Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

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sexta-feira, março 03, 2017

Os números negativos

Lente positiva ou convergente, ou simplesmente "lente convexa". Observe que os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, unem-se à direita no chamado "ponto focal".

Lente negativa ou divergente, ou simplesmente "lente côncava". Neste caso os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, espalham-se à direita, sem a ocorrência do "ponto focal".
O que eles são? De onde vieram? Os números negativos possuem uma história mais peculiar do que nossa vã filosofia poderia imaginar (diria o poeta), e sua natureza provocou as mentes de muitos matemáticos; porém, tanto babilônios quanto egípcios ignoraram sua existência, porque a matemática dessas civilizações estava toda voltada à solução de problemas práticos do dia-a-dia: produção de alimentos e criação de animais, fabricação de tijolos e artefatos cerâmicos, construção de edifícios e monumentos, cobranças de impostos, enfim, uma matemática concreta e positiva para problemas relativos à sobrevivência e manutenção daquelas sociedades primevas. Para os gregos, a situação não foi muito diferente: entre os pitagóricos, no século V a.C., os mathématikoi definiam um ponto – que chamavam de mônada e que representava o número 1 – e desenhavam um círculo ao redor dele. É Platão quem resume a fórmula pitagórica: “a divindade geometriza”, ou seja, a partir do ponto uma radiação igual em todas as direções se inicia, estabelecendo uma circunferência ou esfera dentro do qual todas as atividades do ponto estão confinadas, daí porque consideravam também que o círculo era o pai de todas as formas geométricas e que a partir desta unidade a geometria do universo emergiu, de modo que dela surgiu a multiplicidade e que o 'um' evoluiu para 'muitos'. Este sistema é mais conhecido como 'doutrina das emanações', mas Pitágoras a denominava ciência dos números. Observa-se que os números negativos não são mencionados nem encontram espaço nessa estrutura filosófica.

Representação pitagórica da mônada

Cosmogonia segundo a visão medieval; observa-se claramente a influência pitagórica da mônada representando a criação do universo por mãos divinas. Essa iluminura, datada de 1.230 d.C.  abre o capítulo das subtrações.

Imagem do mapeamento em micro-ondas do universo conhecido, através de um sistema de sensoriamento térmico da energia remanescente de fundo, ou ruído térmico de fundo. O big bang, ou a grande explosão, é uma teoria segundo a qual o universo surgiu há pelo menos 13,7 bilhões de anos a partir de um estado inicial de temperatura e densidade altamente elevadas. Impressionante semelhança com a mônada dos pitagóricos.

Com o 'surgimento' dos números irracionais, protagonizado pelo desabonado Hipaso de Metaponto e o abalo profundo que provocaram na doutrina pitagórica, Eudoxo de Cnido estabelece no século IV a.C. a diferenciação entre números (ou seja, os números naturais) e magnitudes (entes geométricos que são divisíveis em divisíveis que são infinitamente divisíveis), como citado por Aristóteles em sua obra Física, sem entretanto dar indicações do conceito de números negativos ou de magnitudes negativas. Esta situação persiste com Euclides no século III a.C. em seu Elementos, onde o grego continua com a distinção entre número e magnitude estabelecida por Eudoxo-Aristóteles, mas ainda sem nenhuma indicação dos números negativos. A situação começa a mudar somente no período entre 100 a.C. e 50 d.C. no império chinês, com o livro Jiuzhang Suanshu (ou "Nove capítulos na arte matemática"). Ao contrário do Elementos de Euclides, a obra chinesa aborda diversos problemas práticos do mundo real e os respectivos algoritmos para resolvê-los, sem nenhuma indicação de provas. Desde essa época, o Nove Capítulos teve uma longa história de altos e baixos, sendo requisitado para exames em serviços civis ou sendo queimado e quase perdido. No primeiro milênio a.C. a aritmética chinesa passou a ser realizada por meio de varetas de contagem (ou numerais de varas), que eram dispostas em linhas e faziam uso de um sistema de notação decimal.

