Iluminura do livro “As mui ricas horas do duque de Berry”, encomendado em 1.410. |
Tendo-se encontrado em 781 com o monarca Carlos Magno em Parma, recebe deste o convite para ajudá-lo a instruir e reformar a corte e o clero de seu reino. Como resultado deste convite, Carlos Magno manda erigir, por volta de 790, a catedral de Aquisgrão (ou Aachen), na Alemanha, onde viria a ser sepultado em 814. Na então capela original (Capela Palatina), o monge Alcuíno funda o Palácio-Escola (Aula Palatina), onde eram ensinadas as sete artes liberais: o trívio (gramática, lógica e retórica) e o quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música).
Vista geral atual da catedral de Aquisgrão, ou Aachen: coro gótico à esquerda, a Capela Palatina com cúpula ao centro e torre à direita. |
Um homem, um lobo, uma cabra e um repolho tem que
atravessar um rio em um pequeno barco. No barco, o
homem só pode levar ou o lobo, ou a cabra, ou o
repolho, e ele não pode deixar, do lado do rio, o lobo
sozinho com a cabra, nem a cabra sozinha com o
repolho. Como fazer esta travessia?
A
estrutura retórica deste problema é aquela de um diálogo entre um mestre e o
seu aluno e é típico na formulação de questões desde a antiguidade. Rima e
cadência na forma de enigmas e histórias forneciam auxílios mnemônicos valiosos
e facilitavam a tradição oral de resolução de problemas. Muitos dos problemas
mais antigos eram colocados em verso. Os problemas de Alcuíno apresentam
claramente um caráter de declamação, típico para o sistema medieval de
aprendizagem por hábito de repetição. Os estudantes medievais eram obrigados a
calcular mentalmente a solução dos problemas propostos e a memorizar regras e
exemplos. Esta solução depende de preceitos e de regras fáceis de lembrar para
resolver problemas semelhantes, sem a necessidade de incluir uma explicação. Por
exemplo, o problema 26 do Propositiones
lida com álgebra simples, e usa algarismos romanos:
XXVI. propositio de cursu cbnks.
bc. fvgb. lfp:rks.
Est campus qui habet in longitudine pedes CL. In uno capite stabat
canis, et in alio stabat lepus. Promovit namque canis ille post illum, scilicet
leporem currere. Ast ubi ille canis faciebat in uno saltu pedes VIIII, lepus
transmittebat VII. Dicat, qui velit, quot pedes quotque saltus canis
persequendo, et lepus fugiendo, quoadusque comprehensus est, fecerunt?
Solutio.
Longitudo hujus videlicet campi
habet pedes CL. Duc mediam de CL, fiunt LXXV. Canis vero faciebat in uno saltu
pedes VIIII, quippe LXXV novies ducti fiunt DCLXXV, tot pedes leporem
consequendo canis cucurrit, quoadusque eum comprehendit dente tenaci. At vero
quia lepus faciebat pedes VII, in uno saltu, duc ipsos LXXV septies. Tot vero
pedes lepus fugiendo peregit, donec consecutus est.
Traduzindo para o português, temos:
26. Proposição sobre a perseguição
do cão e o vôo da lebre.
Existe um campo com 150 pés de
comprimento. Em um extremo havia um cachorro, no outro, uma lebre. O cão
avançou atrás [da lebre], ou seja, para perseguir a lebre. Mas enquanto o cão
percorria nove pés por passada, a lebre percorria [somente] sete. Diga-o, quem
desejar, quantos pés e quantos saltos o cão levou para perseguir a lebre que
fugia até que fosse capturada?
Solução.
O
comprimento deste campo era de 150 pés. Tomando metade de 150 faz 75. O cão
estava cobrindo nove pés por passada, e nove vezes 75 faz 675. O cão correu
assim muitos pés perseguindo a lebre até que a capturou com seus dentes
tenazes. E, de fato, porque a lebre fazia sete pés por passada, pegue 75 sete
vezes. Isto é, quantos pés a lebre que fugia percorreu antes de ser apanhada.O enigma do cão e da lebre. Não foi possível identificar se esse manuscrito é o original de Alcuíno ou se é uma das cópias existentes. |
A solução de Alcuíno é engenhosa, porém cifrada.
Ainda que se possa resolver este problema com duas equações e duas incógnitas,
o monge percebe que as diferentes taxas
de corrida dos animais são a chave para todo o problema: após x passadas, o cão percorreu 9x pés de distância e a lebre 7x pés. Logo, a distância entre ambos é
reduzida por 2x pés a cada passada.
Para que o cão capture a lebre é necessário que dê 2x = 150 passadas, onde 150 pés é o comprimento do campo; logo, x = 75 passadas. Assim, o cão percorre 9
vezes 75, ou seja, 675 pés e a lebre 7 vezes 75, quer dizer, 575 pés de
distância em 75 passadas antes de ser capturada. Este tipo de problema já era
conhecido na China 2.000 anos antes de Alcuíno. O magro currículo do quadrívio clássico, durante os primeiros
séculos da idade média, foi cada vez mais empobrecido para se adaptar a fins
educacionais, a propósito, o estudo dos textos religiosos, que utilizava uma
matemática quase supérflua. A situação não degringolou de vez porque nesse
período surgiu um novo problema de relevância eclesial que foi capaz de manter
vivo o interesse em estudos matemáticos: o computus,
ou seja, o cálculo da data da Páscoa, essencial para a liturgia, e porque nela
eram baseados outros importantes feriados religiosos. A dificuldade deste
cálculo decorre do fato de que os resultados do calendário cristão partiam de
uma combinação entre o calendário juliano (baseado no movimento anual da Terra
em relação ao Sol) e o hebraico, este baseado nos ciclos lunares. Embora o
cálculo dos dias do ano ocorra de acordo com o calendário juliano, a data da
Páscoa está associada às fases lunares; assim, em comparação com o juliano,
essas datas podem variar dentro de limites bem definidos de um ano para o
outro. Para calcular a data da Páscoa, portanto, é necessário combinar a
duração do ano civil com a dos meses lunares. Infelizmente, não há um número
inteiro de dias que forneçam um valor exato de meses lunares e anos solares,
assim como não existe um número inteiro de meses lunares para dar um valor
exato de anos civis. Para combinar as fases da lua com o ano solar em termos de
um número inteiro de dias é necessário utilizar um sistema de adaptações
apropriadas. O monge inglês Bede, o venerável, foi quem deu uma solução para
este problema que ainda hoje é considerado um dos mais claros e abrangentes,
exposto no panfleto De temporum ratione
(A contagem do tempo). A fim de facilitar a execução dos cálculos necessários,
Bede também demonstrou um método claro e eficaz de cálculo digital, ou seja,
feito com a ajuda das mãos. É um sistema de origem antiga, em que todos os
números de 1 a 9999 podem ser representados com posições adequadas dos dedos,
punhos e braços. Em particular, o cálculo digital de Bede é baseado em 14
falanges de uma mão, para que as 28 falanges das duas mãos perfaçam o ciclo de
28 anos em que se baseia o seu computus.
Finalmente, deve-se lembrar de que, naquela época, os números eram
representados por algarismos romanos e os cálculos foram realizados com um
ábaco greco-romano, com o qual é simples executar a adição, a subtração, a
multiplicação e a ainda mais elaborada divisão.
Fragmento de um manuscrito bíblico, posterior a 1.066 d.C., contendo dois esquemas orbitais cósmicos, associados ao De temporum ratione, do monge inglês Bede. |
De fato, embora o ensino de matemática em
conventos e escolas da catedral fosse baseado no quadrívio, na realidade eles ensinavam apenas os rudimentos da
aritmética e da geometria prática necessários à vida cotidiana. Este também é,
no entanto, o nível de educação matemática necessário para ler o Propositiones ad Acuendos Juvenes. Os
documentos mais antigos do continente europeu que falam de álgebra são: o
ibérico Liber Mahamaleth, que
compartilha passagens tanto do De
Divisione Philosophiae[1],
sendo posterior a 1.180 d.C., quanto com a regra de três ou regula del chataina toledana, atribuída
com precisão a Johannes Hispalensis e escrita por volta de 1.147 d.C.; o Liber algebre, elaborado por volta de
1.145 d.C. pelo arabista inglês Robert de Chester; e um terceiro escrito por
volta de 1.170 d.C. pelo tradutor italiano de obras científicas Gerardo de
Cremona, todos os três do século XII d.C. Passando para o século XIII d. C.
vamos encontrar no ano de 1.228 d.C. o capítulo de álgebra do Liber Abbaci de Fibonacci (a primeira
edição de 1.202 provavelmente era muito semelhante, mas não se sabe quão
similar). Contemporâneo ao Liber Abbaci
temos também o De Numeris Datis,
escrito por volta de 1.225 d.C., do estudioso e matemático (possivelmente
italiano) Jordanus Nemorarius, ainda que na obra ele evitasse de falar
explicitamente sobre álgebra, mas deixando a dica para os conhecedores de
textos algébricos ao utilizar-se de muitos exemplos numéricos familiares; e
finalmente, em 1.307 d.C. temos o manuscrito Tractatus Algorismi, do italiano Jacopo da Firenze[2].
