Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

segunda-feira, janeiro 12, 2015

A evolução dos símbolos matemáticos aritméticos



S

e os algarismos passaram por uma verdadeira epopéia até alcançarem a formatação universalmente conhecida em nossos dias, com os símbolos aritméticos a jornada não foi menos atribulada. Para tornar a coisa toda um pouco mais simples, iniciemos com a evolução dos dois símbolos mais utilizados nas operações aritméticas básicas: a soma e a subtração. Dos babilônios, sabe-se que possuíam um ideograma cujo significado era "menos"; e só. Dos egípcios, chegou aos nossos dias um papiro, denominado papiro de Ahmes ou de Rhind, uma tira estreita de mais de 5 metros de comprimento por 8 centímetros de largura contendo 85 problemas matemáticos em grafia hierática e datado de cerca de 1.650 a.C. Neste manuscrito, o problema de número 28, transcrito para o hieroglífico, apresenta um par de pernas andando para frente:
para representar uma soma, e um par de pernas andando para trás:
para representar uma subtração (dependendo do sentido de leitura que se adotava). Já em outro papiro um pouco mais antigo (escrito por volta de 1.850 a.C., também em hierático), este conhecido como papiro de Moscou ou de Golonishev, o significado do par de pernas andando para frente era completamente diferente: elevar um número ao quadrado...
O problema 28 em escrita hierática do papiro Ahmes...

...e o mesmo problema traduzido para o hieroglífico, com os pares de pernas andando para frente e para trás para indicar, respectivamente, soma ou subtração.

A tradução para o português do problema 28, cujo objetivo é descobrir um determinado número, é a seguinte:
“Quando, de um número, 2/3 são somados e 1/3 (desta soma) é subtraído, restam 10. Tome 1/10 desses 10: o resultado é 1, o resto é 9; 2/3 deste, ou seja, 6, adicionados a ele e o total é 15. 1/3 dele é 5. Quando 5 é subtraído, o resto é 10. Qual é esse número?”
Os maias não tinham símbolos para a adição e subtração, mas possuíam um método engenhoso e criativo para fazer essas operações aritméticas, simplesmente justapondo as colunas dos números a serem somados ou subtraídos e procedendo a determinadas regras para obter o resultado. Já para o matemático grego Diofanto de Alexandria, em sua Aritmética (um tratado com 130 problemas algébricos e suas soluções numéricas) a soma era uma simples justaposição entre os números a serem somados ou, esporadicamente, fez uso de uma barra inclinada (/) entre eles; a subtração, por sua vez, era representada por uma curva:
semelhante à nossa vírgula. Os hindus não possuíam um símbolo para a adição, exceção feita ao manuscrito de Bakhshali, um texto matemático feito de casca de bétula contendo 70 folhas e descoberto em 1881 no vilarejo de mesmo nome, no qual o sinal de adição é representado pela palavra hindu yu. Para indicar quantidades negativas os hindus utilizavam um ponto (.); porém, no manuscrito de Bakhshali, o sinal de subtração é representado, curiosamente, por um sinal idêntico ao da adição (+). Entre os árabes, destaca-se al-Qalasadi (nascido em Bastah em 1.412, na Andaluzia, atual Espanha) com o seu tratado de aritmética e álgebra, ao utilizar-se de caracteres do alfabeto árabe para fazer as vezes dos sinais matemáticos; neste caso, a adição era representada pelo caractere árabe wa (ﻭ), que significa "e", aplicado como preposição.
Assim, 22 "e" 15 seria descrita como uma soma. Na Europa medieval, os símbolos aritméticos da adição e da subtração assumiram variadas formas. Assim, o sinal de soma deriva, supõe-se, de uma simplificação da palavra latina et (que originou o nosso bom e velho "e" em português). A cruz latina também foi utilizada como símbolo de adição, assumindo diversas formas:
Estes sinais eram mais frequentes em obras publicadas por matemáticos alemães e ingleses, ainda que não fosse uma regra geral. Já entre os matemáticos italianos, franceses, espanhóis e portugueses era mais comum o uso deste símbolo:

simplificação da palavra latina plus (mais). Uma variação desse símbolo: 

também existiu. O sinal de subtração, por sua vez, sofreu menos variações, assumindo desde muito cedo sua forma atual (–), mas também esta: ÷, que hoje usamos para representar a divisão. Curioso é que o símbolo ÷ foi utilizado por muitos matemáticos para representar subtrações por mais de 400 anos e sem uma razão aparente para essa escolha! A forma:
simplificação do latim minus (menos) também foi amplamente utilizada, além de uma ocorrência de sua variante:
Excerto do "Libro de algebra en arithmetica y geometria" de 1567, do português Pedro Nunes, uma obra matemática de grande sucesso na Europa em sua época, com os sinais de soma e subtração

Os alemães são considerados os primeiros a fazerem uso do símbolo atual da subtração, graças à sua aparição em um manuscrito anônimo de 1.481 (atualmente na biblioteca de Dresden) sobre álgebra.
O sinal de menos (denominado minnes) no manuscrito de álgebra de 1.481, arquivado na biblioteca de Dresden

Credita-se a outro alemão, o matemático Johannes Widman, a primazia pelo uso do moderno sinal de adição, em seu livro Aritmética Mercantil, editado em 1.498.
Excerto do livro "Aritmética Mercantil" (Rechenung auff allen Kauffmanschafft) de 1.498, de Johannes Widman, onde se vê o uso do atual sinal de adição, bem como o de subtração, este já um velho conhecido dos matemáticos alemães naquela época

Interessante observar que os símbolos:
surgiram praticamente ao mesmo tempo na Europa durante o século 15 d.C. e competiram entre si pela supremacia de seu uso por mais de um século, até que finalmente o + e o – prevaleceram sobre os demais símbolos e passaram a ser adotados em definitivo. A história evolutiva dos sinais de multiplicação e divisão foi outra saga. Os babilônios possuíam um ideograma para a multiplicação, cujo significado era "vezes", e outro ideograma para a divisão; e só. Os egípcios não tinham símbolos para essas operações aritméticas; a multiplicação egípcia usava a "duplicação", um tipo de adição com números inteiros. A divisão utilizava um método semelhante, chamado "duplicação e corte pela metade", usado para dividir números inteiros, com ou sem resto. Os maias, tal como os egípcios, não tinham símbolos para representar uma multiplicação ou uma divisão; as colunas de números eram sempre justapostas, aplicando-se em seguida métodos específicos para cada uma dessas operações, de modo que era mais o resultado, ou antes, a questão proposta, que indicava qual o cálculo efetuado. Entre os gregos, é novamente a obra de Diofanto, Aritmética, que nos serve de referência; porém, ele também não utilizava um símbolo para multiplicações. A divisão, entretanto, era representada pela palavra μορίου (cujo sentido pode ser "mutilar") aplicada entre os fatores. Entre os hindus era comum representar a divisão colocando-se o divisor (ou seja, aquele que divide) embaixo do dividendo (aquele que é dividido). No manuscrito de Bakhshali, porém, a divisão é indicada pela abreviação bha, de bhâga, cujo significado é "parte" e a multiplicação é indicada, em geral, colocando-se os números um ao lado do outro. Já nos manuscritos do matemático e astrônomo hindu Bhaskara (que viveu na Índia entre 1.114 e 1.185 d.C.) a mesma abreviação bha aparece, mas neste caso é uma contração de bhavita (cujo significado é "produto") para indicar multiplicação, e não divisão; outras vezes, Bhaskara representa a multiplicação por um ponto entre os fatores sem maiores explicações. Por sua vez, al-Qalasadi utilizava o caractere árabe, fi (ف), significando "vez", para representar uma multiplicação entre dois números e ala (ة), significando "sobre", para indicar uma divisão.
 