Ilustração japonesa mostrando um indivíduo ajoelhado à esquerda, fazendo contas em um tabuleiro quadriculado contendo numerais de varas.
É no oitavo capítulo da obra matemática chinesa que os números negativos aparecem e são extensivamente utilizados. Existem comentários de um matemático de nome Liu, onde afirma que varetas vermelhas ou hastes verticais são utilizadas para números positivos, que ele denomina 'ganhos' (zheng) e varetas pretas ou hastes oblíquas para números negativos, às quais denomina 'perdas' (fu). Afirma ainda que “varetas de contagem vermelhas e pretas são utilizadas para cancelarem umas às outras”. O mais curioso nessa obra está associada à descrição da regra de sinais:

Sinais iguais subtraem; sinais opostos somam; positivo sem extra faz negativo; negativo sem extra faz positivo.
Sinais opostos subtraem; sinais iguais somam; positivo sem extra faz positivo; negativo sem extra faz negativo.

Apesar da linguagem truncada para os nossos dias, a regra de sinais evidencia que os números negativos foram analisados e tratados corretamente tão logo surgiram, presumivelmente pela primeira vez na China e no mundo. No ocidente, a primeira ocorrência dos números negativos aparece na obra Arithmetica, do matemático grego Diofanto de Alexandria no século III d.C., mas de uma forma não muito bem vista por ele. O número negativo surge no seguinte problema (em notação moderna):

$$ 4\blacksquare +20=0 $$

Para manter a igualdade e descobrir qual o valor contido na cartela preta, começamos por subtrair 20 de ambos os lados da igualdade:

$$ 4\blacksquare +20-20=0-20 $$

Resultando:

$$ 4\blacksquare=-20 $$

Finalmente, dividindo ambos os lados da igualdade por 4, vem:

$$ \frac{4\blacksquare }{4}=\frac{-20}{4} $$
$$ \blacksquare=-5 $$

O resultado negativo (-5) para a cartela preta é considerado um absurdo para Diofanto, o que indica que ele provavelmente não tinha o conceito da noção abstrata de um número negativo. Voltemos nossos olhos e mentes novamente para o oriente, agora para os hindus; nesta civilização, os números negativos aparecem abundantemente na obra Arthashastra, um verdadeiro manual de governança de Estado, escrita no século IV a.C. e de autoria do estudioso hindu Cautília. O Arthashastra cobre com detalhes surpreendentes cada aspecto da criação e gestão de um reino, com tópicos sobre mineração, agricultura, pecuária, medicina e o uso de animais selvagens, incluindo o manuseio de uma floresta para elefantes!


Duas folhas originais do manuscrito hindu Arthashastra
O Arthashastra trata também de assuntos sobre bem-estar (por exemplo, a redistribuição de riquezas durante uma fome) e ética coletiva para a manutenção de uma sociedade unida. No aspecto matemático, porém, o manuscrito chama a atenção no livro II, capítulos VI e seguintes, em que Cautília detalha um sistema completo de contabilidade: ele tem um livro razão para as rendas com datas, horários, pagadores, categorias, etc. e um livro razão para as despesas e, finalmente, um terceiro livro para os balanços ou saldos. Há seções sobre auditoria, seguro contra roubo, devedores, empréstimos, hipotecas, etc. e questões de contabilidade mais sutis, tais como recebimentos atuais versus recebimentos diferidos, como contabilizar mudanças de preços de itens em estoque, custos fixos versus custos variáveis. Embora ele não use números negativos explicitamente, Cautília está claramente consciente de que a contabilidade às vezes deve mostrar um prejuízo e que as pessoas podem ter um patrimônio líquido negativo. Se os números negativos não aparecem explicitamente no Arthashastra, o mesmo não se pode dizer com o Brahmasphutasiddhanta, do matemático e astrônomo hindu Brahmagupta, escrito em 628 d.C. Este manuscrito inclui dois capítulos que são um compêndio de técnicas e conceitos matemáticos desenvolvidos ao longo dos séculos que o antecederam. Neles, encontramos as regras corretas para a aritmética com números negativos; também encontramos referências que tratam os números positivos como 'fortunas' e números negativos como 'débitos'. Abaixo, alguns versos contendo a regra de sinais e de como multiplicar números negativos:

[A soma] de dois positivos é positiva, de dois negativos, negativa; de um positivo e um negativo [a soma] é sua diferença; se forem iguais, a soma é zero. A soma de um negativo e zero é negativa, de um positivo e zero, positiva, e de dois zeros, zero.

[Se] um menor [positivo] for subtraído de outro maior positivo, [o resultado] é positivo; [se] um menor negativo de outro maior negativo, [o resultado] é negativo; [se] um maior de outro menor, sua diferença será revertida – negativo torna-se positivo e positivo torna-se negativo.