[1] Obra cujo provável autor tenha sido o
arquidiácono Dominicus Gundissalinus (ou Gundisalvis), residente à catedral de
Toledo, cidade pertencente ao então reino de Castela e outrora uma capital
provincial do califado de Córdoba.
[2] Interessante observar que o texto completo do
Kitab al-muhtasar fih isab al-jabr wa al-muqabala de al-Khwarizmi só se tornou
disponível em 1831 por Frederic Rosen, através da tradução questionável para o
inglês de um único manuscrito árabe de 1.342 atualmente pertencente à
biblioteca Bodleian, da universidade de Oxford.
Muito do conteúdo do manuscrito Liber Mahamaleth vem da tradição mu’amalat, ou seja, a matemática das
relações sociais, que no Iraque do século VIII d.C. estava associado
principalmente à determinação aritmética de transações e operações de crédito
sobre os cultivos das regiões árabes, e sobre os subterfúgios pelos quais os
juros, proibidos então, poderiam ser disfarçados de negócios legais. Posteriormente,
para além do século XI d.C., o termo mu’amalat
– menos que a matemática abordada nos temas – representava os tipos de
transações implícitas, notadamente aquelas que um juiz deveria envolver-se: venda
e arrendamento, casamento e divórcio, queixas e provas legais, depósitos e
empréstimos, legados e heranças. Na região Andaluzia, e de acordo com
Gundissalinus em seu De Divisione
Philosophiae, os ramos da aritmética prática são: compra e venda, troca,
arrendamento, pagamento e poupança, medições de profundidades, larguras, alturas
e outras extensões de coisas, o que em árabe é chamado Mahamalech. Veja, por exemplo, um dos muitos problemas de proporção
associado a compra e venda do Liber
Mahamaleth:
$$ \left\{\begin{matrix}\frac{3}{8}::\frac{Q}{P}\\ Q\cdot P=216\end{matrix}\right. $$
Nada é dito no problema sobre frações, mas a
regra dada baseia-se na multiplicação em cruz entre as duas expressões acima:
$$ \frac{3}{8}\times 216=\frac{Q}{P}\times \left ( Q\cdot P \right )\Rightarrow \frac{3}{8}\times 216=Q^{2} $$
O que nos leva a:
$$ \frac{3}{8}\times 216=Q^{2} $$
$$ 3\times 27=Q^{2} $$
$$ 81=Q^{2} $$
$$ Q=\sqrt{81}=9 $$
A segunda formulação é:
$$ \frac{8}{3}\times 216=\frac{P}{Q}\times \left ( P\cdot Q \right )\Rightarrow \frac{8}{3}\times 216=P^{2} $$
Resolvendo:
$$ \frac{8}{3}\times 216=P^{2} $$
$$ 8\times 72=P^{2} $$
$$ 576=P^{2} $$
$$ P=\sqrt{576}=24 $$
Em nosso senso comum este exemplo pode ser visto
como álgebra elementar, mas certamente não era entendido como álgebra no século
XII. Outro exemplo semelhante no capítulo seguinte do Liber Mahamaleth trata do mesmo assunto, agora com coisas:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}}{2\ res+3} $$
Onde a palavra latina res significa coisa, ou para a álgebra moderna, o x. De início, é feito o seguinte arranjo numérico, trabalhando-se com os numeradores de ambas as frações:
$$ 4\div 1\frac{1}{2}=4\div \frac{3}{2}=4\times \frac{2}{3}=\frac{8}{3}=2\frac{2}{3} $$
Multiplicando este valor aos termos da fração à direita da equação, temos:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}\times 2\frac{2}{3}}{\left (2\ res+3 \right )\times2\frac{2}{3}} $$
Resultando:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{4}{5\frac{1}{3}\ res+8} $$
Levando a:
$$ 20+2\ res=5\frac{1}{3}\ res+8 $$
Resolvendo:
$$ 20-8=5\frac{1}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16\ res-6\ res}{3} $$
$$ 36=10\ res $$
$$ res=\frac{36}{10}=\frac{18}{5} $$
É
possível observar que Jordanus não opera em seus símbolos, pois cada cálculo
conduz à introdução de uma nova letra. Logo, o que Jordanus inventou foi a
representação simbólica de um algoritmo.
A notação de Magrebe persiste em um texto
anônimo escrito por volta de 1.300 que contém uma seção denominada Qualiter figurentur census, radices et
dragma (Como são representados os censos – x2, raízes – x
e dragmas – inteiros neste caso). Nesse manuscrito, censo é escrito como c, raiz como r e dragma como d ou apenas um número, como se pode
observar abaixo:
Fora
desta seção essa notação não é utilizada, o que indica que seja algo que o
autor do texto aprendeu alhures e que, como ele afirma, facilita o ensino do
cálculo algébrico. Existem ainda referências não apenas a operações de soma e
subtração, mas também de multiplicação, estabelecendo neste último caso apenas as
multiplicações de coisa com coisa (x × x) e de coisa com número (x × 2, por exemplo).
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}}{2\ res+3} $$
Onde a palavra latina res significa coisa, ou para a álgebra moderna, o x. De início, é feito o seguinte arranjo numérico, trabalhando-se com os numeradores de ambas as frações:
$$ 4\div 1\frac{1}{2}=4\div \frac{3}{2}=4\times \frac{2}{3}=\frac{8}{3}=2\frac{2}{3} $$
Multiplicando este valor aos termos da fração à direita da equação, temos:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{1\frac{1}{2}\times 2\frac{2}{3}}{\left (2\ res+3 \right )\times2\frac{2}{3}} $$
Resultando:
$$ \frac{4}{20+2\ res}=\frac{4}{5\frac{1}{3}\ res+8} $$
Levando a:
$$ 20+2\ res=5\frac{1}{3}\ res+8 $$
Resolvendo:
$$ 20-8=5\frac{1}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16}{3}\ res-2\ res $$
$$ 12=\frac{16\ res-6\ res}{3} $$
$$ 36=10\ res $$
$$ res=\frac{36}{10}=\frac{18}{5} $$
Para outros tópicos clássicos de mu’amalat (lucro e juros, parcerias, etc.), encontramos sucessivas
sequências de problemas, envolvendo, por exemplo, soma, subtração e produto de
capital e lucro, muitas vezes construídos de acordo com a aplicação da teoria
das proporções. Interessante observar
que as frações são escritas ao estilo de Magrebe, com numerais hindus e linhas
para representar as frações, como se faz ainda hoje. Também são abundantes os
cálculos efetuados às margens do texto principal, dentro de molduras
retangulares, de modo similar aos cálculos nas lousas de argila (as chamadas lawha). Já o texto de Gerardo de Cremona
é uma tradução fiel do manuscrito de al-Khwarizmi, na medida em que não existem
números hindus nem linhas de fração, sendo tudo completamente verbal. Robert de
Chester utiliza numerais hindus em sua tradução, mas tirando isso o restante do
texto também é completamente verbal. Por outro lado, atribui-se ao De Numeris Datis de Jordanus Nemorarius
a primeira ocorrência de uma álgebra simbólica; de fato, ele emprega letras na
representação de números. Observe o exemplo a seguir:
Se um dado número é dividido em
dois e se o produto de um pelo outro é dado, cada um deles também será dado por
decorrência.
Seja o número dado abc dividido em ab
e c, e seja o produto de ab com c
dado por d, e de modo análogo seja
o produto de abc consigo mesmo como e. Então o quádruplo de d é tomado, que é f.
Quando este é retirado de e,
resta g, e este será o quadrado
da diferença entre ab e
c. Portanto a raiz de g é extraída, e ela será b, a diferença entre ab e c.
E como b será dado, c e ab
também serão dados.
Uma página do “Manuscrito Jerba” de ibn al-Haim. Observe a farta quantidade de cálculos marginais ao redor do texto principal. O Liber Mahamaleth possui essa característica. |
À esquerda: trecho do manuscrito anônimo datado por volta de 1.300, Lyell 52, Bodleian Library, Oxford. À direita: a tradução deste trecho; observe como eram escritos os numerais 4 e 5 nesse texto. |
Se um elemento da equação é negativo, um ponto é colocado
abaixo dele. Os símbolos aritméticos são escritos abaixo dos coeficientes, ao
estilo de Magrebe. As linhas verticais, da esquerda para a direita, são
traduzidas e representadas pelas seguintes equações:
2 censos menos 3 raízes
|
$$ 2x^{2}-\sqrt{3} $$ |
2 censos menos 4 dragmas
|
$$ 2x^{2}-4 $$ |
5 raízes menos 2 censos
|
$$ \sqrt{5}-2x^{2} $$ |
5 raízes menos 4 dragmas
|
$$ \sqrt{5}-4 $$ |
A notação algébrica se apresenta com poucas alterações por
volta de 1.460 quando Benedetto da Firenze, ou Maestro Benedetto, conclui seu
trabalho intitulado Trattato di praticha
d'arismetriche, um volume de 500 páginas dos quais:
- O capítulo XIII contém uma introdução do autor sobre a álgebra, começando com um excerto de 23 linhas de uma tradução de 1.250 de Guglielmo de Lunis (agora perdida), de al-Khwarizmi , seguido das bem conhecidas nomenclaturas para as seis potências fundamentais de uma incógnita - acompanhada de suas provas geométricas – tais como as que seguem:
censo = x2
cubo = x3
censo di censo =
x4
|
- O capítulo XIV apresenta uma sequência de 140 problemas numéricos derivados de um manuscrito perdido denominado Trattato di Praticha, escrito pelo mestre florentino Biaggio, falecido por volta de 1.340. Vinte e oito destes problemas são mercantis. Os demais são teóricos, todos conduzindo a equações algébricas pertencentes a tipos solucionados por Benedetto nos exemplos fornecidos no capítulo XIII;
- Finalmente, o capítulo XV contém uma tradução para o italiano do capítulo de álgebra do Liber Abaci de Fibonaci, adicionado de “alguns esclarecimentos, especificação das regras em relação aos casos apresentados no capítulo XIII e a completude dos cálculos, que o antigo mestre geralmente negligenciava, indicando apenas os resultados”, bem como uma coleção de problemas copiados de um tratado algébrico escrito por volta de 1.380, pelo algebrista italiano Antônio de Mazzinghi.