Dois séculos antes, em 12 d.C., o matemático árabe de origem marroquina Abu Bakr al-Hassar, é considerado o primeiro autor a fazer uso do traço horizontal para escrever o denominador abaixo do numerador, indicando uma divisão. As obras matemáticas da Europa medieval foram prolíficas no uso de símbolos para denotar multiplicação e divisão. O matemático e monge agostiniano Michael Stifel, em seu Deutsch Arithmetica, de 1.545, usava a letra maiúscula M para indicar multiplicação e a letra maiúscula D para a divisão. Esta nomenclatura voltaria a ser utilizada no L’Arithmetique, de 1.585, pelo engenheiro, físico e matemático flamengo Simon Stevin.
A nomenclatura utilizada por Simon Stevin em seu "L’Arithmetique" para indicar multiplicação (M) e divisão (D)

Pedro Nunes, em seu Libro de Algebra, não utiliza um símbolo para a multiplicação, ainda que um ponto seja colocado entre cada número ou operação aritmética como uma marcação para diferenciar a equação matemática do texto explicativo. Já o símbolo de divisão utilizado em sua obra é um traço horizontal, o mesmo para representar frações.
Excerto do "Libro de Algebra", de Pedro Nunes, onde se observam os pontos e o símbolo de divisão representado por uma barra horizontal nas expressões matemáticas, na penúltima e última linha do texto.

O símbolo de multiplicação, representado pela cruz de Santo André (×), tal como é empregado atualmente, surge pela primeira vez (ao que tudo indica) no Clavis Mathematicae, obra editada em latim pelo matemático inglês William Oughtred em 1.667.
Excerto do "Clavis Mathematicae", de William Oughtred, onde se pode observar a cruz de Santo André utilizada como símbolo de multiplicação.

E o símbolo de divisão, representado por um traço com dois pontos (÷), cujo nome em latim é obelu, aparece pela primeira vez na obra Teutsche Algebra, de 1.659, de autoria do matemático suíço Johann Heinrich Rahn. Neste mesmo trabalho, entretanto, o asterisco (*) é utilizado como sinal de multiplicação; interessante notar que hoje, em muitas linguagens computacionais, o asterisco representa o sinal de multiplicação.
Excertos da obra “Teutsche Algebra”, de Johann Rahn, onde se observa: acima à direita, o símbolo de divisão (assim chamado obelu), e abaixo à direita, o asterisco para representar uma multiplicação.

O último símbolo de que trataremos neste capítulo é o de igualdade. Não há indicações de que os babilônios possuíssem um ideograma para esse sinal; e só. Os egípcios possuíam um sinal hierático que significava "dá", para indicar o resultado de um cálculo, como fazemos hoje em dia com "2 vezes 5 dá: 10". Esse sinal é encontrado no papiro de Ahmes.
Uma equação algébrica e sua solução no papiro de Ahmes. Na primeira linha, destacado em vermelho, o sinal hierático cujo significado é "dá", sendo equivalente ao nosso símbolo de igualdade.

Os maias não possuíam um símbolo para o sinal de igualdade. Já nos manuscritos do grego Diofanto de Alexandria, o sinal de igualdade é representado por: ισ. O manuscrito hindu de Bhakshali utiliza a contração pha (de phala, cujo sentido é: "igual à") para representar o resultado de uma operação matemática. E o árabe al-Qalasadi faz uso do caractere yadilu (ﻝ) com esse mesmo propósito. A Europa medieval é quem novamente oferece um cardápio variado de opções de sinais ou palavras para representar uma igualdade ou o resultado de uma operação matemática. Muitos autores utilizavam a palavra "igual" em latim ou em seu idioma natal para denotar uma igualdade; neste rol encontram-se, entre outros: Palto de Tivoli, Pedro Nunes, Michael Stifel, Francisco Vieta, etc.
A palavra latina equales para igual, segundo Palto de Tivoli

A palavra latina aequale para igual, segundo Francisco Vieta

A palavra yguales para igual, segundo Pedro Nunes.