[...]
O produto de um positivo e um negativo é negativo, de dois negativos, positivo; e de positivos, positivo; o produto de zero e um negativo, de zero e um positivo, ou de dois zeros, é zero. Um positivo dividido por um positivo e negativo dividido por um negativo é positivo; zero dividido por zero é zero; um positivo dividido por um negativo é negativo; um negativo dividido por um positivo é negativo.

Capítulo 18, versos 30–34

A única falha é a afirmativa de que zero dividido por zero é zero, um assunto já tratado no capítulo sobre operações aritméticas com frações, no segundo livro desta série; as demais assertivas de Brahmagupta estão todas corretas.


Selo soviético comemorativo aos 1.200 anos de nascimento do matemático Al-Khwarizmi, lançado em 1983.
Aliás, o Brahmasphutsiddhanta influenciaria, cerca de duzentos anos depois, outra obra que mudaria a matemática para sempre: o Al-kitab al-mukhtasar fi hisab al-jabr wal-muqabala, ou "Compêndio de cálculo por restauração e balanceamento", de autoria de Al-Khwarizmi (780 d.C. a 850 d.C.) sob o patrocínio do califa Al-Mamun, a quem o matemático tece o seguinte elogio:

"Esse carinho pela ciência... essa afabilidade e condescendência que ele [o califa] mostra aos sábios... encorajou-me a compor uma pequena obra de cálculo por restauração [al-jabr] e balanceamento [muqabala]... já que os homens constantemente o exigem em casos de herança, legados, partições, processos judiciais e comércio."

O termo al-jabr deu origem nada menos que à palavra portuguesa álgebra. Nesta obra, o autor reconhece que suas idéias são baseadas no trabalho de Brahmagupta e, portanto, ele estava familiarizado com os números negativos. Porém, seus modelos geométricos, todos eles baseados nos trabalhos de matemáticos gregos, o convenceram de que os resultados negativos não tinham sentido, questionando: "como se poderia obter um quadrado negativo"? Curiosamente, em outro tratado de sua autoria em legislação sobre heranças, Al-Khwarizmi representa quantidades negativas como débitos. A primeira ocorrência do uso explícito de números negativos em textos do mundo islâmico medieval é atribuído ao matemático e astrônomo Abu al-Wafa (940 d.C. a 998 d.C.), em sua obra: Kitab fi ma yahtaj ilayh al-kuttab wa l-ummal min ilm al-hisab, ou "Livro daquilo que é necessário da ciência aritmética para escribas e negociantes".


Representação alegórica de Abu al-Wafa

Nela, al-Wafa apresenta uma regra geral e demonstra um caso especial onde a subtração de 5 por 3 fornece um 'débito' de 2. Em seguida, multiplica o resultado por 10 para obter um novo 'débito' de 20, que adicionado a uma 'fortuna' de 35 resulta 15. Aliás, o famoso livro Almagesto, um influente tratado medieval de astronomia, escrito pelo matemático grego Ptolomeu, foi traduzido para o árabe por al-Wafa. Por fim, é digno de menção outro matemático e astrônomo árabe: Al-Samawal (1.130 d.C. a 1.180 d.C.), que em sua obra Al-bahir fil-jabr, ou "O brilhante em álgebra", estabelece algumas regras de sinais:


Se subtrairmos um número positivo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém negativo; e se subtrairmos um número negativo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém positivo; o produto de um número negativo por um número positivo é negativo, e por um número negativo é positivo.


A justificativa para a regra de sinais da multiplicação, quando havia alguma, era sempre de caráter geométrico. Porém, a primeira prova no ocidente baseada na lei distributiva da aritmética para a regra de sinais aparece no trabalho do algebrista italiano maestro Dardi de Pisa, por volta de 1.380 em sua obra Aliabraa argibra, cuja prova é reproduzida a seguir. Dado um retângulo medindo 20 de largura por 10 de altura, cuja área é igual a 200:



Reduz-se suas medidas respectivamente de 3 unidades na largura e 2 unidades na altura, obtendo-se:



Pergunta: qual a nova área (em azul) após a redução nas medidas do retângulo laranja? Ora, como sabemos que a área de um retângulo é a multiplicação de sua base (ou largura) por sua altura, temos:

$$ Area=largura\times altura=17\times 8=136 $$

Mas, e se quiséssemos obter a área a partir das medidas originais subtraídas? Não há dúvida de que uma área igual a 136 tem de ser alcançada. Assim:

$$ Area=largura\times altura=\left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=136 $$