Interessante observar que Luca Pacioli
praticamente fez uma cópia literal do método de solução algébrica de De
Mazzinghi em seu Summa de arithmetica
geometria proportioni et proportionalità, escrito em 1.494, sem grandes alterações
na notação algébrica adotada. Por outro lado, na França, o matemático Nicolas
Chuquet escreveria dez anos antes do Summa
(1.484) o seu manuscrito Triparty en la
science des nombres, que não foi publicado enquanto estava vivo; a maior
parte dele, porém, foi copiada sem atribuição da autoria por outro matemático
francês, Estienne de La Roche, em seu livro l’Arismetique,
de 1.520. Esta obra apresenta uma notação algébrica diferente das anteriores,
ao utilizar-se de expoentes:
Na última linha da imagem acima, temos:
$$ \Re ^{4}.54\hat{p}.\Re ^{2}.980. $$
Cuja transcrição para a nomenclatura atual
resulta:
$$ \sqrt[4]{54+\sqrt{980}} $$
Uma profusão de experiências notacionais
matemáticas surgiria a partir do século XVI, como é o caso do uso de mais de
uma incógnita em expressões algébricas, tal qual na obra Practica arithmeticae et mensurandi singularis (1.539) do
matemático italiano Girolamo Cardano, indicada abaixo.
Fragmento do Practica Arithmeticae, de Girolamo Cardano. |
O texto original de Cardano, indicado na figura acima, e sua
respectiva notação algébrica moderna, são as seguintes:
7co.æquales151.p.27.quã
10co.æquales1018.p.18.quã
|
$$ 7x=151+27y $$
$$ 10x=1018+18y $$
|
[a]
|
1
co.æquales21 4/7.p.3 6/7.quã
1 co.æquales101 4/5.p.1
4/5.quã
|
$$ x=21\ 4/7+3\ 6/7y $$
$$ x=101\ 4/5+1\ 4/5y
$$
|
[b]
|
80
8/35æqualia2 2/35quã.
35
|
$$ 80\ 8/35=2\ 2/35y $$
$$ 35 $$
|
[c]
|
2008.æqualia
72.quã.
39. Valor quã.
|
$$ 2008=72y $$
$$ y=39 $$
|
[d]
|
Em
[a], Cardano inicia o cálculo apresentando duas equações com as duas incógnitas
x e y. Em [b], cada equação é dividida pelo respectivo número que
multiplica a incógnita x. Em [c], as
duas equações são igualadas em x,
isolando-se e somando-se os números à esquerda da equação e, do mesmo modo,
isolando-se e somando-se as variáveis em y
à direita. Na linha abaixo, o número 35 indica que ele será multiplicado em
ambos os lados da equação, de modo a eliminá-lo dos denominadores. Finalmente,
em [d] temos uma equação linear em y
e seu respectivo valor na linha abaixo: 39. Por outro lado, para a nomenclatura
adotada por Stifel, indicada na figura abaixo, a linha destacada em amarelo
contém as letras A e B para definir as incógnitas, do mesmo modo como definimos x e y.
Fragmento do Arithmetica Integra, de Michael Stifel. |
O texto é o seguinte:
Volo
multiplicare 3A in 9B, fiunt 27AB, hoc est, 27A multiplicatae in 1B.
E na linha destacada em azul, temos 2гρ fazendo as vezes de 2y3 e 4Az
fazendo as vezes de 4x2.
O texto é o seguinte:
Volo multiplicare 2гρ in 4Az, fiunt 8гρAz, hoc est, 8гρ multiplicati
in 1 Az.
Então, na linha destacada em amarelo, em álgebra moderna,
Stifel estaria estabelecendo a seguinte regra multiplicativa:
Ao multiplicar 3x com 9y faz-se 27xy, que é 27x multiplicado
por 1y.
E na linha destacada em azul, Stifel estabeleceria a
seguinte regra multiplicativa em álgebra moderna:
Ao multiplicar 2y3 com 4x2 faz-se 8y3x2,
que é 8y3 multiplicado por 1x2.
Percebe-se claramente certa ambiguidade de Michael Stifel no
uso e aplicação das mesmas variáveis com símbolos diferentes, pois na primeira
frase B seria y e na segunda frase гρ torna-se y3; de modo análogo, A na primeira frase seria o nosso x e na segunda frase Az torna-se o seu quadrado (x2). Outro matemático que desenvolveu uma curiosa
nomenclatura algébrica foi o italiano Francesco Ghaligai em sua obra Pratica d’Arithmetica, de 1.552.
Observe na figura acima, à esquerda, a
simbologia por ele adotada para designar as potências de uma incógnita: a
abreviação n° para número, um estranho símbolo que fica
entre um zeta (ζ) e um sigma (ς) gregos para cosa (coisa, ou o nosso x), seguido de um quadrado para censo (ou x2), dois quadrados alinhados horizontalmente para cubo (ou x3) e assim sucessivamente para outras potências: relato para x5, pronico
para x7, tromico para x11 e dromico
para x13. Note que as
potências definidas com símbolos específicos são todos números primos. Na página à direita Ghaligai ilustra o uso de sua notação
para calcular potências de 2, sequencialmente, até a décima-quinta potência. Em
1.553 surge a primeira obra sobre álgebra em alemão: o Die Coss, cujo autor – Christoff Rudolff (1.499 a 1.545) –
desenvolveu uma notação algébrica onde um dos símbolos por ele idealizado tornou-se
um padrão na linguagem matemática moderna, que é o símbolo de raiz.
Observe o conteúdo do texto destacado pelo
retângulo rosa:
$$ \sqrt{18}\ von\ \sqrt{50}\ \cdot \ facit\ \sqrt{8} $$
Traduzindo para a álgebra moderna, temos:
$$ \sqrt{50}-\sqrt{18}=\sqrt{8} $$
A explicação dada por Rudolff, apresentada no parágrafo acima do exemplo dado, demonstra um curioso método para efetuar a subtração entre raízes quadradas. Para chegar ao resultado deste exemplo, primeiro ele soma o conteúdo das raízes:
$$ 50+18=68 $$
Em seguida, ele multiplica o conteúdo das raízes entre si:
$$ 50\times 18=900 $$
Na etapa seguinte, ele multiplica 900 por 4:
$$ 900\times 4 = 3600 $$
Agora, ele extrai a raiz quadrada deste novo número:
$$ \sqrt{3600}=60 $$
Depois, ele subtrai 60 do resultado da soma dos conteúdos originais das raízes, que é 68:
$$ 68-60=8 $$
A raiz quadrada de 8 constitui a subtração entre √50 e √18. De fato:
$$ \left\{\begin{matrix}\sqrt{50}\cong 7,071067...\\ \sqrt{18}\cong 4,242640...\\ \sqrt{8}\cong 2,828427...=\sqrt{50}-\sqrt{18}\end{matrix}\right. $$
Apesar de muito interessante, infelizmente nem sempre se consegue obter quadrados perfeitos com este método... Rudolff também aborda em Die Coss a solução de problemas algébricos quadráticos utilizando o método da completude do quadrado, conforme ilustrado abaixo. Note a vigorosa influência árabe na matemática européia em plena Renascença, mesmo após mais de 700 anos da publicação da memorável obra Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-gabr wa-l-muqabala, de al-Khwarizmi.
Que
na notação algébrica moderna indica uma expressão quadrática, obtida
através da multiplicação entre as partes que compõem o quadrado, algo
diferente da técnica de al-Khwarizmi:
$$ \left ( 208-x \right )\times 1x=96\times 96\Rightarrow 208x-x^{2}=9216 $$
De fato, o matemático nomeia essa técnica de solução da completude do quadrado (sem nenhuma modéstia) de Regra Cristófora. Em 1.559 é a vez de o matemático francês Jean Buteo lançar seu livro Logistica com uma nomenclatura algébrica própria e expressões com mais de uma incógnita.
