Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

sexta-feira, maio 18, 2018

A álgebra medieval, renascentista e moderna

Iluminura do livro “As mui ricas horas do duque de Berry”, encomendado em 1.410.
Uma das primeiras coleções de problemas na forma de jogos ou enigmas matemáticos escritos em latim já encontrados no mundo ocidental é o manuscrito atribuído ao monge da Nortúmbria, Alcuíno de Iorque, com o título Propositiones ad Acuendos Juvenes, ou Proposições para Instruir os Jovens, escrito por volta de 800 d.C.


Manuscrito carolíngio, cerca de 831 d.C. com Alcuíno (em segundo plano) apresentando seu aluno Rábano Mauro (à esquerda), que carrega nas mãos a obra de seu mestre, manuscrito este dedicado ao arcebispo Odgar de Mainz (à direita).
Tendo-se encontrado em 781 com o monarca Carlos Magno em Parma, recebe deste o convite para ajudá-lo a instruir e reformar a corte e o clero de seu reino. Como resultado deste convite, Carlos Magno manda erigir, por volta de 790, a catedral de Aquisgrão (ou Aachen), na Alemanha, onde viria a ser sepultado em 814. Na então capela original (Capela Palatina), o monge Alcuíno funda o Palácio-Escola (Aula Palatina), onde eram ensinadas as sete artes liberais: o trívio (gramática, lógica e retórica) e o quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música). 
Vista geral atual da catedral de Aquisgrão, ou Aachen: coro gótico à esquerda, a Capela Palatina com cúpula ao centro e torre à direita.
Como o Propositiones ad acuendos juvenes foi escrito antes do advento da prensa gráfica, suas cópias eram feitas à mão por escribas, cujas reproduções sempre continham pequenas diferenças em relação ao original, tanto devido a erros de cópia quanto a mudanças deliberadas com o intuito de 'melhorar' ou atualizar o texto original. Por esse motivo, há versões que contém 53 jogos matemáticos, e outros contendo 56. A maioria dos historiadores acredita que o documento original continha 56 problemas e aqueles com 53 são versões posteriores com defeitos de cópia. Muitos destes problemas eram conhecidos em outras culturas mais antigas, mas alguns deles não são encontrados em nenhum manuscrito anterior e talvez tenham sido compostos pelo próprio Alcuíno. É atribuído a ele a versão mais antiga do problema do fazendeiro, do lobo, da cabra e do repolho, que no original era apresentado nestes termos:

Um homem, um lobo, uma cabra e um repolho tem que
atravessar um rio em um pequeno barco. No barco, o
homem só pode levar ou o lobo, ou a cabra, ou o
repolho, e ele não pode deixar, do lado do rio, o lobo
sozinho com a cabra, nem a cabra sozinha com o
repolho. Como fazer esta travessia?

A estrutura retórica deste problema é aquela de um diálogo entre um mestre e o seu aluno e é típico na formulação de questões desde a antiguidade. Rima e cadência na forma de enigmas e histórias forneciam auxílios mnemônicos valiosos e facilitavam a tradição oral de resolução de problemas. Muitos dos problemas mais antigos eram colocados em verso. Os problemas de Alcuíno apresentam claramente um caráter de declamação, típico para o sistema medieval de aprendizagem por hábito de repetição. Os estudantes medievais eram obrigados a calcular mentalmente a solução dos problemas propostos e a memorizar regras e exemplos. Esta solução depende de preceitos e de regras fáceis de lembrar para resolver problemas semelhantes, sem a necessidade de incluir uma explicação. Por exemplo, o problema 26 do Propositiones lida com álgebra simples, e usa algarismos romanos:

XXVI. propositio de cursu cbnks. bc. fvgb. lfp:rks.
Est campus qui habet in longitudine pedes CL. In uno capite stabat canis, et in alio stabat lepus. Promovit namque canis ille post illum, scilicet leporem currere. Ast ubi ille canis faciebat in uno saltu pedes VIIII, lepus transmittebat VII. Dicat, qui velit, quot pedes quotque saltus canis persequendo, et lepus fugiendo, quoadusque comprehensus est, fecerunt?
Solutio.
Longitudo hujus videlicet campi habet pedes CL. Duc mediam de CL, fiunt LXXV. Canis vero faciebat in uno saltu pedes VIIII, quippe LXXV novies ducti fiunt DCLXXV, tot pedes leporem consequendo canis cucurrit, quoadusque eum comprehendit dente tenaci. At vero quia lepus faciebat pedes VII, in uno saltu, duc ipsos LXXV septies. Tot vero pedes lepus fugiendo peregit, donec consecutus est.

Traduzindo para o português, temos:

26. Proposição sobre a perseguição do cão e o vôo da lebre.
Existe um campo com 150 pés de comprimento. Em um extremo havia um cachorro, no outro, uma lebre. O cão avançou atrás [da lebre], ou seja, para perseguir a lebre. Mas enquanto o cão percorria nove pés por passada, a lebre percorria [somente] sete. Diga-o, quem desejar, quantos pés e quantos saltos o cão levou para perseguir a lebre que fugia até que fosse capturada?
Solução.
O comprimento deste campo era de 150 pés. Tomando metade de 150 faz 75. O cão estava cobrindo nove pés por passada, e nove vezes 75 faz 675. O cão correu assim muitos pés perseguindo a lebre até que a capturou com seus dentes tenazes. E, de fato, porque a lebre fazia sete pés por passada, pegue 75 sete vezes. Isto é, quantos pés a lebre que fugia percorreu antes de ser apanhada.

O enigma do cão e da lebre. Não foi possível identificar se esse manuscrito é o original de Alcuíno ou se é uma das cópias existentes.
A solução de Alcuíno é engenhosa, porém cifrada. Ainda que se possa resolver este problema com duas equações e duas incógnitas, o monge percebe que as diferentes taxas de corrida dos animais são a chave para todo o problema: após x passadas, o cão percorreu 9x pés de distância e a lebre 7x pés. Logo, a distância entre ambos é reduzida por 2x pés a cada passada. Para que o cão capture a lebre é necessário que dê 2x = 150 passadas, onde 150 pés é o comprimento do campo; logo, x = 75 passadas. Assim, o cão percorre 9 vezes 75, ou seja, 675 pés e a lebre 7 vezes 75, quer dizer, 575 pés de distância em 75 passadas antes de ser capturada. Este tipo de problema já era conhecido na China 2.000 anos antes de Alcuíno. O magro currículo do quadrívio clássico, durante os primeiros séculos da idade média, foi cada vez mais empobrecido para se adaptar a fins educacionais, a propósito, o estudo dos textos religiosos, que utilizava uma matemática quase supérflua. A situação não degringolou de vez porque nesse período surgiu um novo problema de relevância eclesial que foi capaz de manter vivo o interesse em estudos matemáticos: o computus, ou seja, o cálculo da data da Páscoa, essencial para a liturgia, e porque nela eram baseados outros importantes feriados religiosos. A dificuldade deste cálculo decorre do fato de que os resultados do calendário cristão partiam de uma combinação entre o calendário juliano (baseado no movimento anual da Terra em relação ao Sol) e o hebraico, este baseado nos ciclos lunares. Embora o cálculo dos dias do ano ocorra de acordo com o calendário juliano, a data da Páscoa está associada às fases lunares; assim, em comparação com o juliano, essas datas podem variar dentro de limites bem definidos de um ano para o outro. Para calcular a data da Páscoa, portanto, é necessário combinar a duração do ano civil com a dos meses lunares. Infelizmente, não há um número inteiro de dias que forneçam um valor exato de meses lunares e anos solares, assim como não existe um número inteiro de meses lunares para dar um valor exato de anos civis. Para combinar as fases da lua com o ano solar em termos de um número inteiro de dias é necessário utilizar um sistema de adaptações apropriadas. O monge inglês Bede, o venerável, foi quem deu uma solução para este problema que ainda hoje é considerado um dos mais claros e abrangentes, exposto no panfleto De temporum ratione (A contagem do tempo). A fim de facilitar a execução dos cálculos necessários, Bede também demonstrou um método claro e eficaz de cálculo digital, ou seja, feito com a ajuda das mãos. É um sistema de origem antiga, em que todos os números de 1 a 9999 podem ser representados com posições adequadas dos dedos, punhos e braços. Em particular, o cálculo digital de Bede é baseado em 14 falanges de uma mão, para que as 28 falanges das duas mãos perfaçam o ciclo de 28 anos em que se baseia o seu computus. Finalmente, deve-se lembrar de que, naquela época, os números eram representados por algarismos romanos e os cálculos foram realizados com um ábaco greco-romano, com o qual é simples executar a adição, a subtração, a multiplicação e a ainda mais elaborada divisão.