Para que a multiplicação de (20 – 3) por (10 – 2) resulte 136, aplica-se a lei distributiva da aritmética, em que todos os termos multiplicam-se uns aos outros, somando-se os resultados parciais. Logo:

$$ \left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=\left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right ) $$

As multiplicações à direita da igualdade devem, somadas, valer 136:

$$ \left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right )=136 $$

Bom, agora com o auxílio da geometria, temos a seguinte situação: o primeiro termo da multiplicação (20 × 10) corresponde à área original do retângulo laranja.



Os dois termos são positivos e o resultado da multiplicação também é positivo:

$$ \left ( 20\times 10 \right )=200 $$

Daí deriva a primeira regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número positivo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: mais com mais dá mais.


O segundo termo (20 × –2) corresponde à faixa laranja horizontal, que deve ser subtraída da área original:



Logo, seu resultado deve ser negativo:

$$ \left ( 20\times -2 \right )=-40 $$

Neste caso, o primeiro termo é positivo e o segundo termo, negativo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa horizontal laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a segunda regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número negativo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: mais com menos dá menos.


O terceiro termo (–3 × 10) corresponde à faixa laranja vertical, que também deve ser subtraída da área original:


Logo, seu resultado também deve ser negativo:

$$ \left ( -3\times 10 \right )=-30 $$

Neste caso, o primeiro termo é negativo e o segundo termo, positivo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa vertical laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a terceira regra de sinais da multiplicação:

Um número negativo multiplicado por outro número positivo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: menos com mais dá menos.


Bom, até aqui temos o seguinte resultado parcial para o cálculo da área do retângulo azul:

$$ 200-40-30=200-70=130 $$

Opa! Temos um problema: descontadas as áreas das faixas laranja horizontal e vertical, a área restante é menor em 6 unidades que a área do retângulo azul. Mas temos ainda uma última multiplicação a ser analisada:

$$ \left ( -3\times -2 \right ) $$

Se temos que somar 6 unidades para obter o valor correto da área do retângulo azul (de 130 para 136), o resultado dessa multiplicação tem de ser positivo:

$$ \left ( -3\times -2 \right )=6 $$

Essa área corresponde à intersecção entre as duas faixas laranja, a horizontal e a vertical, destacada abaixo em verde:



Como esse pedaço de área verde é descontado duas vezes nos cálculos parciais (uma vez com a faixa horizontal e outra com a faixa vertical), faz-se necessário acrescentar esse valor para que o cálculo da área do retângulo azul resulte correto. Chegamos assim à quarta e última regra de sinais da multiplicação:


Um número negativo multiplicado por outro número negativo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: menos com menos dá mais.



A regra de sinais da multiplicação deriva da constatação geométrica do cálculo de áreas e a lei distributiva da aritmética é a forma matemática de demonstrar sua validade. Seja como for, os números negativos prosseguem em sua árdua marcha rumo ao reconhecimento nos caminhos nem sempre suaves da matemática e chegam finalmente à Europa medieval. Lá, são apresentados a banqueiros e comerciantes por ninguém menos que Fibonacci; a seção do Liber Abaci que trata das subtrações recebe o título: Da subtração de números menores por números maiores. Porém, é na segunda parte de seu manuscrito que o italiano lida com bens e dinheiro, reforçando um simbolismo para transações econômicas com os números negativos, particularmente a noção de lucros ou ganhos em oposição a perdas ou contração de débitos na forma de inúmeros problemas descritivos, como este:

Três homens tinham libras esterlinas, não sei quantas, das quais a metade pertencia ao primeiro, um terço ao segundo e um sexto ao terceiro; como eles queriam mantê-las em um lugar seguro, cada um deles tomou das libras alguma quantia, e do montante que o primeiro tomou pôs em comum a metade, e do que o segundo tomou, pôs em comum uma terça parte, e do que o terceiro tomou, colocou em comum uma sexta parte, e do que eles puseram em comum cada um recebeu uma terça parte, e, assim, cada um teve sua porção.

