicação de um número por zero é facilmente assimilada quando utilizamos dinheiro para realizar essa conta. Suponha que eu tenha R$ 0,00 em dinheiro na minha carteira. Se eu multiplicar esse valor por 300, continuo sem um único centavo em meus bolsos. Ou seja: qualquer número, quantidade ou valor multiplicado por zero dão, como resultado, zero. Mas a divisão de um número por zero se torna uma questão bem problemática para Brahmagupta, como se observa abaixo:

“Um número, quando dividido por zero, é uma fração, tendo o zero como denominador. Zero dividido por um número tanto pode ser zero como ser expresso por uma fração, tendo o zero como numerador e a quantidade definida como denominador. Zero dividido por zero é zero.”

A primeira frase estabelece uma divisão por zero em forma fracionária, mas não dá o seu resultado; a segunda frase está correta; já a última frase de Brahmagupta sobre a divisão de zero por zero está errada. Mahavira, outro matemático hindu, em 830 d.C., em seu tratado Ganitasangraha, percebeu que a explicação sobre a divisão por zero dada por Brahmagupta era inadequada, sendo mais assertivo ao afirmar que:

“Um número permanece inalterado quando dividido por zero”

O que está igualmente incorreto. Posteriormente, Bhaskara, em 1.150 d.C., tenta corrigir o erro de Mahavira em sua obra Lilavati com a seguinte colocação:

“Uma quantidade dividida por zero torna-se uma fração, na qual o denominador é zero. Esta fração é denominada uma quantidade infinita. Nesta quantidade composta por aquilo que tem zero como seu divisor, não há alteração, embora muitos possam ser inseridos ou extraídos, assim como não ocorre mudança no infinito e imutável Deus quando mundos são criados ou destruídos, ainda que numerosas ordens de seres sejam absorvidas ou expelidas.”

Apesar do vislumbre de Bhaskara sobre a noção matemática de infinito, ele tampouco foi capaz de chegar ao conceito moderno de que a divisão por zero é indefinida. E porque é indefinida? Vejamos o seguinte exemplo:

$$ \frac{7}{0}=?\rightarrow 0\times ?=7 $$

Quanto dá 7 dividido por zero? Podemos melhorar a pergunta, formulando-a como os egípcios faziam: "Por quanto o zero deve ser multiplicado para resultar 7?" Como vimos acima, qualquer número que seja multiplicado por zero, resulta zero. Portanto, não se conhece um número que multiplicado por zero dê 7 ou qualquer outra coisa que não seja zero, ou poderíamos dizer que não possuímos ferramental matemático que nos permita definir o resultado dessa divisão; assim, dividir um número por zero não nos fornece uma solução satisfatória, daí porque indefinida.


Muito bem, agora analise qual o resultado da fração abaixo, que é a transliteração em termos matemáticos da segunda frase de Brahmagupta:

$$ \frac{0}{7}=? $$

O matemático afirma que esta fração é igual a zero. Veja por que: se alguém não tem nada a dividir entre sete pessoas, quanto cada pessoa receberá dessa divisão? Vamos refazer a pergunta ao estilo dos antigos egípcios: por quanto o 7 deve ser multiplicado para resultar zero? Já sabemos que qualquer número, valor ou quantidade multiplicado por zero resulta zero. Ou seja, o resultado é bem definido, ainda que as 7 pessoas não fiquem muito felizes de mãos vazias... As frações também podem aumentar de complexidade; veja o exemplo a seguir:

$$ \frac{23-3\times 3}{17+108\div 3\times 3} $$

Alguém que se depare pela primeira vez com uma fração deste tipo, e dependendo da maneira como encare o problema, poderia chegar a diferentes resultados. Como este:

$$ \frac{23-3\times 3}{17+108\div 3\times 3}=\frac{20\times 3}{17+36\times 3}=\frac{60}{53\times 3}=\frac{60}{159} $$

Nesta tentativa subtraiu-se, numa primeira etapa, 23 de 3 no numerador, resultando 20, e dividiu-se 108 por 3, resultando 36, no denominador. No segundo passo, multiplicou-se 20 por 3 no numerador, chegando a 60, e somou-se 17 com 36, dando 53, no denominador. Por fim, multiplicou-se 53 por 3, resultando 159, no denominador. Outro resultado possível seria este:

$$ \frac{23-3\times 3}{17+108\div 3\times 3}=\frac{23-9}{17+108\div 9}=\frac{14}{17+12}=\frac{14}{29} $$

Ou ainda, este:

$$ \frac{23-3\times 3}{17+108\div 3\times 3}=\frac{23-9}{17+36\times 3}=\frac{14}{17+108}=\frac{14}{125}  $$

Já que os cálculos aritméticos não contêm erros, qual das três respostas é a correta? Bom, para evitar este tipo de confusão é que existe a precedência, ou ordem, nas operações aritméticas. Não se tem muita informação acerca das notações e dos procedimentos associados àquilo que hoje chamamos ordem das operações, mas existem evidências de que as práticas atuais se desenvolveram gradualmente ao longo da evolução matemática. A ordem das operações, atualmente aceita e praticada em todo o mundo, é a seguinte:


Note que a divisão e a multiplicação têm a mesma prioridade; calcula-se aquela que surgir primeiro, adotando-se o sentido de leitura das contas, ou seja, da esquerda para a direita. O mesmo ocorre para a soma e a subtração por terem, ambas, a mesma prioridade. Assim, para a fração acima, a resposta correta é a terceira solução (14/125), pois no numerador a multiplicação (3 × 3) tem precedência sobre a subtração (23 – 3); no denominador a divisão (108 ÷ 3) tem a mesma prioridade da multiplicação (3 × 3), mas como a divisão veio antes da multiplicação no sentido de leitura, também é a primeira a ser calculada. E a multiplicação resultante (36 × 3) tem precedência sobre a soma (17 + 36). Um erro de cálculo que ocorre com frequência neste tipo de fração está indicado abaixo:

$$ \frac{23-\left ( 3\times 3 \right )}{17+108\div \left ( 3\times 3 \right )}=\frac{23-1}{17+108\div 1}=\frac{22}{17+108}=\frac{22}{125}  $$

Aqui, o (3 × 3) do numerador foi "cancelado" com o (3 × 3) do denominador, o que não é permitido, pois basta que haja no numerador, ou no denominador, ou em ambos, uma soma e/ou uma subtração para que esse tipo de simplificação não seja possível. O correto mesmo é seguirmos as regras de precedência, efetuando todas as contas no numerador em separado das contas no denominador. Se a fração resultante puder ser simplificada aí sim, e somente nesse momento, é que ela ocorrerá. O tal "cancelamento" só seria possível se tivéssemos:

$$ \frac{23\div \left ( 3\times 3 \right )}{17\times 108\div \left ( 3\times 3 \right )}  $$

Como neste exemplo temos apenas multiplicações e divisões, tanto no numerador quanto no denominador (aliás, não nos esqueçamos de que a própria fração representa uma divisão entre dois números), então podemos "cancelar", ou simplificar, o (3 × 3) do numerador com o (3 × 3) do denominador. Se, ao invés disso, tivéssemos:

$$ \frac{23-\left ( 3+ 3 \right )}{17\times 108-\left ( 3+ 3 \right )} $$

Seria impraticável simplificar o (3 + 3) do numerador com o (3 + 3) do denominador. Se fizéssemos isso, obteríamos a resposta incorreta abaixo:

$$ \frac{23-\left ( 3+ 3 \right )}{17\times 108-\left ( 3+ 3 \right )}=\frac{23-1}{17+108-1}=\frac{22}{125-1}=\frac{22}{124} $$

Quando de fato a resposta correta para essa fração é, segundo as regras de precedência:

$$ \frac{23-\left ( 3+ 3 \right )}{17\times 108-\left ( 3+ 3 \right )}=\frac{23-6}{17+108-6}=\frac{17}{125-6}=\frac{17}{119} $$

Agora que já vimos como operar aritmeticamente com frações, vamos potencializar o horizonte de nossos conhecimentos matemáticos.

Referências bibliográficas:

[1]

Beekmans, L; “The splitting algorithm for Egyptian fractions”, Journal of Number Theory 43, pp. 173 – 185, 1993.

[2]

Wikipedia; “Egyptian fraction”, acessado em Setembro/2021. Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Egyptian_fraction

[3]

Kosheleva O.; Kreinovich V.; "Egyptian fractions revisited", Informatics in Education, 2009, Vol. 8, No. 1, pp 35–48.

[4]

Wikipedia; “Babylonian mathematics”, acessado em Setembro/2021. Site: https://en.wikipedia.org/wiki/Babylonian_mathematics

[5]

O’Connor, J. J.; Robertson, E. F.; "An overview of Babylonian mathematics", Mac Tutor, School of Mathematics and Statistics, University of St. Andrews, acessado em Setembro/2021. Site: https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/HistTopics/Babylonian_mathematics/

[6]

Fowler, D. H.; Turner, E. G.; ”Hibeh papyrus i27: An early example of Greek arithmetical notation”, Historia Mathematica 10, pp 344 – 359, 1983.

[7]

Katz, V. J.; “Recreational problems in medieval mathematics”, Convergence, MAA – Mathematical Association of America, December 2017. Acessado em Set/2021: https://www.maa.org/press/periodicals/convergence/recreational-problems-in-medieval-mathematics

[8]

Berggren, J. L.; “Episodes in the mathematics of medieval Islam”, Springer Science + Business Media, 2016. ISBN: 978-1-4939-3778-3. e-ISBN: 978-1-4939-3780-6.

[9]

Wikipedia; “Continued fraction”, acessado em Setembro/2021. Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Continued_fraction

[10]

Wikipedia; “Brahmagupta”, https://en.wikipedia.org/wiki/Brahmagupta, acessado em Setembro/2021.

[11]

Sykorova, I.; "Fractions in ancient Indian mathematics", WDS'10 Proceedings of Contributed Papers, Part I, 2010, pp 133–138.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.