Fragmento de um manuscrito bíblico, posterior a 1.066 d.C., contendo dois esquemas orbitais cósmicos, associados ao De temporum ratione, do monge inglês Bede.
De fato, embora o ensino de matemática em conventos e escolas da catedral fosse baseado no quadrívio, na realidade eles ensinavam apenas os rudimentos da aritmética e da geometria prática necessários à vida cotidiana. Este também é, no entanto, o nível de educação matemática necessário para ler o Propositiones ad Acuendos Juvenes. Os documentos mais antigos do continente europeu que falam de álgebra são: o ibérico Liber Mahamaleth, que compartilha passagens tanto do De Divisione Philosophiae[1], sendo posterior a 1.180 d.C., quanto com a regra de três ou regula del chataina toledana, atribuída com precisão a Johannes Hispalensis e escrita por volta de 1.147 d.C.; o Liber algebre, elaborado por volta de 1.145 d.C. pelo arabista inglês Robert de Chester; e um terceiro escrito por volta de 1.170 d.C. pelo tradutor italiano de obras científicas Gerardo de Cremona, todos os três do século XII d.C. Passando para o século XIII d. C. vamos encontrar no ano de 1.228 d.C. o capítulo de álgebra do Liber Abbaci de Fibonacci (a primeira edição de 1.202 provavelmente era muito semelhante, mas não se sabe quão similar). Contemporâneo ao Liber Abbaci temos também o De Numeris Datis, escrito por volta de 1.225 d.C., do estudioso e matemático (possivelmente italiano) Jordanus Nemorarius, ainda que na obra ele evitasse de falar explicitamente sobre álgebra, mas deixando a dica para os conhecedores de textos algébricos ao utilizar-se de muitos exemplos numéricos familiares; e finalmente, em 1.307 d.C. temos o manuscrito Tractatus Algorismi, do italiano Jacopo da Firenze[2].



[1] Obra cujo provável autor tenha sido o arquidiácono Dominicus Gundissalinus (ou Gundisalvis), residente à catedral de Toledo, cidade pertencente ao então reino de Castela e outrora uma capital provincial do califado de Córdoba.
[2] Interessante observar que o texto completo do Kitab al-muhtasar fih isab al-jabr wa al-muqabala de al-Khwarizmi só se tornou disponível em 1831 por Frederic Rosen, através da tradução questionável para o inglês de um único manuscrito árabe de 1.342 atualmente pertencente à biblioteca Bodleian, da universidade de Oxford.

Ponte de Alcazar, em Toledo. A Escola de Tradutores de Toledo foi um grupo de estudiosos que trabalharam em conjunto durante os séculos XII e XIII d.C. na tradução de muitas obras filosóficas e científicas de clássicos árabes.
Muito do conteúdo do manuscrito Liber Mahamaleth vem da tradição mu’amalat, ou seja, a matemática das relações sociais, que no Iraque do século VIII d.C. estava associado principalmente à determinação aritmética de transações e operações de crédito sobre os cultivos das regiões árabes, e sobre os subterfúgios pelos quais os juros, proibidos então, poderiam ser disfarçados de negócios legais. Posteriormente, para além do século XI d.C., o termo mu’amalat – menos que a matemática abordada nos temas – representava os tipos de transações implícitas, notadamente aquelas que um juiz deveria envolver-se: venda e arrendamento, casamento e divórcio, queixas e provas legais, depósitos e empréstimos, legados e heranças. Na região Andaluzia, e de acordo com Gundissalinus em seu De Divisione Philosophiae, os ramos da aritmética prática são: compra e venda, troca, arrendamento, pagamento e poupança, medições de profundidades, larguras, alturas e outras extensões de coisas, o que em árabe é chamado Mahamalech. Veja, por exemplo, um dos muitos problemas de proporção associado a compra e venda do Liber Mahamaleth:
$$ \left\{\begin{matrix}\frac{3}{8}::\frac{Q}{P}\\ Q\cdot P=216\end{matrix}\right. $$
Nada é dito no problema sobre frações, mas a regra dada baseia-se na multiplicação em cruz entre as duas expressões acima:
$$ \frac{3}{8}\times 216=\frac{Q}{P}\times \left ( Q\cdot P \right )\Rightarrow \frac{3}{8}\times 216=Q^{2} $$
O que nos leva a:
$$ \frac{3}{8}\times 216=Q^{2} $$
$$ 3\times 27=Q^{2} $$
$$ 81=Q^{2} $$
$$ Q=\sqrt{81}=9 $$
A segunda formulação é:
$$ \frac{8}{3}\times 216=\frac{P}{Q}\times \left ( P\cdot Q \right )\Rightarrow \frac{8}{3}\times 216=P^{2} $$
Resolvendo:
$$ \frac{8}{3}\times 216=P^{2} $$
$$ 8\times 72=P^{2} $$
$$ 576=P^{2} $$
$$ P=\sqrt{576}=24 $$
Em nosso senso comum este exemplo pode ser visto como álgebra elementar, mas certamente não era entendido como álgebra no século XII. Outro exemplo semelhante no capítulo seguinte do Liber Mahamaleth trata do mesmo assunto, agora com coisas:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}}{2\ res+3} $$
Onde a palavra latina res significa coisa, ou para a álgebra moderna, o x. De início, é feito o seguinte arranjo numérico, trabalhando-se com os numeradores de ambas as frações:
$$ 4\div 1\frac{1}{2}=4\div \frac{3}{2}=4\times \frac{2}{3}=\frac{8}{3}=2\frac{2}{3} $$
Multiplicando este valor aos termos da fração à direita da equação, temos:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}\times 2\frac{2}{3}}{\left (2\ res+3  \right )\times2\frac{2}{3}} $$
Resultando:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{4}{5\frac{1}{3}\ res+8} $$
Levando a:
$$ 20+2\ res=5\frac{1}{3}\ res+8 $$
Resolvendo:
$$ 20-8=5\frac{1}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16\ res-6\ res}{3} $$
$$ 36=10\ res $$
$$ res=\frac{36}{10}=\frac{18}{5} $$
Para outros tópicos clássicos de mu’amalat (lucro e juros, parcerias, etc.), encontramos sucessivas sequências de problemas, envolvendo, por exemplo, soma, subtração e produto de capital e lucro, muitas vezes construídos de acordo com a aplicação da teoria das proporções. Interessante observar que as frações são escritas ao estilo de Magrebe, com numerais hindus e linhas para representar as frações, como se faz ainda hoje. Também são abundantes os cálculos efetuados às margens do texto principal, dentro de molduras retangulares, de modo similar aos cálculos nas lousas de argila (as chamadas lawha). Já o texto de Gerardo de Cremona é uma tradução fiel do manuscrito de al-Khwarizmi, na medida em que não existem números hindus nem linhas de fração, sendo tudo completamente verbal. Robert de Chester utiliza numerais hindus em sua tradução, mas tirando isso o restante do texto também é completamente verbal. Por outro lado, atribui-se ao De Numeris Datis de Jordanus Nemorarius a primeira ocorrência de uma álgebra simbólica; de fato, ele emprega letras na representação de números. Observe o exemplo a seguir:

Se um dado número é dividido em dois e se o produto de um pelo outro é dado, cada um deles também será dado por decorrência.
Seja o número dado abc dividido em ab e c, e seja o produto de ab com c dado por d, e de modo análogo seja o produto de abc consigo mesmo como e. Então o quádruplo de d é tomado, que é f. Quando este é retirado de e, resta g, e este será o quadrado da diferença entre ab e c. Portanto a raiz de g é extraída, e ela será b, a diferença entre ab e c. E como b será dado, c e ab também serão dados.