Fibonacci encontra a seguinte solução para o resgate do montante entre três os homens:

Primeiro: 326 libras;
Segundo: 174 libras;
Terceiro: −30 libras;


O terceiro homem, diz ele, não recebe nada do montante compartilhado, ao contrário, coloca mais 30 libras de seu próprio bolso: havia 470 libras no total e quando eles quiseram mantê-las 'em um local seguro', o terceiro homem adicionou 30 libras, o primeiro homem tomou 326 libras e o segundo tomou 174 libras. Observe que ao lidar com dinheiro, as quantidades negativas assumem um significado simples entre dar e receber, ou entre créditos e débitos assumidos. Esta situação perdura inalterada desde o lançamento do Liber Abaci em 1.202, quando em plena Renascença o matemático e frei franciscano Luca Pacioli publica em 1.494 o seu Summa de arithmetica geometria. Nesta obra, quando um resultado é negativo ele é descrito como um débito; a exceção fica por conta de um problema que Pacioli denomina de belíssimo caso: neste exemplo, pede-se para dividir 10 em duas partes cuja diferença dos quadrados das partes seja igual a 200. A resposta para esse problema é:

$$ 10=15-5 $$

De fato, a diferença dos quadrados das partes é igual a 200:

$$ \left ( 15 \right )^{2}-\left ( 5 \right )^{2}=225-25=200 $$

Mas ainda assim não temos um número negativo de fato; o que se vê nesta conta é a subtração de um número maior por outro menor. Finalmente, encontramos nesta obra a primeira citação da regra de sinais do modo formal como é ensinada atualmente na escola.


A regra de sinais para a divisão (que é a mesma da multiplicação) no Summa de arithmetica geometria, de Luca Pacioli. A primeira linha destacada em verde diz: a partire piu per piu neuen piu, ou seja: a divisão de mais com mais resulta mais, e assim por diante.

Outro matemático que lidou com números negativos foi o italiano Girolamo Cardano em sua obra Ars Magna, de 1.545. Ele é o primeiro matemático a oferecer uma argumentação satisfatória para soluções negativas a problemas com equações lineares (semelhantes à equação de Diofanto de Alexandria) e o primeiro a aceitar raízes quadradas de números negativos. Chama os números positivos de numeri ueri (números reais) e os números negativos de numeri ficti (números fictícios), afirmando: “para tal, chamamos aquele como um débito ou negativo”, porém não faz muito mais pelos negativos, ignorando-os sistematicamente.


Girolamo Cardano
No último capítulo do Ars Magna (Sobre a regra para postular um negativo), Cardano faz alguma exploração sobre o resultado de raízes negativas, como no exemplo abaixo:

O dote da esposa de Francisco vale 100 aurei [moedas de ouro] a mais do que a própria propriedade de Francisco, e o quadrado do dote é 400 mais que o quadrado de sua propriedade. Encontre o dote e a propriedade.


O problema reduz-se a duas equações:

$$ \blacksquare =\square +100 $$
$$ \blacksquare^{2} =\square^{2} +400 $$

O valor do dote da esposa de Francisco é representado pela cartela preta e o valor da propriedade pela cartela branca. Substituindo o valor da cartela preta da primeira equação na cartela preta da segunda equação, temos:

$$ \left ( \square +100 \right )^{2}=\square ^{2}+400 $$

Desenvolvendo, vem:

$$ \left ( \square +100 \right )\times \left (\square +100 \right )=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+100\square +100\square +100^{2}=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+200\square +10.000=\square ^{2}+400 $$

Simplificando:

$$ 200\square +10.000=400 $$
$$ 200\square +10.000-10.000=400-10.000 $$
$$ 200\square=-9.600 $$

Resultando em:

$$ \frac{200}{200}\square =\frac{-9.600}{200} $$
$$ \square =-48 $$

Ou seja, a propriedade de Francisco valeria −48 aurei, mas por sorte o valor do dote de sua esposa vale:

$$ \blacksquare =\square +100=-48+100 $$
$$ \blacksquare =+52 $$

Alguns anos antes de sua morte, Cardano publica em 1.570 o tratado De Aliza Regulae, cujo particular interesse é a refutação que faz para a regra de sinais para a multiplicação e a divisão geralmente aceita pelos algebristas em sua época. Usando o mesmo exemplo do maestro Dardi de Pisa, ele conclui o contrário deste: a de que menos com menos resultar mais seria tão 'verdadeiro' quanto dizer que mais com mais resultaria menos.