No retângulo verde destacado acima, a primeira
linha está assim representada:
$$ 3A,\ 12B,\ 3C\ [\ 96 $$
Que em notação moderna poderia ser expressa como:
$$ 3x+12y+3z=96 $$
A vírgula representa, para Buteo, o sinal aritmético da soma. A segunda linha em notação moderna fica:
$$ 3x+y+z=42 $$
Um traço longo indica que outra operação aritmética será executada entre as duas expressões: subtração que, entretanto, não é indicada por nenhum sinal aparente. Para além da própria explicação de Buteo no texto à esquerda, o resultado indicado na terceira linha é auto-explicativa, pois indica que a primeira expressão foi subtraída da segunda, restando:
$$ 11y+2z=54 $$
Vejamos a sequência completa do exercício proposto:
Em [a] e [c] quatro expressões algébricas com
três incógnitas são apresentadas. Em [b] temos o resultado da subtração das
duas expressões indicadas em [a]; de modo análogo, [d] é o resultado da
subtração das expressões indicadas em [c]. Em [e], a primeira expressão é o
resultado obtido em [d] multiplicado por 11 e a segunda expressão é o resultado
obtido em [b] multiplicado por 2. Em [f] as expressões indicadas em [e] são
subtraídas. Observe que o método utilizado por Buteo visa eliminar as incógnitas
até que reste apenas uma (neste caso, a variável z), cujo valor passa a ser conhecido. Substituindo-se o valor de z em qualquer uma das expressões indicadas
em [b] ou [d] permitirá encontrar o valor de y. Finalmente, substituindo-se z
e y em qualquer uma das quatro
expressões indicadas em [a] ou [c] permitirá encontrar o valor de x, tal como aprendemos até hoje na
escola. Observe no texto original que a vírgula é substituída por um ponto para
indicar somas, como se pode observar no conjunto de equações de [c] a [e]. É
mais provável que isso se deva a uma falha de atenção do tipógrafo que algo
intencional da parte de Jean Buteo; naquela época a impressão de livros era
algo ainda recente e erros tipográficos eram muito comuns e constantes. Outro
matemático que também se utiliza de nomenclatura própria para descrever
equações quadráticas e cúbicas é o português Pedro Nunes em sua obra Libro de algebra en arithmetica y geometria,
de 1.567.
Duas páginas do livro Pratica d’Arithmetica, de Francesco Ghaligai. |
Fragmento do Die Coss, de Christoff Rudolff, com o símbolo de raiz quadrada. |
$$ \sqrt{18}\ von\ \sqrt{50}\ \cdot \ facit\ \sqrt{8} $$
Traduzindo para a álgebra moderna, temos:
$$ \sqrt{50}-\sqrt{18}=\sqrt{8} $$
A explicação dada por Rudolff, apresentada no parágrafo acima do exemplo dado, demonstra um curioso método para efetuar a subtração entre raízes quadradas. Para chegar ao resultado deste exemplo, primeiro ele soma o conteúdo das raízes:
$$ 50+18=68 $$
Em seguida, ele multiplica o conteúdo das raízes entre si:
$$ 50\times 18=900 $$
Na etapa seguinte, ele multiplica 900 por 4:
$$ 900\times 4 = 3600 $$
Agora, ele extrai a raiz quadrada deste novo número:
$$ \sqrt{3600}=60 $$
Depois, ele subtrai 60 do resultado da soma dos conteúdos originais das raízes, que é 68:
$$ 68-60=8 $$
A raiz quadrada de 8 constitui a subtração entre √50 e √18. De fato:
$$ \left\{\begin{matrix}\sqrt{50}\cong 7,071067...\\ \sqrt{18}\cong 4,242640...\\ \sqrt{8}\cong 2,828427...=\sqrt{50}-\sqrt{18}\end{matrix}\right. $$
Apesar de muito interessante, infelizmente nem sempre se consegue obter quadrados perfeitos com este método... Rudolff também aborda em Die Coss a solução de problemas algébricos quadráticos utilizando o método da completude do quadrado, conforme ilustrado abaixo. Note a vigorosa influência árabe na matemática européia em plena Renascença, mesmo após mais de 700 anos da publicação da memorável obra Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-gabr wa-l-muqabala, de al-Khwarizmi.
Fragmento do Die Coss contendo solução algébrica pelo método da completude do quadrado. |
A exemplo de seu conterrâneo Michael Stifel, o alemão Rudolff
também utiliza o símbolo z
para descrever a incógnita x e zz para descrever o x2. À direita do quadrado
observa-se a seguinte equação:
208z
– 1zz sind
gleych 9216
$$ \left ( 208-x \right )\times 1x=96\times 96\Rightarrow 208x-x^{2}=9216 $$
De fato, o matemático nomeia essa técnica de solução da completude do quadrado (sem nenhuma modéstia) de Regra Cristófora. Em 1.559 é a vez de o matemático francês Jean Buteo lançar seu livro Logistica com uma nomenclatura algébrica própria e expressões com mais de uma incógnita.
Fragmento do Logistica, de Jean Buteo. |
$$ 3A,\ 12B,\ 3C\ [\ 96 $$
Que em notação moderna poderia ser expressa como:
$$ 3x+12y+3z=96 $$
A vírgula representa, para Buteo, o sinal aritmético da soma. A segunda linha em notação moderna fica:
$$ 3x+y+z=42 $$
Um traço longo indica que outra operação aritmética será executada entre as duas expressões: subtração que, entretanto, não é indicada por nenhum sinal aparente. Para além da própria explicação de Buteo no texto à esquerda, o resultado indicado na terceira linha é auto-explicativa, pois indica que a primeira expressão foi subtraída da segunda, restando:
$$ 11y+2z=54 $$
Vejamos a sequência completa do exercício proposto:
3A,
12B, 3C [ 96
3A, 1B, 1C [ 42
|
$$ 3x+12y+3z=96 $$
$$ 3x+y+z=42 $$
|
[a]
|
11B
. 2C [
54
|
$$
11y+2z=54 $$
|
[b]
|
3A
. 3B . 15C [ 120
3A . 1B . 1C [ 42
|
$$ 3x+3y+15z=120 $$
$$ 3x+y+z=42 $$
|
[c]
|
2B
. 14C [ 78
|
$$
11y+2z=54 $$
|
[d]
|
22B
. 154C [ 858
22B . 4C [ 108
|
$$ 22y+154z=858 $$
$$ 22y+4z=108 $$
|
[e]
|
150C [ 750
|
$$
150z=750 $$
|
[f]
|
O matemático português Pedro Nunes. |
Fragmento do "Libro de algebra en arithmetica y geometria", de Pedro Nunes. |
Vejamos os dois exemplos de soma de polinômios
no fragmento indicado na figura acima, tanto na linguagem de Nunes quanto na
notação algébrica moderna:
Aqui,
cifra é a antiga denominação em
português para o numeral zero! Em 1.572 é a vez de o italiano Rafael Bombelli
publicar sua obra, o L’Algebra opera,
onde inova na notação algébrica para descrever as incógnitas e suas respectivas
potências.
Exemplo desta
Regra
|
$$ 35.\tilde{p}.10.co.\tilde{p}.4.ce $$
$$ 40.\tilde{p}.12.co.\tilde{p}.7.ce $$
|
$$ 35+10x+4x^{2} $$
$$ 40+12x+7x^{2} $$
|
[a]
|
Soma
|
$$ 75.\tilde{p}.22.co.\tilde{p}.11.ce $$
|
$$ 75+22x+11x^{2} $$
|
|
Outro exemplo
|
$$ 30.\tilde{p}.15.co.\tilde{p}.2.ce.\tilde{m}.3.cu
$$
$$ 80.\tilde{m}.13.co.\tilde{m}.5.ce. .\tilde{m}.2.cu
$$
|
$$ 30+15x+2x^{2}-3x^{3} $$
$$ 80-13x-5x^{2}-2x^{3} $$
|
[b]
|
Soma
|
$$ 110.\tilde{p}.2.co.\tilde{m}.3.ce.\tilde{m}.5.cu.
$$
|
$$ 110+2x-3x^{2}-5x^{3} $$
|
Em [a] temos a soma de duas equações quadráticas em que
todos os termos são positivos; em [b] temos a soma de duas equações cúbicas em
que há termos positivos e negativos, aplicando-se neste caso a regra de sinais. O matemático usa as
letras p e m com um til para indicar, respectivamente, os sinais aritméticos
da soma e da subtração; co é a abreviação de coisa (o nosso x), ce é a abreviação de censo,
ou x2, e finalmente cu
é a abreviação de cubo, ou x3. Uma última observação
digna de nota deste fragmento pode ser vista na quarta e quinta linhas do texto
explicativo que Pedro Nunes faz para a soma de duas quantidades iguais, porém
com sinais opostos:
Y si fueren yguales, la suma sera una çifra.
Que em português se traduz por:
E se forem iguais, a soma será uma cifra.