É possível observar que Jordanus não opera em seus símbolos, pois cada cálculo conduz à introdução de uma nova letra. Logo, o que Jordanus inventou foi a representação simbólica de um algoritmo.


Uma página do “Manuscrito Jerba” de ibn al-Haim. Observe a farta quantidade de cálculos marginais ao redor do texto principal. O Liber Mahamaleth possui essa característica.
A notação de Magrebe persiste em um texto anônimo escrito por volta de 1.300 que contém uma seção denominada Qualiter figurentur census, radices et dragma (Como são representados os censos – x2, raízes – x e dragmas – inteiros neste caso). Nesse manuscrito, censo é escrito como c, raiz como r e dragma como d ou apenas um número, como se pode observar abaixo:


À esquerda: trecho do manuscrito anônimo datado por volta de 1.300, Lyell 52, Bodleian Library, Oxford. À direita: a tradução deste trecho; observe como eram escritos os numerais 4 e 5 nesse texto.
Se um elemento da equação é negativo, um ponto é colocado abaixo dele. Os símbolos aritméticos são escritos abaixo dos coeficientes, ao estilo de Magrebe. As linhas verticais, da esquerda para a direita, são traduzidas e representadas pelas seguintes equações:

2 censos menos 3 raízes
$$ 2x^{2}-\sqrt{3} $$
2 censos menos 4 dragmas
$$ 2x^{2}-4 $$
5 raízes menos 2 censos
$$ \sqrt{5}-2x^{2} $$
5 raízes menos 4 dragmas
$$ \sqrt{5}-4 $$
Fora desta seção essa notação não é utilizada, o que indica que seja algo que o autor do texto aprendeu alhures e que, como ele afirma, facilita o ensino do cálculo algébrico. Existem ainda referências não apenas a operações de soma e subtração, mas também de multiplicação, estabelecendo neste último caso apenas as multiplicações de coisa com coisa (x × x) e de coisa com número (x × 2, por exemplo).


Trattato di praticha d'arismetriche, de Benedetto da Firenze. A imagem mostra a página 114, que contém um trabalho em aritmética mercantil, com uma discussão da regula del chataina (em vermelho), ou regra da cadeia, usada no cálculo de taxas de câmbio.
A notação algébrica se apresenta com poucas alterações por volta de 1.460 quando Benedetto da Firenze, ou Maestro Benedetto, conclui seu trabalho intitulado Trattato di praticha d'arismetriche, um volume de 500 páginas dos quais:

  •    O capítulo XIII contém uma introdução do autor sobre a álgebra, começando com um excerto de 23 linhas de uma tradução de 1.250 de Guglielmo de Lunis (agora perdida), de al-Khwarizmi , seguido das bem conhecidas nomenclaturas para as seis potências fundamentais de uma incógnita - acompanhada de suas provas geométricas – tais como as que seguem:


censo = x2
cubo = x3
censo di censo = x4


  •   O capítulo XIV apresenta uma sequência de 140 problemas numéricos derivados de um manuscrito perdido denominado Trattato di Praticha, escrito pelo mestre florentino Biaggio, falecido por volta de 1.340. Vinte e oito destes problemas são mercantis. Os demais são teóricos, todos conduzindo a equações algébricas pertencentes a tipos solucionados por Benedetto nos exemplos fornecidos no capítulo XIII;
  •   Finalmente, o capítulo XV contém uma tradução para o italiano do capítulo de álgebra do Liber Abaci de Fibonaci, adicionado de “alguns esclarecimentos, especificação das regras em relação aos casos apresentados no capítulo XIII e a completude dos cálculos, que o antigo mestre geralmente negligenciava, indicando apenas os resultados”, bem como uma coleção de problemas copiados de um tratado algébrico escrito por volta de 1.380, pelo algebrista italiano Antônio de Mazzinghi.
O simbolismo algébrico de Benedetto pode ser resumido a isto: usa um símbolo parecido com ρ ou c para censo, e a raiz é abreviada no texto corrente com o símbolo:

Interessante observar que Luca Pacioli praticamente fez uma cópia literal do método de solução algébrica de De Mazzinghi em seu Summa de arithmetica geometria proportioni et proportionalità, escrito em 1.494, sem grandes alterações na notação algébrica adotada. Por outro lado, na França, o matemático Nicolas Chuquet escreveria dez anos antes do Summa (1.484) o seu manuscrito Triparty en la science des nombres, que não foi publicado enquanto estava vivo; a maior parte dele, porém, foi copiada sem atribuição da autoria por outro matemático francês, Estienne de La Roche, em seu livro l’Arismetique, de 1.520. Esta obra apresenta uma notação algébrica diferente das anteriores, ao utilizar-se de expoentes:

Na última linha da imagem acima, temos:
$$ \Re ^{4}.54\hat{p}.\Re ^{2}.980. $$
Cuja transcrição para a nomenclatura atual resulta:
$$ \sqrt[4]{54+\sqrt{980}} $$
Uma profusão de experiências notacionais matemáticas surgiria a partir do século XVI, como é o caso do uso de mais de uma incógnita em expressões algébricas, tal qual na obra Practica arithmeticae et mensurandi singularis (1.539) do matemático italiano Girolamo Cardano, indicada abaixo.

Fragmento do Practica Arithmeticae, de Girolamo Cardano.
O texto original de Cardano, indicado na figura acima, e sua respectiva notação algébrica moderna, são as seguintes:

7co.æquales151.p.27.quã
10co.æquales1018.p.18.quã
$$ 7x=151+27y $$
$$ 10x=1018+18y $$
[a]
1 co.æquales21 4/7.p.3 6/7.quã
1 co.æquales101 4/5.p.1 4/5.quã
$$ x=21\ 4/7+3\ 6/7y $$
$$ x=101\ 4/5+1\ 4/5y $$
[b]
80 8/35æqualia2 2/35quã.
35
$$ 80\ 8/35=2\ 2/35y $$
$$ 35 $$
[c]
2008.æqualia 72.quã.
39.       Valor    quã.
$$ 2008=72y $$
$$ y=39 $$
[d]
Em [a], Cardano inicia o cálculo apresentando duas equações com as duas incógnitas x e y. Em [b], cada equação é dividida pelo respectivo número que multiplica a incógnita x. Em [c], as duas equações são igualadas em x, isolando-se e somando-se os números à esquerda da equação e, do mesmo modo, isolando-se e somando-se as variáveis em y à direita. Na linha abaixo, o número 35 indica que ele será multiplicado em ambos os lados da equação, de modo a eliminá-lo dos denominadores. Finalmente, em [d] temos uma equação linear em y e seu respectivo valor na linha abaixo: 39. Por outro lado, para a nomenclatura adotada por Stifel, indicada na figura abaixo, a linha destacada em amarelo contém as letras A e B para definir as incógnitas, do mesmo modo como definimos x e y.

Fragmento do Arithmetica Integra, de Michael Stifel.
O texto é o seguinte:

Volo multiplicare 3A in 9B, fiunt 27AB, hoc est, 27A multiplicatae in 1B.

E na linha destacada em azul, temos 2гρ fazendo as vezes de 2y3 e 4Az fazendo as vezes de 4x2. O texto é o seguinte:

Volo multiplicare 2гρ in 4Az, fiunt 8гρAz, hoc est, 8гρ multiplicati in 1 Az.

Então, na linha destacada em amarelo, em álgebra moderna, Stifel estaria estabelecendo a seguinte regra multiplicativa:

Ao multiplicar 3x com 9y faz-se 27xy, que é 27x multiplicado por 1y.

E na linha destacada em azul, Stifel estabeleceria a seguinte regra multiplicativa em álgebra moderna:

Ao multiplicar 2y3 com 4x2 faz-se 8y3x2, que é 8y3 multiplicado por 1x2.

Percebe-se claramente certa ambiguidade de Michael Stifel no uso e aplicação das mesmas variáveis com símbolos diferentes, pois na primeira frase B seria y e na segunda frase гρ torna-se y3; de modo análogo, A na primeira frase seria o nosso x e na segunda frase Az torna-se o seu quadrado (x2). Outro matemático que desenvolveu uma curiosa nomenclatura algébrica foi o italiano Francesco Ghaligai em sua obra Pratica d’Arithmetica, de 1.552.