Texto de Cardano refutando a regra de sinais, no De Aliza Regulae.
No texto de Cardano, o quadrado acfe tem lado ac igual a 10 e área igual a 100. Dado que bc e ag tem lado igual a 2, o quadrado egd terá uma área igual a 64. Para sair de 100 (quadrado acfe) e chegar a 64 (quadrado egd) temos que subtrair os dois retângulos cg e bf. Ao fazer isso, subtraímos o quadrado cbd duas vezes, de modo que temos que somá-lo uma vez mais. Assim, aritmeticamente, temos:

$$ 100-\left ( 10\times 2 \right )-\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 2 \right )=64 $$

A aplicação da lei distributiva acima é semelhante àquela adotada por maestro Dardi em sua prova. Entretanto, Cardano argumenta que o +4 não é o resultado da multiplicação de −2 por −2, mas uma área que deve ser novamente adicionada porque subtraímos o pequeno quadrado duas vezes do cálculo. Ele faz referência à proposição 7 do Livro II do Elementos de Euclides, reproduzida abaixo:

Se um segmento AB é dividido em dois por um ponto C, então o quadrado sobre o lado AB mais o quadrado sobre o lado CB é igual a duas vezes o retângulo de lados AB e CB mais o quadrado sobre o lado AC.


O resultado geométrico da proposição 7 do grego é muito semelhante ao desenho do matemático italiano:


Após referenciar Euclides, como para embasar sua linha de raciocínio, Cardano conclui: “E, portanto, está aberto o erro comumente asseverado de que menos vezes menos produzirá mais, para que de fato não seja mais correto afirmar que menos vezes menos produza mais, do que mais vezes mais produziria menos”. Um matemático importante para a história dos números negativos foi o inglês John Wallis: credita-se a ele a criação da reta numérica dos números inteiros, em sua obra Treatise on Algebra, escrito em inglês em 1.685, e que atualmente representamos por uma linha reta com o zero ao centro, os números positivos à direita da reta e os negativos à esquerda.


Reta numérica apresentada por John Wallis em sua obra Treatise on Algebra, de 1.685
Observe no texto acima a reta numérica de Wallis; acima da reta, o texto relata o seguinte:

No entanto, não é essa suposição (de quantidades negativas) nem inútil nem absurda quando corretamente compreendida. Porém, para a notação algébrica pura, importa uma quantidade menor que nada: entretanto, quando se trata de uma aplicação física, ela denota como real uma quantidade como se o sinal fosse +, mas para ser interpretado em sentido contrário. Como por exemplo: um homem que tenha avançado ou andado para frente (de A para B) 5 metros; e depois recuado (de B para C) 2 metros; se for perguntado, quanto tinha avançado (em toda a marcha) estando em C? Encontro... que ele avançou 3 metros. Mas, se tendo avançado 5 metros para B, ele retrocede 8 metros para D; então, se for perguntado, quanto avançou até D ou quanto teria avançado quando ele estava em A? Encontro −3 metros... ou seja, ele avançou 3 metros menos que nada... mas o que teríamos dito (em linguagem ordinária) é que ele retrocedeu 3 metros; ou que ele quer 3 metros a partir de onde está para avançar até onde estava em A.


John Wallis
Apesar da primazia pela criação da reta numérica e do exemplo interessante de alguém avançando ou recuando em um trajeto, Wallis também patinou em alguns conceitos matemáticos utilizando números negativos. Em sua obra Arithmetica Infinitorum, de 1.656, Wallis se aprofunda na idéia de que ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado é maior que infinito. A razão que o levou a essa conclusão equivocada encontra-se na proposição 104. Considere a seguinte fração:

$$ \frac{1}{\blacksquare } $$

Se no denominador a cartela preta for substituída por um número positivo muito grande, a fração se tornará zero. Ao contrário, se o denominador for substituído por zero, a fração resultará infinito. Agora, passando do zero, chegamos aos números negativos no denominador da fração (lembre-se da reta numérica). Avançando a linha de raciocínio, se números divididos por zero resultam infinito, então se formos além desse valor, ou seja, se dividirmos por números negativos, a fração resultará em valores maiores que o infinito. Ainda que tenhamos de compreender estas conclusões surpreendentes dentro do contexto em que são colocadas, a afirmação (e, portanto, o escorregão) de Wallis com os números negativos é incontestável, pois afirma que a razão de um número positivo por um negativo como sendo rationem plusquam infinitam (uma razão maior que infinito).