Fragmento da obra L’Algebra opera, de Rafael Bombelli. |
A expressão matemática destacada pelo retângulo
vermelho é:
$$ \overset{2}{\hat{1}}.p.R.q.\overset{1}{\hat{8}}.p.\overset{1}{\hat{2}}.p.3.p.R.q.8.\ Eguale\ a\ 23.p.R.q.8. $$
Cuja notação, traduzida para a moderna, resulta:
$$ x^{2}+\sqrt{8x}+2x+3+\sqrt{8} $$
Observe esta simbologia:
$$ \overset{2}{\hat{1}} $$
Aqui, o número 1 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 2 corresponde à potência da incógnita, ou seja, trata-se de 1x2. Veja este outro exemplo:
$$ \overset{1}{\hat{8}} $$
Neste caso, o número 8 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 1 representa a potência desta incógnita, ou seja, trata-se de 8x. Semelhante à nomenclatura de Nunes, p corresponde ao sinal aritmético da soma, m corresponde ao sinal aritmético da subtração e R.q corresponde à raiz quadrada (quando Bombelli trabalha com raízes cúbicas, o símbolo muda para R.c). Em 1.585 outra obra matemática com uma notação algébrica peculiar é publicada: o L’arithmétique, do flamengo Simon Stevin, semelhante à adotada para potências em frações e devidamente descrita em outra obra de sua autoria nesse mesmo ano, o De Thiende, tema este já abordado no capítulo Os números racionais emnotação decimal, no terceiro volume desta série.
Nota-se nesta nomenclatura o uso consolidado dos sinais aritméticos da soma e da subtração, com a incógnita e suas potências representadas por números dentro de círculos. Porém, em 1.591 surgirá uma obra que mudará os rumos da matemática, pelas mãos do matemático e advogado francês Francisco Vieta (no original: François Viète), intitulada In Artem Analyticem Isagoge (Na arte analítica).
A arte analítica de Vieta compreendia três
etapas: a primeira, denominada zetética
– que se traduz por um método de investigação ou conjunto de preceitos para a
resolução de um problema, seja ele matemático ou geométrico – é transcrito
neste novo sistema simbólico ou semiótico, por Vieta designado logisticae speciosa (logística bela), na
forma de uma equação. A segunda etapa, denominada porística – que se traduz pelo problema que tem por solução uma
verdade que se tira do próprio enunciado – as equações previamente estruturadas
são transformadas de acordo com regras em formas canônicas. Finalmente, na
terceira etapa, denominada exegética
– que se traduz por um comentário ou dissertação para esclarecimento ou
minuciosa interpretação de um texto ou uma palavra – uma solução para o
problema é encontrada com base nas equações derivadas previamente das regras
canônicas. Como o próprio Vieta enfatiza, nesta terceira etapa o analista
torna-se o geômetra, “executando
uma verdadeira construção” ou o aritmético, “solucionando numericamente
qualquer potência [algébrica]”. Vieta ensinou sua arte em
oito ensaios publicados entre 1.591 e 1.631, agregando-os em um único volume, o
Opera Mathematicae (As Obras de
Matemática), em 1.646. Tanto na introdução do In Artem Analyticem, quanto na dedicatória que a precede, Vieta
destaca a estreita conexão entre a sua arte e os trabalhos gregos clássicos,
destacando-se o conceito do método analítico aplicado à geometria, como
delineado por Papus em seu sétimo livro da obra Coleção Matemática, o tratamento de problemas aritméticos estabelecido
por Diofanto, usando letras tanto para incógnitas quanto para suas potências,
em seu Aritmética, e ainda a teoria
geral de proposições de Eudoxo, como apresentado no Livro V do Elementos, de Euclides. Vieta visava
fornecer um método geral de solução tanto para os problemas aritméticos
abordados por Diofanto quanto para os problemas geométricos discutidos por Papus;
observe abaixo este fragmento do Opera
Mathematicae:
A logistice speciosa que Vieta introduz em
sua arte analítica faz uso de dois diferentes tipos de letras maiúsculas: vogais para incógnitas e consoantes para parâmetros conhecidos do
problema. Assim, o termo A
quad. corresponde ao nosso x2. O
termo B in A 2
pode ser traduzido como 2Bx,
onde B
assume um valor conhecido a priori. O termo æquari equivale ao sinal
aritmético de igualdade (=). Por fim, a consoante Z seguida da palavra indicativa da espécie (plano) possui função específica
na arte de Vieta: como exigido pela lei da homogeneidade, em que “termos
homogêneos devem ser comparados entre si”, a palavra serve para lembrar o
analista de que, se na última etapa de solução de um problema (exegética) ele
se tornar um geômetra, a consoante Z
deverá ser substituída pela magnitude
correta, o que significa dizer que somente uma figura plana (por exemplo: um quadrado, ou um triângulo) poderá
substituir plano;
de modo análogo, o parâmetro B
seria um comprimento. Por outro lado,
se o analista tornar-se um aritmético, qualquer número poderá substituir as
consoantes B e Z. Algebricamente falando, a
expressão de Vieta seria transcrita em notação moderna como:
$$ x^{2}+2Bx=Z $$
A diferença, para nós, é que não importa se a expressão algébrica acima estará lidando com geometria ou aritmética, pois ela se presta igualmente bem a ambas. Observe este outro exemplo:
Aqui,
temos a vogal A operando
como incógnita, as consoantes B, D e Z como valores conhecidos a
priori e, no geral, uma expressão cúbica, que em notação algébrica moderna
poderia ser transcrita como:
$$ x^{3}+3Bx^{2}+Dx=Z $$
“Durante
a noite tive três sonhos consecutivos, que julguei só poderem ter sido
inspirados por um poder superior. Tendo caído no sono, imaginei ter visto
fantasmas e fiquei aterrorizado por tais aparições. Vi-me andando através de
ruas, e fiquei tão horrorizado pelas visões que tive de me curvar para o lado
esquerdo para alcançar meu objetivo, pois sentia uma grande fraqueza do lado
direito, sendo incapaz de manter-me em pé. Envergonhado por ter de caminhar
dessa forma, fiz grande esforço para endireitar-me, mas fui apanhado violentamente
por um vento, como um redemoinho, que me fez girar três ou quatro vezes sobre
meu pé esquerdo. Não foi isso, no entanto, o que me assustou mais. Eu achava
tão difícil avançar que tinha medo de cair a cada passo até que, percebendo
abertos [os portões] de um colégio em meu caminho, entrei, procurando refúgio e
auxílio em minha aflição. Esforcei-me para alcançar a capela do colégio, onde
meu primeiro pensamento foi rezar; todavia, percebendo que havia passado por um
conhecido sem havê-lo cumprimentado desejei, por polidez, voltar para fazê-lo.
[Tentando fazê-lo, no entanto] fui atirado para trás com violência pelo vento,
que soprava através da igreja. No mesmo instante notei outro homem no pátio do
colégio, que me chamou delicadamente pelo meu nome e me informou que, se eu
estava à procura do Sr. N., ele tinha algo para mim. Tive a impressão de que
tal objeto seria um melão que havia sido trazido de algum país exótico. Grande
foi meu espanto quando reparei que o povo que havia se aglomerado em torno do
homem para conversar entre si era capaz de manter-se firmemente em pé enquanto
eu, no mesmo local, tinha que caminhar curvado e de modo irregular, ainda que o
vento, que havia ameaçado derrubar-me por várias vezes, tivesse enfraquecido
consideravelmente. Nesse ponto acordei, sentindo uma angústia definida. Eu
temia que ela fosse o efeito dos maus espíritos, determinados a desviar-me do
caminho. Imediatamente, deitei-me sobre meu lado direito, pois havia sido sobre
o lado esquerdo que havia adormecido e tido aquele sonho. Pedi a Deus que me
protegesse das consequências maléficas de meu sonho e me preservasse de todos
os infortúnios que pudessem ameaçar-me como punição para meus pecados. Reconhecia
que meus pecados eram repugnantes a ponto de atrair a ira dos céus, embora até
então, aos olhos dos homens, houvesse levado uma vida irreprochável. Permaneci
deitado por duas horas, ponderando sobre o problema do bem e do mal nesse
mundo, e então adormeci.
No
interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali.
Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a
olhar somente a parede do fundo da caverna, sem poder ver uns aos outros ou a
si próprios. Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, separada deles por uma
parede baixa, por detrás da qual passam pessoas carregando objetos que
representam "homens e outras coisas viventes". As pessoas caminham
por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim
os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás
deles e vêem apenas as sombras que são projetadas na parede em frente a eles.
Pelas paredes da caverna também ecoam os sons que vêm de fora, de modo que os
prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as
falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a
realidade. Imagine que um dos prisioneiros seja libertado e forçado a olhar o
fogo e os objetos que faziam as sombras (uma nova realidade, um conhecimento
novo). A luz iria ferir os seus olhos e ele não poderia ver bem. Se lhe
disserem que o presente era real e que as imagens que anteriormente via não o
eram, ele não acreditaria. Na sua confusão, o prisioneiro tentaria voltar para
a caverna, para aquilo a que estava acostumado e podia ver. Caso ele decida
voltar à caverna para revelar aos seus antigos companheiros a situação extremamente
enganosa em que se encontram, os seus olhos, agora acostumados à luz, ficariam
cegos devido à escuridão, assim como tinham ficado cegos com a luz. Os outros
prisioneiros, ao ver isto, concluiriam que sair da caverna tinha causado graves
danos ao companheiro e, por isso, não deveriam sair dali nunca. Se o pudessem
fazer, matariam quem tentasse tirá-los da caverna.