Duas páginas do livro Pratica d’Arithmetica, de Francesco Ghaligai.
Observe na figura acima, à esquerda, a simbologia por ele adotada para designar as potências de uma incógnita: a abreviação para número, um estranho símbolo que fica entre um zeta (ζ) e um sigma (ς) gregos para cosa (coisa, ou o nosso x), seguido de um quadrado para censo (ou x2), dois quadrados alinhados horizontalmente para cubo (ou x3) e assim sucessivamente para outras potências: relato para x5, pronico para x7, tromico para x11 e dromico para x13. Note que as potências definidas com símbolos específicos são todos números primos. Na página à direita Ghaligai ilustra o uso de sua notação para calcular potências de 2, sequencialmente, até a décima-quinta potência. Em 1.553 surge a primeira obra sobre álgebra em alemão: o Die Coss, cujo autor – Christoff Rudolff (1.499 a 1.545) – desenvolveu uma notação algébrica onde um dos símbolos por ele idealizado tornou-se um padrão na linguagem matemática moderna, que é o símbolo de raiz.


Fragmento do Die Coss, de Christoff Rudolff, com o símbolo de raiz quadrada.
Observe o conteúdo do texto destacado pelo retângulo rosa:
$$ \sqrt{18}\ von\ \sqrt{50}\ \cdot \ facit\ \sqrt{8} $$
Traduzindo para a álgebra moderna, temos:
$$ \sqrt{50}-\sqrt{18}=\sqrt{8} $$
A explicação dada por Rudolff, apresentada no parágrafo acima do exemplo dado, demonstra um curioso método para efetuar a subtração entre raízes quadradas. Para chegar ao resultado deste exemplo, primeiro ele soma o conteúdo das raízes:
$$ 50+18=68 $$
Em seguida, ele multiplica o conteúdo das raízes entre si:
$$ 50\times 18=900 $$
Na etapa seguinte, ele multiplica 900 por 4:
$$ 900\times 4 = 3600 $$
Agora, ele extrai a raiz quadrada deste novo número:
$$ \sqrt{3600}=60 $$
Depois, ele subtrai 60 do resultado da soma dos conteúdos originais das raízes, que é 68:
$$ 68-60=8 $$
A raiz quadrada de 8 constitui a subtração entre √50 e √18. De fato:
$$ \left\{\begin{matrix}\sqrt{50}\cong 7,071067...\\ \sqrt{18}\cong 4,242640...\\ \sqrt{8}\cong 2,828427...=\sqrt{50}-\sqrt{18}\end{matrix}\right. $$


Apesar de muito interessante, infelizmente nem sempre se consegue obter quadrados perfeitos com este método... Rudolff também aborda em Die Coss a solução de problemas algébricos quadráticos utilizando o método da completude do quadrado, conforme ilustrado abaixo. Note a vigorosa influência árabe na matemática européia em plena Renascença, mesmo após mais de 700 anos da publicação da memorável obra Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-gabr wa-l-muqabala, de al-Khwarizmi.


Fragmento do Die Coss contendo solução algébrica pelo método da completude do quadrado.
A exemplo de seu conterrâneo Michael Stifel, o alemão Rudolff também utiliza o símbolo z para descrever a incógnita x e zz para descrever o x2. À direita do quadrado observa-se a seguinte equação:

208z – 1zz sind gleych 9216

Que na notação algébrica moderna indica uma expressão quadrática, obtida através da multiplicação entre as partes que compõem o quadrado, algo diferente da técnica de al-Khwarizmi:
$$ \left ( 208-x \right )\times 1x=96\times 96\Rightarrow 208x-x^{2}=9216 $$
De fato, o matemático nomeia essa técnica de solução da completude do quadrado (sem nenhuma modéstia) de Regra Cristófora. Em 1.559 é a vez de o matemático francês Jean Buteo lançar seu livro Logistica com uma nomenclatura algébrica própria e expressões com mais de uma incógnita.


Fragmento do Logistica, de Jean Buteo.
No retângulo verde destacado acima, a primeira linha está assim representada:
$$ 3A,\ 12B,\ 3C\ [\ 96 $$
Que em notação moderna poderia ser expressa como:
$$ 3x+12y+3z=96 $$
A vírgula representa, para Buteo, o sinal aritmético da soma. A segunda linha em notação moderna fica:
$$ 3x+y+z=42 $$
Um traço longo indica que outra operação aritmética será executada entre as duas expressões: subtração que, entretanto, não é indicada por nenhum sinal aparente. Para além da própria explicação de Buteo no texto à esquerda, o resultado indicado na terceira linha é auto-explicativa, pois indica que a primeira expressão foi subtraída da segunda, restando:
$$ 11y+2z=54 $$
Vejamos a sequência completa do exercício proposto:


3A, 12B, 3C  [  96
3A, 1B, 1C  [  42
$$ 3x+12y+3z=96 $$
$$ 3x+y+z=42 $$
[a]
11B . 2C  [  54
$$ 11y+2z=54 $$
[b]
3A . 3B . 15C  [  120
3A . 1B . 1C  [  42
$$ 3x+3y+15z=120 $$
$$ 3x+y+z=42 $$
[c]
2B . 14C  [  78
$$ 11y+2z=54 $$
[d]
22B . 154C  [  858
22B . 4C  [  108
$$ 22y+154z=858 $$
$$ 22y+4z=108 $$
[e]
150C  [  750
$$ 150z=750 $$
[f]
Em [a] e [c] quatro expressões algébricas com três incógnitas são apresentadas. Em [b] temos o resultado da subtração das duas expressões indicadas em [a]; de modo análogo, [d] é o resultado da subtração das expressões indicadas em [c]. Em [e], a primeira expressão é o resultado obtido em [d] multiplicado por 11 e a segunda expressão é o resultado obtido em [b] multiplicado por 2. Em [f] as expressões indicadas em [e] são subtraídas. Observe que o método utilizado por Buteo visa eliminar as incógnitas até que reste apenas uma (neste caso, a variável z), cujo valor passa a ser conhecido. Substituindo-se o valor de z em qualquer uma das expressões indicadas em [b] ou [d] permitirá encontrar o valor de y. Finalmente, substituindo-se z e y em qualquer uma das quatro expressões indicadas em [a] ou [c] permitirá encontrar o valor de x, tal como aprendemos até hoje na escola. Observe no texto original que a vírgula é substituída por um ponto para indicar somas, como se pode observar no conjunto de equações de [c] a [e]. É mais provável que isso se deva a uma falha de atenção do tipógrafo que algo intencional da parte de Jean Buteo; naquela época a impressão de livros era algo ainda recente e erros tipográficos eram muito comuns e constantes. Outro matemático que também se utiliza de nomenclatura própria para descrever equações quadráticas e cúbicas é o português Pedro Nunes em sua obra Libro de algebra en arithmetica y geometria, de 1.567.

O matemático português Pedro Nunes.
Fragmento do "Libro de algebra en arithmetica y geometria", de Pedro Nunes.
Vejamos os dois exemplos de soma de polinômios no fragmento indicado na figura acima, tanto na linguagem de Nunes quanto na notação algébrica moderna:


Exemplo desta
          Regra
$$ 35.\tilde{p}.10.co.\tilde{p}.4.ce $$
$$ 40.\tilde{p}.12.co.\tilde{p}.7.ce $$
$$ 35+10x+4x^{2} $$
$$ 40+12x+7x^{2} $$
[a]
Soma
$$ 75.\tilde{p}.22.co.\tilde{p}.11.ce $$
$$ 75+22x+11x^{2} $$
Outro exemplo

$$ 30.\tilde{p}.15.co.\tilde{p}.2.ce.\tilde{m}.3.cu $$
$$ 80.\tilde{m}.13.co.\tilde{m}.5.ce. .\tilde{m}.2.cu $$
$$ 30+15x+2x^{2}-3x^{3} $$
$$ 80-13x-5x^{2}-2x^{3} $$
[b]
Soma
$$ 110.\tilde{p}.2.co.\tilde{m}.3.ce.\tilde{m}.5.cu. $$
$$ 110+2x-3x^{2}-5x^{3} $$
Em [a] temos a soma de duas equações quadráticas em que todos os termos são positivos; em [b] temos a soma de duas equações cúbicas em que há termos positivos e negativos, aplicando-se neste caso a regra de sinais. O matemático usa as letras p e m com um til para indicar, respectivamente, os sinais aritméticos da soma e da subtração; co é a abreviação de coisa (o nosso x), ce é a abreviação de censo, ou x2, e finalmente cu é a abreviação de cubo, ou x3. Uma última observação digna de nota deste fragmento pode ser vista na quarta e quinta linhas do texto explicativo que Pedro Nunes faz para a soma de duas quantidades iguais, porém com sinais opostos:

Y si fueren yguales, la suma sera una çifra.