A palavra alemã gleich para igual, segundo Michael Stifel

Por outro lado, o monge franciscano e matemático italiano Luca Pacioli, em seu Summa de Arithmetica, editado em 1.494, utiliza, em uma de suas demonstrações matemáticas às margens do livro, o travessão (–) como sinal de igualdade.
O travessão (–) como sinal de igualdade, seguido do número 36 como resultado da conta, no livro “Summa de Arithmetica”, de Luca Pacioli.

O matemático francês Joannes Buteo, entretanto, em seu livro Logistica, editado em 1.559, apropria-se do colchete ([) para indicar igualdades.
Excerto do “Logistica”, de Joannes Buteo, com os colchetes para representar igualdade.

Atribui-se, enfim, ao matemático inglês Robert Recorde, em seu livro The Whettstone of Witte (editado em 1.557), a primazia pela criação e emprego do sinal "igual a" (=) para representar uma igualdade.
Um alongado sinal de igualdade, antecedido por outro igualmente alongado sinal de soma, no “The Whettstone of Witte”, de Robert Recorde.

De tudo o que foi exposto até aqui, depreende-se que, após tantas experimentações pelos eruditos matemáticos ao longo de décadas, principalmente na Europa e mais precisamente durante o período conhecido como Renascentismo ou Renascença (historicamente situado ente os séculos 12 e 16 d.C.), e sobretudo após a invenção da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg em 1.439 – que proporcionou uma verdadeira revolução na disseminação do conhecimento acumulado até então – subsistiram paulatinamente somente os sinais aritméticos que semiologicamente se adaptavam melhor à linguagem matemática nascente, dando-lhe uma forma e um estilo que, ao mesmo tempo em que a diferenciava da linguagem escrita, habilitava aos iniciados nessa ciência a imediata compreensão do significado de uma expressão escrita em tais termos.
Os sinais de soma, multiplicação, subtração, divisão e igualdade, tal como os conhecemos.

A uniformização desses sinais permitiu, enfim, que a linguagem escrita e falada se tornasse um obstáculo menor à compreensão da linguagem matemática, de modo que, independentemente do idioma, a língua dos números e das operações aritméticas tornou-se, inexoravelmente, universal. 

 

Referências bibliográficas:

[1]

Fink, K. “A brief history of mathematics”, The Open Court Publishing Company, 1900.

[2]

Cajori, F. “A history of mathematical notations – Vol. I: Notations in elementary mathematics”, The Open Court Company, 1928.

[3]

Cizmar, J. “The origins and development of mathematical notation (A historical outline)”, Quaderni di Ricerca in Didattica No.9, pp. 105-124, 2001.

[4]

Dantzig, T.  “Number – The language of science”, Pearson Education, Inc., 2005. ISBN: 0-13-185627-8

[5]

Mezbach, U. C.; Boyer, C. B. “A history of mathematics”, 3rd Edition, John Willey & Sons, 2011. ISBN: 978-0-470-52548-7.

[6]

Cooke, R. L. “The history of mathematics – A brief course”, 3rd Edition, John Willey & Sons, 2013. ISBN: 978-1-118-21756-6

[7]

Pedro Nunes, “Libro de algebra en arithmetica y geometria”, 1567.

[8]

Johannes Widman, “Rechenung auff allen Kauffmanschafft”, 1498.

[9]

Simon Stevin, “L’Arithmetique”, 1585.

[10]

William Oughtred, “Clavis Mathematicae”, 1667.

[11]

Johann Rahn,  “Teutsche Algebra”, 1659.

[12]

Platus Tiburtinus, “"Liber embadorum a. Savasorda in ebraico compositus et a Platone Titurtino in latinum sermonem translatus.Liber Ersemidis in quadratum circuli [De geometria practica]”, 1145.

[13]

Francisco Vieta, “Opera Mathematica”, 1646.

[14]

Luca Pacioli, "Summa de arithmetica geometria", 1523.

[15]

Joannes Buteo, "Logistica, quae et Arithmetica vulgo dicitur in libros quinque digesta", 1559.

[16]

Robert Recorde, “The Whetstone of Witte”, 1557.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.