Platão não buscava as verdadeiras essências na
simples phýsis, como o fizeram Tales,
Anaximandro, Diógenes, Demócrito e seus seguidores. Sob a influência de Sócrates,
ele buscava a essência das coisas para além do mundo sensível. E o personagem
da caverna, que por acaso se liberte correrá, como Sócrates, o risco de ser
morto por expressar seu pensamento e em querer mostrar um mundo totalmente
diferente, de possibilidades muito mais amplas.
verdadeiro, esse pensamento não acrescenta nada de novo ou de útil sobre estes pássaros. Outra razão para Descartes rejeitar as formas substanciais e as causas finais para o estudo da phýsis era sua crença de que essas noções eram o resultado da confusão dos conceitos de corpo e de mente, aplicando-os na ação da gravidade sobre uma pedra para justificar o seu ponto de vista. Pelo pensamento escolástico, a razão de ser de uma pedra é a tendência de mover-se para o centro da Terra. Esta explicação implica em que a pedra tem conhecimento de sua razão de ser, do centro da Terra e de como chegar até lá. Mas como pode uma pedra saber alguma coisa, se ela não pensa? Assim, é um erro imputar propriedades mentais como o conhecimento a coisas puramente físicas e, para evitá-lo, imperioso se torna distinguir o conceito de mente do conceito de corpo. Descartes concluiu que a ciência e a filosofia escolásticas eram incapazes de descobrir o que quer que fosse de conhecimento científico novo ou útil. Assim, ao expulsar os princípios metafísicos das formas substanciais e das causas finais ao afirmar que “a dialética ordinária não serve para aqueles que desejam investigar a verdade das coisas”, Descartes abre caminho para uma nova metafísica, na qual a sua física mecanicista estava baseada e com a qual explicações mais prolíficas e claras poderiam ser obtidas acerca da phýsis.
$$ \overset{2}{\hat{1}}.p.R.q.\overset{1}{\hat{8}}.p.\overset{1}{\hat{2}}.p.3.p.R.q.8.\ Eguale\ a\ 23.p.R.q.8. $$
Cuja notação, traduzida para a moderna, resulta:
$$ x^{2}+\sqrt{8x}+2x+3+\sqrt{8} $$
Observe esta simbologia:
$$ \overset{2}{\hat{1}} $$
Aqui, o número 1 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 2 corresponde à potência da incógnita, ou seja, trata-se de 1x2. Veja este outro exemplo:
$$ \overset{1}{\hat{8}} $$
Neste caso, o número 8 representa o inteiro que é multiplicado pela incógnita. E o número 1 representa a potência desta incógnita, ou seja, trata-se de 8x. Semelhante à nomenclatura de Nunes, p corresponde ao sinal aritmético da soma, m corresponde ao sinal aritmético da subtração e R.q corresponde à raiz quadrada (quando Bombelli trabalha com raízes cúbicas, o símbolo muda para R.c). Em 1.585 outra obra matemática com uma notação algébrica peculiar é publicada: o L’arithmétique, do flamengo Simon Stevin, semelhante à adotada para potências em frações e devidamente descrita em outra obra de sua autoria nesse mesmo ano, o De Thiende, tema este já abordado no capítulo Os números racionais emnotação decimal, no terceiro volume desta série.
O matemático holandês Simon Stevin. |
Fragmento da obra L’arithmétique, de Simon Stevin. |
Na caixa marrom em destaque na figura anterior, temos:
$$ Ergo\ 1\circledast -6\circledcirc +12\odot -8,\ seront\ egales\ a\ 12\odot -392. $$
Que
traduzindo para a notação algébrica moderna, fica:
$$ x^{3}-6x^{2}+12x-8=12x+392 $$Nota-se nesta nomenclatura o uso consolidado dos sinais aritméticos da soma e da subtração, com a incógnita e suas potências representadas por números dentro de círculos. Porém, em 1.591 surgirá uma obra que mudará os rumos da matemática, pelas mãos do matemático e advogado francês Francisco Vieta (no original: François Viète), intitulada In Artem Analyticem Isagoge (Na arte analítica).
O matemático e advogado francês Francisco Vieta. |
Na primeira linha, temos a seguinte equação:
A quad. + B in A 2, æquari Z plano
$$ x^{2}+2Bx=Z $$
A diferença, para nós, é que não importa se a expressão algébrica acima estará lidando com geometria ou aritmética, pois ela se presta igualmente bem a ambas. Observe este outro exemplo:
Na primeira linha, temos a equação:
A cubus + B
in A quad.3 + D plano in A, æquari Z solido
$$ x^{3}+3Bx^{2}+Dx=Z $$
Mais uma vez, a logistice
speciosa de Vieta estabelece que, se o problema for geométrico, B
será um comprimento, D
será uma área e Z será um
volume; por outro lado, se o problema for aritmético, B, D
e Z
serão tão somente números. A logistice
speciosa, por assim dizer, não é uma linguagem matemática estritamente
falando, mas sim um cálculo não interpretado, uma ferramenta para encontrar respostas
onde nem os problemas nem suas soluções podem ser formulados. Vieta conclui seu
raciocínio afirmando que “A arte analítica reivindica para si mesma o maior
problema de todos, que é resolver qualquer problema”. Mas o
matemático que traria a semiótica matemática para um novo e superior patamar
foi o francês René Descartes, com sua obra Discours
de la méthode (Discurso sobre o método), publicado em 1.637 em conjunto com
outras três obras (A Dioptria, Os Meteoros e A Geometria), e cuja inspiração para elaborá-la teria tido início a
partir de certos fatos ocorridos em 10 de Novembro de 1.619, assim narrados por
Descartes:
O
matemático e filósofo francês René Descartes, considerado o pai da matemática
moderna.
|
Outro sonho se seguiu
imediatamente. Pensei ter ouvido um violento e penetrante estampido, que tomei
por um trovão. Fiquei tão aterrorizado que acordei na mesma hora. Ao abrir os
olhos, percebi uma profusão de centelhas ígneas espalhadas pelo quarto. Isso já
havia acontecido comigo antes, e não me era incomum que acordasse no meio da
noite para descobrir que minha visão era clara o bastante para permitir que
percebesse objetos próximos. Dessa vez, contudo, decidi recorrer a explicações
tiradas da filosofia e, abrindo e fechando os olhos e observando a natureza dos
objetos que enxergava, cheguei a conclusões favoráveis, que pareceram convencer
minha mente. Assim meu medo desapareceu, e com uma mente tranquila novamente caí
no sono.
Pouco depois tive um terceiro sonho,
que não foi tão terrível quanto os anteriores. Nesse último sonho, encontrei um
livro em minha mesa, não sabendo que o havia depositado. Abri e alegrei-me ao
ver que era um dicionário, esperando que me fosse bastante útil. No mesmo
instante, outro livro apareceu, tão novo para mim quanto o primeiro, e de
origem igualmente desconhecida. Notei que era uma coleção de poemas de
diferentes autores, intitulado Corpus latinorum. Fiquei curioso para saber o conteúdo,
e ao abrir o livro meus olhos caíram sobre a linha “Quod vitae sectabor iter?”
(Que caminho seguirei eu na vida?). Ao mesmo tempo, vi um homem a quem não
conhecia, que me mostrou um poema começando com as palavras “Est et non” (Sim e
não), exaltando sua excelência. Respondi que conhecia o poema, que estava entre
os idílios de Ausônio [poeta e político romano], e estava incluído na grande
coletânea que estava sobre a mesa. Quis mostrá-lo ao homem e comecei a virar as
páginas, gabando-me de conhecer-lhes perfeitamente a ordem e o arranjo.