Que em português se traduz por:

E se forem iguais, a soma será uma cifra.

Aqui, cifra é a antiga denominação em português para o numeral zero! Em 1.572 é a vez de o italiano Rafael Bombelli publicar sua obra, o L’Algebra opera, onde inova na notação algébrica para descrever as incógnitas e suas respectivas potências.

Fragmento da obra L’Algebra opera, de Rafael Bombelli.
A expressão matemática destacada pelo retângulo vermelho é:
$$ \overset{2}{\hat{1}}.p.R.q.\overset{1}{\hat{8}}.p.\overset{1}{\hat{2}}.p.3.p.R.q.8.\ Eguale\ a\ 23.p.R.q.8. $$
Cuja notação, traduzida para a moderna, resulta:
$$ x^{2}+\sqrt{8x}+2x+3+\sqrt{8} $$
Observe esta simbologia:
$$ \overset{2}{\hat{1}} $$
Aqui, o número 1 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 2 corresponde à potência da incógnita, ou seja, trata-se de 1x2. Veja este outro exemplo:
$$ \overset{1}{\hat{8}} $$
Neste caso, o número 8 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 1 representa a potência desta incógnita, ou seja, trata-se de 8x. Semelhante à nomenclatura de Nunes, p corresponde ao sinal aritmético da soma, m corresponde ao sinal aritmético da subtração e R.q corresponde à raiz quadrada (quando Bombelli trabalha com raízes cúbicas, o símbolo muda para R.c). Em 1.585 outra obra matemática com uma notação algébrica peculiar é publicada: o L’arithmétique, do flamengo Simon Stevin, semelhante à adotada para potências em frações e devidamente descrita em outra obra de sua autoria nesse mesmo ano, o De Thiende, tema este já abordado no capítulo Os números racionais emnotação decimal, no terceiro volume desta série.


O matemático holandês Simon Stevin.
Fragmento da obra L’arithmétique, de Simon Stevin.
Na caixa marrom em destaque na figura anterior, temos:
$$ Ergo\ 1\circledast -6\circledcirc +12\odot -8,\ seront\ egales\ a\ 12\odot -392. $$
Que traduzindo para a notação algébrica moderna, fica:
$$ x^{3}-6x^{2}+12x-8=12x+392 $$
Nota-se nesta nomenclatura o uso consolidado dos sinais aritméticos da soma e da subtração, com a incógnita e suas potências representadas por números dentro de círculos. Porém, em 1.591 surgirá uma obra que mudará os rumos da matemática, pelas mãos do matemático e advogado francês Francisco Vieta (no original: François Viète), intitulada In Artem Analyticem Isagoge (Na arte analítica).


O matemático e advogado francês Francisco Vieta.
A arte analítica de Vieta compreendia três etapas: a primeira, denominada zetética – que se traduz por um método de investigação ou conjunto de preceitos para a resolução de um problema, seja ele matemático ou geométrico – é transcrito neste novo sistema simbólico ou semiótico, por Vieta designado logisticae speciosa (logística bela), na forma de uma equação. A segunda etapa, denominada porística – que se traduz pelo problema que tem por solução uma verdade que se tira do próprio enunciado – as equações previamente estruturadas são transformadas de acordo com regras em formas canônicas. Finalmente, na terceira etapa, denominada exegética – que se traduz por um comentário ou dissertação para esclarecimento ou minuciosa interpretação de um texto ou uma palavra – uma solução para o problema é encontrada com base nas equações derivadas previamente das regras canônicas. Como o próprio Vieta enfatiza, nesta terceira etapa o analista torna-se o geômetra, “executando uma verdadeira construção” ou o aritmético, “solucionando numericamente qualquer potência [algébrica]”. Vieta ensinou sua arte em oito ensaios publicados entre 1.591 e 1.631, agregando-os em um único volume, o Opera Mathematicae (As Obras de Matemática), em 1.646. Tanto na introdução do In Artem Analyticem, quanto na dedicatória que a precede, Vieta destaca a estreita conexão entre a sua arte e os trabalhos gregos clássicos, destacando-se o conceito do método analítico aplicado à geometria, como delineado por Papus em seu sétimo livro da obra Coleção Matemática, o tratamento de problemas aritméticos estabelecido por Diofanto, usando letras tanto para incógnitas quanto para suas potências, em seu Aritmética, e ainda a teoria geral de proposições de Eudoxo, como apresentado no Livro V do Elementos, de Euclides. Vieta visava fornecer um método geral de solução tanto para os problemas aritméticos abordados por Diofanto quanto para os problemas geométricos discutidos por Papus; observe abaixo este fragmento do Opera Mathematicae:


Na primeira linha, temos a seguinte equação:

A quad. + B in A 2, æquari Z plano

A logistice speciosa que Vieta introduz em sua arte analítica faz uso de dois diferentes tipos de letras maiúsculas: vogais para incógnitas e consoantes para parâmetros conhecidos do problema. Assim, o termo A quad. corresponde ao nosso x2. O termo B in A 2 pode ser traduzido como 2Bx, onde B assume um valor conhecido a priori. O termo æquari equivale ao sinal aritmético de igualdade (=). Por fim, a consoante Z seguida da palavra indicativa da espécie (plano) possui função específica na arte de Vieta: como exigido pela lei da homogeneidade, em que “termos homogêneos devem ser comparados entre si”, a palavra serve para lembrar o analista de que, se na última etapa de solução de um problema (exegética) ele se tornar um geômetra, a consoante Z deverá ser substituída pela magnitude correta, o que significa dizer que somente uma figura plana (por exemplo: um quadrado, ou um triângulo) poderá substituir plano; de modo análogo, o parâmetro B seria um comprimento. Por outro lado, se o analista tornar-se um aritmético, qualquer número poderá substituir as consoantes B e Z. Algebricamente falando, a expressão de Vieta seria transcrita em notação moderna como:
$$ x^{2}+2Bx=Z $$
A diferença, para nós, é que não importa se a expressão algébrica acima estará lidando com geometria ou aritmética, pois ela se presta igualmente bem a ambas. Observe este outro exemplo:


Na primeira linha, temos a equação:

A cubus + B in A quad.3 + D plano in A, æquari Z solido

Aqui, temos a vogal A operando como incógnita, as consoantes B, D e Z como valores conhecidos a priori e, no geral, uma expressão cúbica, que em notação algébrica moderna poderia ser transcrita como:
$$ x^{3}+3Bx^{2}+Dx=Z $$
Mais uma vez, a logistice speciosa de Vieta estabelece que, se o problema for geométrico, B será um comprimento, D será uma área e Z será um volume; por outro lado, se o problema for aritmético, B, D e Z serão tão somente números. A logistice speciosa, por assim dizer, não é uma linguagem matemática estritamente falando, mas sim um cálculo não interpretado, uma ferramenta para encontrar respostas onde nem os problemas nem suas soluções podem ser formulados. Vieta conclui seu raciocínio afirmando que “A arte analítica reivindica para si mesma o maior problema de todos, que é resolver qualquer problema”. Mas o matemático que traria a semiótica matemática para um novo e superior patamar foi o francês René Descartes, com sua obra Discours de la méthode (Discurso sobre o método), publicado em 1.637 em conjunto com outras três obras (A Dioptria, Os Meteoros e A Geometria), e cuja inspiração para elaborá-la teria tido início a partir de certos fatos ocorridos em 10 de Novembro de 1.619, assim narrados por Descartes:

“Durante a noite tive três sonhos consecutivos, que julguei só poderem ter sido inspirados por um poder superior. Tendo caído no sono, imaginei ter visto fantasmas e fiquei aterrorizado por tais aparições. Vi-me andando através de ruas, e fiquei tão horrorizado pelas visões que tive de me curvar para o lado esquerdo para alcançar meu objetivo, pois sentia uma grande fraqueza do lado direito, sendo incapaz de manter-me em pé. Envergonhado por ter de caminhar dessa forma, fiz grande esforço para endireitar-me, mas fui apanhado violentamente por um vento, como um redemoinho, que me fez girar três ou quatro vezes sobre meu pé esquerdo. Não foi isso, no entanto, o que me assustou mais. Eu achava tão difícil avançar que tinha medo de cair a cada passo até que, percebendo abertos [os portões] de um colégio em meu caminho, entrei, procurando refúgio e auxílio em minha aflição. Esforcei-me para alcançar a capela do colégio, onde meu primeiro pensamento foi rezar; todavia, percebendo que havia passado por um conhecido sem havê-lo cumprimentado desejei, por polidez, voltar para fazê-lo. [Tentando fazê-lo, no entanto] fui atirado para trás com violência pelo vento, que soprava através da igreja. No mesmo instante notei outro homem no pátio do colégio, que me chamou delicadamente pelo meu nome e me informou que, se eu estava à procura do Sr. N., ele tinha algo para mim. Tive a impressão de que tal objeto seria um melão que havia sido trazido de algum país exótico. Grande foi meu espanto quando reparei que o povo que havia se aglomerado em torno do homem para conversar entre si era capaz de manter-se firmemente em pé enquanto eu, no mesmo local, tinha que caminhar curvado e de modo irregular, ainda que o vento, que havia ameaçado derrubar-me por várias vezes, tivesse enfraquecido consideravelmente. Nesse ponto acordei, sentindo uma angústia definida. Eu temia que ela fosse o efeito dos maus espíritos, determinados a desviar-me do caminho. Imediatamente, deitei-me sobre meu lado direito, pois havia sido sobre o lado esquerdo que havia adormecido e tido aquele sonho. Pedi a Deus que me protegesse das consequências maléficas de meu sonho e me preservasse de todos os infortúnios que pudessem ameaçar-me como punição para meus pecados. Reconhecia que meus pecados eram repugnantes a ponto de atrair a ira dos céus, embora até então, aos olhos dos homens, houvesse levado uma vida irreprochável. Permaneci deitado por duas horas, ponderando sobre o problema do bem e do mal nesse mundo, e então adormeci.


O matemático e filósofo francês René Descartes, considerado o pai da matemática moderna.
Outro sonho se seguiu imediatamente. Pensei ter ouvido um violento e penetrante estampido, que tomei por um trovão. Fiquei tão aterrorizado que acordei na mesma hora. Ao abrir os olhos, percebi uma profusão de centelhas ígneas espalhadas pelo quarto. Isso já havia acontecido comigo antes, e não me era incomum que acordasse no meio da noite para descobrir que minha visão era clara o bastante para permitir que percebesse objetos próximos. Dessa vez, contudo, decidi recorrer a explicações tiradas da filosofia e, abrindo e fechando os olhos e observando a natureza dos objetos que enxergava, cheguei a conclusões favoráveis, que pareceram convencer minha mente. Assim meu medo desapareceu, e com uma mente tranquila novamente caí no sono.

Pouco depois tive um terceiro sonho, que não foi tão terrível quanto os anteriores. Nesse último sonho, encontrei um livro em minha mesa, não sabendo que o havia depositado. Abri e alegrei-me ao ver que era um dicionário, esperando que me fosse bastante útil. No mesmo instante, outro livro apareceu, tão novo para mim quanto o primeiro, e de origem igualmente desconhecida. Notei que era uma coleção de poemas de diferentes autores, intitulado Corpus latinorum. Fiquei curioso para saber o conteúdo, e ao abrir o livro meus olhos caíram sobre a linha “Quod vitae sectabor iter?” (Que caminho seguirei eu na vida?). Ao mesmo tempo, vi um homem a quem não conhecia, que me mostrou um poema começando com as palavras “Est et non” (Sim e não), exaltando sua excelência. Respondi que conhecia o poema, que estava entre os idílios de Ausônio [poeta e político romano], e estava incluído na grande coletânea que estava sobre a mesa. Quis mostrá-lo ao homem e comecei a virar as páginas, gabando-me de conhecer-lhes perfeitamente a ordem e o arranjo. Enquanto procurava, o homem perguntou-me onde havia conseguido o livro. Respondi que não seria capaz de dizer onde o havia conseguido mas que, um segundo antes, tivera outro livro em minhas mãos, que acabara de desaparecer, sem que soubesse quem o havia trazido ou levado embora. Mal terminara de falar quando o livro reapareceu no outro lado da mesa. Verifiquei, no entanto, que o dicionário não mais estava completo, embora antes parecesse sê-lo. Enquanto isso, encontrei Ausônio na antologia de poetas; mas, sendo incapaz de encontrar o poema começando por “Est et non”, disse ao homem que conhecia um poema ainda mais bonito do mesmo autor, começando por “Quod vitae sectabor iter?”. O homem pediu-me para vê-lo, e eu estava diligentemente procurando por ele quando me deparei com alguns pequenos retratos de gravuras em cobre que me fizeram maravilhar-me ante a beleza do livro; todavia, não era a mesma edição que eu conhecia. Nesse ponto, homem e livros desapareceram e sumiram dos olhos de minha mente, mas não despertei. O mais notável é que, em dúvida se essa experiência tinha sido um sonho ou uma visão, não somente decidira, ainda adormecido, que se tratava de um sonho, como também o interpretara antes de acordar. Concluí que o dicionário significava a conexão entre todas as ciências e que toda a coleção intitulada Corpus Poetarum apontava particular e claramente para a íntima união entre filosofia e sabedoria, pois pensei não haver surpresa na descoberta de que os poetas, mesmo aqueles cuja obra parece ser um tolo passatempo, produzem pensamentos muito mais profundos, sensatos e melhor expressos do que os encontrados nos escritos dos filósofos. Atribuí essa maravilha à divina qualidade do entusiasmo e ao poder da imaginação, que permite à semente da sabedoria (existente nas mentes de todos os homens como as centelhas de fogo na pederneira) germinar muito mais facilmente e mesmo com maior esplendor do que a “razão” dos filósofos. Prosseguindo com a interpretação em meu sono, concluí que o poema sobre “que caminho seguirei eu na vida”, começando com “Quod vitae sectabor iter”, apontava para o sólido conselho de um sábio, ou mesmo para a Teologia Moral. Ainda em dúvida sobre se estava dormindo ou meditando, acordei pacificamente e com os olhos abertos continuei a interpretar meu sonho, dentro do mesmo espírito. Os poetas representados na coleção de poemas interpretei como a revelação e o entusiasmo que me haviam sido concedidos. O poema “Est et non” que é o “Sim e não” de Pitágoras, entendi como sendo a verdade e o erro de todo conhecimento humano e da ciência profana. Quando vi que todas estavam tão satisfatoriamente se conformando aos meus desejos, ousei acreditar que era o espírito da verdade que desejava, através desse sonho, revelar-me os tesouros de todas as ciências. Nada mais havia a ser explicado a não ser os pequenos retratos em cobre que encontrara no segundo livro, os quais não mais procurei elucidar depois de receber, no dia seguinte, a visita de um pintor italiano.”

O caminho filosófico percorrido por Descartes é longo e inicia-se, simbolicamente, com os filósofos gregos pré-socráticos, assim denominados naturalistas ou filósofos da natureza, pois buscavam o princípio das coisas (arché) nas manifestações físicas (phýsis) como realidade primeira, originária e fundamental. Ao observarem que a aparência (phainômena) das coisas mudava, ao se questionarem sobre o que a coisa que muda realmente é, concluíram que seria a substância: o princípio das coisas que permanece imutável, mesmo na mudança, aquilo que realmente existe. Faziam parte desse grupo:

ü  Tales de Mileto, para quem o arché seria a água;
ü  Anaximandro de Mileto, discípulo e sucessor de Tales, para quem nosso mundo seria apenas um entre uma infinidade de mundos que evoluíam e se dissolviam em algo que ele denominava ilimitado ou infinito (e cujo elemento básico, portanto, talvez não fosse algo tão simples quanto a água);
ü  Diógenes de Apolônia, para quem o único princípio primordial seria o ar, buscando explicar os mais variados fenômenos a partir dele;
ü  Demócrito de Abdera, que acreditava que todas as coisas seriam formadas por uma infinidade de "pedrinhas minúsculas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna, imutável e indivisível", às quais denominava átomos;
ü  Parmênides de Eléia, para quem “nada nasce do nada e nada do que existe se transforma em nada” e que as transformações que se podiam observar na natureza não seriam mudanças reais, mas aparentes;
ü  Entre outros filósofos, tais como: Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento e Xenófanes de Colófon.