Enquanto procurava, o homem perguntou-me onde havia conseguido o livro. Respondi
que não seria capaz de dizer onde o havia conseguido mas que, um segundo antes,
tivera outro livro em minhas mãos, que acabara de desaparecer, sem que soubesse
quem o havia trazido ou levado embora. Mal terminara de falar quando o livro
reapareceu no outro lado da mesa. Verifiquei, no entanto, que o dicionário não
mais estava completo, embora antes parecesse sê-lo. Enquanto isso, encontrei
Ausônio na antologia de poetas; mas, sendo incapaz de encontrar o poema começando
por “Est et non”, disse ao homem que conhecia um poema ainda mais bonito do mesmo
autor, começando por “Quod vitae sectabor iter?”. O homem pediu-me para vê-lo,
e eu estava diligentemente procurando por ele quando me deparei com alguns
pequenos retratos de gravuras em cobre que me fizeram maravilhar-me ante a
beleza do livro; todavia, não era a mesma edição que eu conhecia. Nesse ponto,
homem e livros desapareceram e sumiram dos olhos de minha mente, mas não
despertei. O mais notável é que, em dúvida se essa experiência tinha sido um
sonho ou uma visão, não somente decidira, ainda adormecido, que se tratava de
um sonho, como também o interpretara antes de acordar. Concluí que o dicionário
significava a conexão entre todas as ciências e que toda a coleção intitulada Corpus
Poetarum apontava particular e claramente para a íntima união entre filosofia e
sabedoria, pois pensei não haver surpresa na descoberta de que os poetas, mesmo
aqueles cuja obra parece ser um tolo passatempo, produzem pensamentos muito
mais profundos, sensatos e melhor expressos do que os encontrados nos escritos
dos filósofos. Atribuí essa maravilha à divina qualidade do entusiasmo e ao
poder da imaginação, que permite à semente da sabedoria (existente nas mentes
de todos os homens como as centelhas de fogo na pederneira) germinar muito mais
facilmente e mesmo com maior esplendor do que a “razão” dos filósofos. Prosseguindo
com a interpretação em meu sono, concluí que o poema sobre “que caminho
seguirei eu na vida”, começando com “Quod vitae sectabor iter”, apontava para o
sólido conselho de um sábio, ou mesmo para a Teologia Moral. Ainda em dúvida
sobre se estava dormindo ou meditando, acordei pacificamente e com os olhos
abertos continuei a interpretar meu sonho, dentro do mesmo espírito. Os poetas
representados na coleção de poemas interpretei como a revelação e o entusiasmo
que me haviam sido concedidos. O poema “Est et non” que é o “Sim e não” de
Pitágoras, entendi como sendo a verdade e o erro de todo conhecimento humano e
da ciência profana. Quando vi que todas estavam tão satisfatoriamente se conformando
aos meus desejos, ousei acreditar que era o espírito da verdade que desejava,
através desse sonho, revelar-me os tesouros de todas as ciências. Nada mais
havia a ser explicado a não ser os pequenos retratos em cobre que encontrara no
segundo livro, os quais não mais procurei elucidar depois de receber, no dia
seguinte, a visita de um pintor italiano.”
O caminho filosófico percorrido por Descartes é longo e
inicia-se, simbolicamente, com os filósofos gregos pré-socráticos, assim denominados
naturalistas ou filósofos da
natureza, pois buscavam o princípio das coisas (arché) nas manifestações físicas (phýsis) como realidade primeira, originária e fundamental. Ao
observarem que a aparência (phainômena)
das coisas mudava, ao se questionarem sobre
o que a coisa que muda realmente é, concluíram que seria a substância: o princípio das coisas que
permanece imutável, mesmo na mudança, aquilo que realmente existe. Faziam parte
desse grupo:
ü
Tales de Mileto, para quem o arché seria a água;
ü
Anaximandro de Mileto, discípulo e sucessor de
Tales, para quem nosso mundo seria apenas um entre uma infinidade de mundos que
evoluíam e se dissolviam em algo que ele denominava ilimitado ou infinito (e
cujo elemento básico, portanto, talvez não fosse algo tão simples quanto a
água);
ü
Diógenes de Apolônia, para quem o único princípio
primordial seria o ar, buscando explicar os mais variados fenômenos a partir dele;
ü
Demócrito de Abdera, que acreditava que todas as
coisas seriam formadas por uma infinidade de "pedrinhas minúsculas,
invisíveis, cada uma delas sendo eterna, imutável e indivisível",
às quais denominava átomos;
ü
Parmênides de Eléia, para quem “nada
nasce do nada e nada do que existe se transforma em nada” e que
as transformações que se podiam observar na natureza não seriam mudanças reais,
mas aparentes;
ü
Entre outros filósofos, tais como: Anaxímenes de
Mileto, Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento e Xenófanes de Colófon.
Para este grupo, a apreensão, o estudo e o entendimento do
princípio das coisas fiavam-se nos sentidos,
exceção feita a Parmênides, que passou a confiar mais na razão como fonte primária de nosso conhecimento do mundo, dando
origem aos racionalistas. Uma ruptura
com este viés filosófico surge com Platão, discípulo de Sócrates, para quem o númeno (ou realidade superior), que é
abstrato, não material – porém substancial – eterno e imutável, é que seria
dotado do maior grau de realidade e não o mundo material, mutável, conhecido
por nós através das sensações.
Haveria assim um mundo das idéias,
que conteria a forma pura e essencial de todas as coisas do mundo material, dos
objetos comuns (coisas ou seres), que herdam os atributos – forma e essência –
de modo rudimentar e inferior; segundo esse princípio, somente o estudo das
formas no mundo das idéias (residindo no mundo inteligível, fora do tempo e do
espaço e não no mundo sensível ou material) levaria o indivíduo ao conhecimento
verdadeiro. Para ilustrar alguém que alcance a luz da verdade através do
conhecimento, libertando-se da escuridão da ignorância em que se encontra
aprisionado, Platão faz uso da alegoria
da caverna, descrito no Livro VII de sua obra A República, assim descrita:
O mito da caverna, de Platão. |
Os conceitos de Platão sobre a essência das coisas será
contestado por seu notório discípulo, Aristóteles, através de uma série de
tratados escritos no século IV a.C. e organizados em quatorze livros pelo filósofo
grego Andrônico de Rodes no século I a.C. Foi Andrônico, inclusive, quem chamou
esse conjunto de Metafísica.
Aristóteles desenvolve um trabalho que busca conciliar a substância física dos
naturalistas pré-socráticos com a substância imaterial de Platão, ao propor que
a matéria participa da substância, do mesmo modo que a madeira necessita da forma mesa
para que a forma substancial mesa
(composição de matéria e forma) possa existir. Por outro lado, a forma
substancial não esgota em si a substância; por exemplo, mesmo que o objeto mesa
deixe de existir, persistirá sua idéia, o que permite que existam ou que se
façam outras mesas; o conceito está descrito abaixo:
Daí, ao
definir a natureza de uma casa, os que a descrevem como pedras, tijolos e
madeira, descrevem a casa em potência, já que essas coisas são sua matéria; os
que a descrevem como “recipientes para conter utensílios e corpos”, ou alguma
outra coisa, com idêntico objetivo, descrevem a casa em ato, ou seja, sua
realidade. Entretanto, os que combinam essas duas definições, descrevem um
terceiro tipo de substância, a que é composta de matéria e forma.
Uma forma substancial estaria assentada em quatro causas primárias:
ü
Causa material: a matéria de que uma coisa é
feita, ou seja, a matéria na qual consiste a forma substancial. No exemplo da
casa, a matéria de que é feita são pedras, tijolos e madeira;
ü
Causa formal: é a forma da coisa, ou seja, uma
forma substancial define sua essência pela sua forma. A casa em si define sua
forma;
ü
Causa eficiente: é a origem da coisa, aquilo ou
aquele que tornou possível a forma substancial. A construção da casa é o que a
torna possível;
ü
Causa final: é a razão de uma coisa existir, a
finalidade da forma substancial. A finalidade da casa é servir de recipiente
para conter utensílios e corpos.
Para Aristóteles, na natureza todas as formas substanciais
movem-se em direção a um fim, tenham disso ciência ou não; seguindo essa linha
de raciocínio, quando uma flecha é arremessada contra um alvo, o alvo torna-se
a causa final da flecha. Muito embora a flecha não conheça a causa final, um agente inteligente
dotado de vontade a conhece, tornando-se por isso mesmo a causa eficiente do arremesso da flecha. Por toda a idade média, as
hermenêuticas platônica e aristotélica formaram a base dos estudos científicos e
principalmente religiosos, destacando-se a metafísica
patrística (dominante entre os séculos II e VIII d.C.) tendo como principal
influência o conjunto da obra de Santo Agostinho – de viés platônico – e uma
segunda fase, com a metafísica
escolástica (dominante entre os séculos IX e XV d.C.) tendo como principal
influência o conjunto da obra de Tomás de Aquino – de viés aristotélico – em
que ambas buscavam provar filosoficamente a existência de Deus. Portanto, é no
final do período da ainda vigorosa metafísica
escolástica que Descartes apresenta sua obra científico-filosófica, fazendo
forte oposição ao pensamento aristotélico em dois pontos fundamentais:
ü
Rejeição às formas substanciais como princípios
interpretativos na física;
ü
Negação da tese de que todo o conhecimento deve
provir da sensação.