Para este grupo, a apreensão, o estudo e o entendimento do princípio das coisas fiavam-se nos sentidos, exceção feita a Parmênides, que passou a confiar mais na razão como fonte primária de nosso conhecimento do mundo, dando origem aos racionalistas. Uma ruptura com este viés filosófico surge com Platão, discípulo de Sócrates, para quem o númeno (ou realidade superior), que é abstrato, não material – porém substancial – eterno e imutável, é que seria dotado do maior grau de realidade e não o mundo material, mutável, conhecido por nós através das sensações. Haveria assim um mundo das idéias, que conteria a forma pura e essencial de todas as coisas do mundo material, dos objetos comuns (coisas ou seres), que herdam os atributos – forma e essência – de modo rudimentar e inferior; segundo esse princípio, somente o estudo das formas no mundo das idéias (residindo no mundo inteligível, fora do tempo e do espaço e não no mundo sensível ou material) levaria o indivíduo ao conhecimento verdadeiro. Para ilustrar alguém que alcance a luz da verdade através do conhecimento, libertando-se da escuridão da ignorância em que se encontra aprisionado, Platão faz uso da alegoria da caverna, descrito no Livro VII de sua obra A República, assim descrita:

No interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali. Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, sem poder ver uns aos outros ou a si próprios. Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da qual passam pessoas carregando objetos que representam "homens e outras coisas viventes". As pessoas caminham por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles e vêem apenas as sombras que são projetadas na parede em frente a eles. Pelas paredes da caverna também ecoam os sons que vêm de fora, de modo que os prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade. Imagine que um dos prisioneiros seja libertado e forçado a olhar o fogo e os objetos que faziam as sombras (uma nova realidade, um conhecimento novo). A luz iria ferir os seus olhos e ele não poderia ver bem. Se lhe disserem que o presente era real e que as imagens que anteriormente via não o eram, ele não acreditaria. Na sua confusão, o prisioneiro tentaria voltar para a caverna, para aquilo a que estava acostumado e podia ver. Caso ele decida voltar à caverna para revelar aos seus antigos companheiros a situação extremamente enganosa em que se encontram, os seus olhos, agora acostumados à luz, ficariam cegos devido à escuridão, assim como tinham ficado cegos com a luz. Os outros prisioneiros, ao ver isto, concluiriam que sair da caverna tinha causado graves danos ao companheiro e, por isso, não deveriam sair dali nunca. Se o pudessem fazer, matariam quem tentasse tirá-los da caverna.


O mito da caverna, de Platão.
Platão não buscava as verdadeiras essências na simples phýsis, como o fizeram Tales, Anaximandro, Diógenes, Demócrito e seus seguidores. Sob a influência de Sócrates, ele buscava a essência das coisas para além do mundo sensível. E o personagem da caverna, que por acaso se liberte correrá, como Sócrates, o risco de ser morto por expressar seu pensamento e em querer mostrar um mundo totalmente diferente, de possibilidades muito mais amplas.


Os conceitos de Platão sobre a essência das coisas será contestado por seu notório discípulo, Aristóteles, através de uma série de tratados escritos no século IV a.C. e organizados em quatorze livros pelo filósofo grego Andrônico de Rodes no século I a.C. Foi Andrônico, inclusive, quem chamou esse conjunto de Metafísica. Aristóteles desenvolve um trabalho que busca conciliar a substância física dos naturalistas pré-socráticos com a substância imaterial de Platão, ao propor que a matéria participa da substância, do mesmo modo que a madeira necessita da forma mesa para que a forma substancial mesa (composição de matéria e forma) possa existir. Por outro lado, a forma substancial não esgota em si a substância; por exemplo, mesmo que o objeto mesa deixe de existir, persistirá sua idéia, o que permite que existam ou que se façam outras mesas; o conceito está descrito abaixo:

Daí, ao definir a natureza de uma casa, os que a descrevem como pedras, tijolos e madeira, descrevem a casa em potência, já que essas coisas são sua matéria; os que a descrevem como “recipientes para conter utensílios e corpos”, ou alguma outra coisa, com idêntico objetivo, descrevem a casa em ato, ou seja, sua realidade. Entretanto, os que combinam essas duas definições, descrevem um terceiro tipo de substância, a que é composta de matéria e forma.

Uma forma substancial estaria assentada em quatro causas primárias:

ü  Causa material: a matéria de que uma coisa é feita, ou seja, a matéria na qual consiste a forma substancial. No exemplo da casa, a matéria de que é feita são pedras, tijolos e madeira;
ü  Causa formal: é a forma da coisa, ou seja, uma forma substancial define sua essência pela sua forma. A casa em si define sua forma;
ü  Causa eficiente: é a origem da coisa, aquilo ou aquele que tornou possível a forma substancial. A construção da casa é o que a torna possível;
ü  Causa final: é a razão de uma coisa existir, a finalidade da forma substancial. A finalidade da casa é servir de recipiente para conter utensílios e corpos.

Para Aristóteles, na natureza todas as formas substanciais movem-se em direção a um fim, tenham disso ciência ou não; seguindo essa linha de raciocínio, quando uma flecha é arremessada contra um alvo, o alvo torna-se a causa final da flecha. Muito embora a flecha não conheça a causa final, um agente inteligente dotado de vontade a conhece, tornando-se por isso mesmo a causa eficiente do arremesso da flecha. Por toda a idade média, as hermenêuticas platônica e aristotélica formaram a base dos estudos científicos e principalmente religiosos, destacando-se a metafísica patrística (dominante entre os séculos II e VIII d.C.) tendo como principal influência o conjunto da obra de Santo Agostinho – de viés platônico – e uma segunda fase, com a metafísica escolástica (dominante entre os séculos IX e XV d.C.) tendo como principal influência o conjunto da obra de Tomás de Aquino – de viés aristotélico – em que ambas buscavam provar filosoficamente a existência de Deus. Portanto, é no final do período da ainda vigorosa metafísica escolástica que Descartes apresenta sua obra científico-filosófica, fazendo forte oposição ao pensamento aristotélico em dois pontos fundamentais:

ü  Rejeição às formas substanciais como princípios interpretativos na física;

ü  Negação da tese de que todo o conhecimento deve provir da sensação.


Uma forma substancial era pensada como um princípio imaterial da organização material, resultando em uma coisa específica de um determinado tipo. Considere, por exemplo, o
pássaro denominado andorinha: o princípio imaterial, ou idéia, do ser andorinha une-se ao princípio material de modo a organizá-la, pela causa eficiente, para ser a coisa do tipo andorinha. Quaisquer que sejam os atributos que uma andorinha tenha em virtude de ser esse tipo de coisa são explicados pela causa final ou razão de ser de uma andorinha. Assim, poder-se-ia afirmar que a razão de ser de uma andorinha é a causa última que lhe dá a habilidade de voar, o que significa que uma andorinha voa pelo fato de ser uma andorinha; ainda que isto seja
verdadeiro, esse pensamento não acrescenta nada de novo ou de útil sobre estes pássaros. Outra razão para Descartes rejeitar as formas substanciais e as causas finais para o estudo da phýsis era sua crença de que essas noções eram o resultado da confusão dos conceitos de corpo e de mente, aplicando-os na ação da gravidade sobre uma pedra para justificar o seu ponto de vista. Pelo pensamento escolástico, a razão de ser de uma pedra é a tendência de mover-se para o centro da Terra. Esta explicação implica em que a pedra tem conhecimento de sua razão de ser, do centro da Terra e de como chegar até lá. Mas como pode uma pedra saber alguma coisa, se ela não pensa? Assim, é um erro imputar propriedades mentais como o conhecimento a coisas puramente físicas e, para evitá-lo, imperioso se torna distinguir o conceito de mente do conceito de corpo. Descartes concluiu que a ciência e a filosofia escolásticas eram incapazes de descobrir o que quer que fosse de conhecimento científico novo ou útil. Assim, ao expulsar os princípios metafísicos das formas substanciais e das causas finais ao afirmar que “a dialética ordinária não serve para aqueles que desejam investigar a verdade das coisas”, Descartes abre caminho para uma nova metafísica, na qual a sua física mecanicista estava baseada e com a qual explicações mais prolíficas e claras poderiam ser obtidas acerca da phýsis.