Uma forma substancial era pensada como um princípio imaterial da organização material, resultando em uma coisa específica de um determinado tipo. Considere, por exemplo, o
pássaro denominado andorinha: o princípio imaterial, ou idéia, do ser andorinha une-se ao princípio material de modo a organizá-la, pela causa eficiente, para ser a coisa do tipo andorinha. Quaisquer que sejam os atributos que uma andorinha tenha em virtude de ser esse tipo de coisa são explicados pela causa final ou razão de ser de uma andorinha. Assim, poder-se-ia afirmar que a razão de ser de uma andorinha é a causa última que lhe dá a habilidade de voar, o que significa que uma andorinha voa pelo fato de ser uma andorinha; ainda que isto sejaverdadeiro, esse pensamento não acrescenta nada de novo ou de útil sobre estes pássaros. Outra razão para Descartes rejeitar as formas substanciais e as causas finais para o estudo da phýsis era sua crença de que essas noções eram o resultado da confusão dos conceitos de corpo e de mente, aplicando-os na ação da gravidade sobre uma pedra para justificar o seu ponto de vista. Pelo pensamento escolástico, a razão de ser de uma pedra é a tendência de mover-se para o centro da Terra. Esta explicação implica em que a pedra tem conhecimento de sua razão de ser, do centro da Terra e de como chegar até lá. Mas como pode uma pedra saber alguma coisa, se ela não pensa? Assim, é um erro imputar propriedades mentais como o conhecimento a coisas puramente físicas e, para evitá-lo, imperioso se torna distinguir o conceito de mente do conceito de corpo. Descartes concluiu que a ciência e a filosofia escolásticas eram incapazes de descobrir o que quer que fosse de conhecimento científico novo ou útil. Assim, ao expulsar os princípios metafísicos das formas substanciais e das causas finais ao afirmar que “a dialética ordinária não serve para aqueles que desejam investigar a verdade das coisas”, Descartes abre caminho para uma nova metafísica, na qual a sua física mecanicista estava baseada e com a qual explicações mais prolíficas e claras poderiam ser obtidas acerca da phýsis.
A
obra O Discurso do método está
dividida em seis partes, onde Descartes elege a autoridade da razão como fio condutor para uma busca pela
compreensão das leis naturais. Na primeira parte, Descartes apresenta o método
que desenvolveu e que seguia para conduzir o indíviduo àquilo que era
verdadeiro, ressalvando não ser sua intenção apresentar um método que cada qual
devesse adotar para bem conduzir sua razão, mas tão somente mostrar de que
maneira ele próprio havia se esforçado para conduzir a sua. Na segunda parte, Descartes
apresenta quatro preceitos lógicos, necessários no seu entender para discernir
entre o verdadeiro e o falso, a saber:
1. Receber escrupulosamente as
informações, examinando sua racionalidade e sua justificação. Verificar a
verdade, a boa procedência daquilo que se investiga aceitando apenas o que seja
indubitável[1];
2. Análise ou divisão do
assunto em tantas partes quantas forem possíveis ou necessárias;
3. Síntese ou elaboração
progressiva de conclusões abrangentes e ordenadas a partir de objetos mais
simples e fáceis até os mais complexos e difíceis;
4. Enumerar e revisar
minuciosamente as conclusões, garantindo que nada seja omitido e que a
coerência geral exista.
[1] Este preceito de Descartes relaciona-se muito ao ceticismo filosófico grego, doutrina que tem como maior expoente o filósofo e médico greco-romano Sextus Empiricus, que viveu entre os séculos II e III d.C. Sextus define o ceticismo como “a faculdade de opor de todas as maneiras possíveis os fenômenos e os númenos, para daí chegarmos, pelo equilíbrio das coisas e das razões opostas, primeiro à suspensão do julgamento (epokhé, ou seja, a atitude de não aceitar nem julgar uma determinada posição ou juízo) e, depois, à indiferença (ataraxia, ou seja, ausência de inquietude ou preocupação, tranquilidade de ânimo). Segundo este filósofo, as coisas existem, porém só o que podemos saber e dizer delas é de que maneira nos afetam – e não o que são em si mesmas.
Na
terceira parte desta obra, Descartes estabelece para si mesmo as máximas morais
que deve perseguir:
1. Obedecer às leis e aos
costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu
a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me em tudo o mais;
2. Ser o mais firme e o mais
resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que
se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse
decidido a tanto;
3. Procurar sempre antes
vencer a mim próprio do que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do
que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que
esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos;
4. Passar em revista as
diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a
melhor.
Na quarta parte do Discurso, Descartes tenta provar a
existência de Deus, fazendo a seguinte análise:
"Julguei necessário fazer o
contrário (do que fiz em relação à moral) e rejeitar, como absolutamente falso,
tudo o que pudesse ser objeto da menor dúvida, a fim de verificar se, depois
disso, não me restava, em minha certeza, alguma coisa totalmente indubitável.
Ao pensar que tudo era falso, era necessário que, eu que pensava, fosse alguma
coisa; e observando que essa verdade: "Cogito, ergo sum" (ou seja,
"Penso, logo sou") era tão firme e tão certa, de modo que todas as
mais extravagantes suposições dos céticos já não eram capazes de abalá-la,
julguei que poderia recebê-la como o primeiro princípio da filosofia que eu
procurava. Percebi, então, que era uma substância cuja essência, ou natureza,
consiste em pensar e que para ser não precisa de lugar algum, nem depende de
coisa alguma material. Em consequência, o eu, a alma, que permite ao filósofo
ser o que é (um pensador), é inteiramente distinta do corpo, cujo conhecimento
é mais fácil que o do corpo, pois mesmo que deixasse de existir, a alma não
deixaria de ser o que é. Assim como o mais perfeito não pode ser consequência
do menos perfeito, e, nada poder provir, tal idéia, do ser perfeito, ou da
perfeição do ser, só pode ter sido posta em nós por uma natureza mais perfeita
do que a nossa, e que inclui todas as perfeições, quer dizer, Deus".
Na
quinta parte, Descartes apresenta algumas aplicações do seu método a questões
físicas e outras relativas à medicina, onde faz uma minuciosa descrição do
coração e da circulação do sangue no corpo humano. Finalmente, na sexta parte o
filósofo francês explica as razões que o levaram a escrever este tratado e
aquilo que ele acredita ser essencial para o progresso do conhecimento. Os três
volumes seguintes ao Discurso do método
(Dioptria, Meteoros e Geometria) são denominados ensaios, aos quais aplica o
seu método mecanicista ou cartesiano. Observe a semiótica algébrica de Descartes na
figura abaixo (constante do volume Geometria), em que a representação
geométrica entre segmentos de linha forma uma expressão alternativa às expressões
simbólicas de soma, diferença, produto, divisão e raiz quadrada:
Fragmento do ensaio Geometria, de Descartes. |
Neste exemplo, Descartes constrói
geometricamente as raízes positivas da expressão quadrática (destacada em
azul), replicada abaixo em notação moderna:
$$ z^{2}=az+b^{2} $$
Para encontrar a raiz desta equação, ele
constrói o triângulo NLM, onde LM equivale a b e LN equivale a 1/2a. Desenhando-se um círculo cujo
raio seja igual a LN e estendendo-se
o segmento MN até que alcance a
circunferência em O, temos que o
segmento NO é igual ao segmento LN, com o segmento OM sendo a incógnita z. Aplicando agora a seguinte proporção:
$$ \frac{OM}{LM}=\frac{LM}{PM} $$
Obtemos:
$$ OM\times PM=LM^{2} $$
Observe que:
$$ OM=z $$
$$ LM^{2}=b^{2} $$
$$ PM=\left ( OM-OP \right )=\left ( OM-2\times NO \right )=\left ( OM-2\times LN \right )=\left ( z-2\times \frac{1}{2}a \right ) $$
$$ PM=\left ( z-a \right ) $$
Logo:
$$ OM\times PM=LM^{2} $$
$$ z\times \left ( z-a \right )=b^{2} $$
$$ z^{2}-az=b^{2} $$
Portanto:
$$ z^{2}=az+b^{2} $$
Um olhar mais atento permite identificar um
fácil intercâmbio entre as semióticas matemáticas de Vieta e Descartes; porém,
enquanto para Vieta a linguagem simbólica (sua logistice speciosa) é entendida como um cálculo não interpretado,
uma linguagem formal vazia cujos símbolos manipulam-se de acordo com regras
previamente declaradas que podem ser interpretadas tanto geométrica quanto
aritmeticamente, em Descartes a linguagem simbólica, algébrica, é totalmente
significativa, ao representar integralmente um ente geométrico. Observe a
seguir outro exemplo da obra Geometria
de Descartes, em que uma construção geométrica equivale a uma equação algébrica
e a semiótica adotada, semelhante à atual:
Fragmento do ensaio A Geometria. |
Na primeira linha do texto encontramos a
seguinte equação:
$$ x\propto \sqrt{-\frac{1}{2}a+\sqrt{\frac{1}{4}aa+bb}} $$
Que pode ser representada atualmente como:
$$ x=\sqrt{-\frac{1}{2}a+\sqrt{\frac{1}{4}a^{2}+b^{2}}} $$
Ou ainda o uso de expoentes para as potências
das incógnitas, como se pode observar na terceira linha do texto reproduzido
abaixo:
$$ z^{2}\propto az-bb $$
Representado atualmente pela expressão algébrica:
$$ z^{2}=az-b^{2} $$
Note que Descartes faz o uso das letras x, y
e z para definir suas incógnitas (destacado
em amarelo, abaixo), tal como nos ensinam na escola até hoje:
Outro fragmento do ensaio A Geometria. |
Dada a clareza e significância do simbolismo
matemático de Descartes, e os princípios que nortearam sua busca pela verdade,
todo este arcabouço acabou por tornar-se, pouco a pouco, num padrão, difundindo-se
por toda a comunidade matemática, o que facilitou a comunicação e a troca de
conhecimentos entre os matemáticos.
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