A obra O Discurso do método está dividida em seis partes, onde Descartes elege a autoridade da razão como fio condutor para uma busca pela compreensão das leis naturais. Na primeira parte, Descartes apresenta o método que desenvolveu e que seguia para conduzir o indíviduo àquilo que era verdadeiro, ressalvando não ser sua intenção apresentar um método que cada qual devesse adotar para bem conduzir sua razão, mas tão somente mostrar de que maneira ele próprio havia se esforçado para conduzir a sua. Na segunda parte, Descartes apresenta quatro preceitos lógicos, necessários no seu entender para discernir entre o verdadeiro e o falso, a saber:

1. Receber escrupulosamente as informações, examinando sua racionalidade e sua justificação. Verificar a verdade, a boa procedência daquilo que se investiga aceitando apenas o que seja indubitável[1];
2.  Análise ou divisão do assunto em tantas partes quantas forem possíveis ou necessárias;
3.  Síntese ou elaboração progressiva de conclusões abrangentes e ordenadas a partir de objetos mais simples e fáceis até os mais complexos e difíceis;
4.  Enumerar e revisar minuciosamente as conclusões, garantindo que nada seja omitido e que a coerência geral exista.


[1] Este preceito de Descartes relaciona-se muito ao ceticismo filosófico grego, doutrina que tem como maior expoente o filósofo e médico greco-romano Sextus Empiricus, que viveu entre os séculos II e III d.C. Sextus define o ceticismo como “a faculdade de opor de todas as maneiras possíveis os fenômenos e os númenos, para daí chegarmos, pelo equilíbrio das coisas e das razões opostas, primeiro à suspensão do julgamento (epokhé, ou seja, a atitude de não aceitar nem julgar uma determinada posição ou juízo) e, depois, à indiferença (ataraxia, ou seja, ausência de inquietude ou preocupação, tranquilidade de ânimo). Segundo este filósofo, as coisas existem, porém só o que podemos saber e dizer delas é de que maneira nos afetam – e não o que são em si mesmas.

Na terceira parte desta obra, Descartes estabelece para si mesmo as máximas morais que deve perseguir:

1.  Obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me em tudo o mais;
2.  Ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto;
3.  Procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos;
4. Passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor.

Na quarta parte do Discurso, Descartes tenta provar a existência de Deus, fazendo a seguinte análise:

"Julguei necessário fazer o contrário (do que fiz em relação à moral) e rejeitar, como absolutamente falso, tudo o que pudesse ser objeto da menor dúvida, a fim de verificar se, depois disso, não me restava, em minha certeza, alguma coisa totalmente indubitável. Ao pensar que tudo era falso, era necessário que, eu que pensava, fosse alguma coisa; e observando que essa verdade: "Cogito, ergo sum" (ou seja, "Penso, logo sou") era tão firme e tão certa, de modo que todas as mais extravagantes suposições dos céticos já não eram capazes de abalá-la, julguei que poderia recebê-la como o primeiro princípio da filosofia que eu procurava. Percebi, então, que era uma substância cuja essência, ou natureza, consiste em pensar e que para ser não precisa de lugar algum, nem depende de coisa alguma material. Em consequência, o eu, a alma, que permite ao filósofo ser o que é (um pensador), é inteiramente distinta do corpo, cujo conhecimento é mais fácil que o do corpo, pois mesmo que deixasse de existir, a alma não deixaria de ser o que é. Assim como o mais perfeito não pode ser consequência do menos perfeito, e, nada poder provir, tal idéia, do ser perfeito, ou da perfeição do ser, só pode ter sido posta em nós por uma natureza mais perfeita do que a nossa, e que inclui todas as perfeições, quer dizer, Deus".

Na quinta parte, Descartes apresenta algumas aplicações do seu método a questões físicas e outras relativas à medicina, onde faz uma minuciosa descrição do coração e da circulação do sangue no corpo humano. Finalmente, na sexta parte o filósofo francês explica as razões que o levaram a escrever este tratado e aquilo que ele acredita ser essencial para o progresso do conhecimento. Os três volumes seguintes ao Discurso do método (Dioptria, Meteoros e Geometria) são denominados ensaios, aos quais aplica o seu método mecanicista ou cartesiano. Observe a semiótica algébrica de Descartes na figura abaixo (constante do volume Geometria), em que a representação geométrica entre segmentos de linha forma uma expressão alternativa às expressões simbólicas de soma, diferença, produto, divisão e raiz quadrada:
Fragmento do ensaio Geometria, de Descartes.
Neste exemplo, Descartes constrói geometricamente as raízes positivas da expressão quadrática (destacada em azul), replicada abaixo em notação moderna:
$$ z^{2}=az+b^{2} $$
Para encontrar a raiz desta equação, ele constrói o triângulo NLM, onde LM equivale a b e LN equivale a 1/2a. Desenhando-se um círculo cujo raio seja igual a LN e estendendo-se o segmento MN até que alcance a circunferência em O, temos que o segmento NO é igual ao segmento LN, com o segmento OM sendo a incógnita z. Aplicando agora a seguinte proporção:
$$ \frac{OM}{LM}=\frac{LM}{PM} $$
Obtemos:
$$ OM\times PM=LM^{2} $$
Observe que:
$$ OM=z $$
$$ LM^{2}=b^{2} $$
$$ PM=\left ( OM-OP \right )=\left ( OM-2\times NO \right )=\left ( OM-2\times LN \right )=\left ( z-2\times \frac{1}{2}a \right ) $$
$$ PM=\left ( z-a \right ) $$
Logo:
$$ OM\times PM=LM^{2} $$
$$ z\times \left ( z-a \right )=b^{2} $$
$$ z^{2}-az=b^{2} $$
Portanto:
$$ z^{2}=az+b^{2} $$
Um olhar mais atento permite identificar um fácil intercâmbio entre as semióticas matemáticas de Vieta e Descartes; porém, enquanto para Vieta a linguagem simbólica (sua logistice speciosa) é entendida como um cálculo não interpretado, uma linguagem formal vazia cujos símbolos manipulam-se de acordo com regras previamente declaradas que podem ser interpretadas tanto geométrica quanto aritmeticamente, em Descartes a linguagem simbólica, algébrica, é totalmente significativa, ao representar integralmente um ente geométrico. Observe a seguir outro exemplo da obra Geometria de Descartes, em que uma construção geométrica equivale a uma equação algébrica e a semiótica adotada, semelhante à atual:

Fragmento do ensaio A Geometria.
Na primeira linha do texto encontramos a seguinte equação:
$$ x\propto \sqrt{-\frac{1}{2}a+\sqrt{\frac{1}{4}aa+bb}} $$
Que pode ser representada atualmente como:
$$ x=\sqrt{-\frac{1}{2}a+\sqrt{\frac{1}{4}a^{2}+b^{2}}} $$
Ou ainda o uso de expoentes para as potências das incógnitas, como se pode observar na terceira linha do texto reproduzido abaixo:
$$ z^{2}\propto az-bb $$
Representado atualmente pela expressão algébrica:
$$ z^{2}=az-b^{2} $$
Note que Descartes faz o uso das letras x, y e z para definir suas incógnitas (destacado em amarelo, abaixo), tal como nos ensinam na escola até hoje:

Outro fragmento do ensaio A Geometria.
Dada a clareza e significância do simbolismo matemático de Descartes, e os princípios que nortearam sua busca pela verdade, todo este arcabouço acabou por tornar-se, pouco a pouco, num padrão, difundindo-se por toda a comunidade matemática, o que facilitou a comunicação e a troca de conhecimentos entre os matemáticos.

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