Texto onde Wallis afirma que um número positivo dividido por outro negativo gera um valor maior que infinito, no Arithmetica Infinitorum.
Levadas ao pé da letra, as duas primeiras assertivas de Wallis também estão incorretas, mas podemos 'suavizar' este contexto através de uma analogia rudimentar: se tivermos uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito grande, o resultado será algo muito pequeno (representado na figura abaixo pelo rato); reciprocamente, uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito pequeno (um número em notação decimal próximo de zero), o resultado será algo muito grande (representado na figura pelo elefante):



Outro matemático, contemporâneo de Wallis, que não se livrou de tomar um escorregão dos números negativos foi o francês Antoine Arnauld.


Antoine Arnauld
Em sua obra Nouveaux éléments de géométrie, de 1.667, ele inclui um exemplo de regras simbólicas que considera como estando contra nossas intuições básicas sobre magnitudes e proporções. Seu raciocínio é o seguinte: suponha que temos dois números, um maior e outro menor (por exemplo, 5 e 2) e se estabeleça entre eles duas razões: 5/2 e 2/5. A proporção do maior para o menor (5/2) é evidentemente maior que a proporção do menor para o maior (2/5). Em seguida, ele sugere substituir o 5 e o 2 respectivamente por 1 e por −1, resultando em duas novas razões: 1/−1 e −1/1. Se a proporção anterior é válida, então a proporção entre as duas novas razões também deve ser, ou seja, conclui-se que 1/−1 é maior que −1/1, o que vai contra as regras da álgebra. Este embate no século XVII entre o pensamento simbólico (algébrico) e a teoria clássica das proporções, herdada da geometria grega, mostrou-se problemática. A proposição de Arnauld mereceu até mesmo uma análise do gigante da matemática, o alemão Gottfried Leibniz, quando discute o problema em um artigo na obra Acta Eruditorum, de 1.712.


Gottfried Leibniz
Nesse artigo, Leibniz reconhece o problema de Arnauld como legítimo, mas estabelece que a divisão devesse ser executada segundo as regras do cálculo simbólico. Além disso, ao aplicar cegamente as regras de sinais, igualmente não haveria nenhum problema: ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado será negativo, e ao dividir um número negativo por outro positivo, o resultado também será negativo. Portanto, as razões 1/−1 e −1/1 são rigorosamente iguais.


Resposta de Leibniz a Arnauld no Acta Eruditorum, de 1.712.
Outro gigante da matemática que também tinha pleno controle dos números negativos e seus usos foi o inglês Isaac Newton. Em sua obra Universal Arithmetick, de 1.707, estabelece:


Quantidades são tanto Afirmativas, ou maiores que nada, quanto Negativas, ou menores que nada. Desse modo, nos afazeres humanos, posses ou estoque podem ser chamados bens afirmativos, e os débitos de negativos. Assim também no movimento local, progressão será chamada movimento afirmativo e regressão de movimento, negativo; porque o primeiro aumenta e o segundo diminui o comprimento do caminho percorrido. E ainda assim do mesmo modo na geometria, se uma linha desenhada em certo sentido for contada como afirmativa, então uma linha desenhada no sentido contrário será tomada como negativa.


Isaac Newton
Um dos últimos grandes matemáticos a se indispor com os números negativos foi o inglês Augustus De Morgan. Por exemplo, na enciclopédia Penny de 1.843, à qual contribuiu com muitos artigos, De Morgan escreveu o seguinte no artigo Negative and Impossible Quantities (Quantidades Negativas e Impossíveis):


Não é nossa intenção seguir os primeiros algebristas através de seus diferentes usos dos números negativos. Essas criações da álgebra retinham sua existência, diante da óbvia deficiência da explicação racional que caracterizava cada esforço de sua teoria.


Augustus De Morgan
Esse matemático passou grande parte de sua vida mostrando, numa primeira fase, quantas equações com esses 'números negativos sem importância' poderiam ser reelaboradas para afirmar fatos verídicos envolvendo apenas números positivos e, numa segunda fase, trabalhando lentamente para a definição de anéis e campos abstratos (conceitos da teoria dos conjuntos na álgebra moderna), idéias essas que ele sentia ser a única maneira de construir uma teoria totalmente satisfatória de números negativos. Tenham sido considerados absurdos ou sem sentido, ou apreciados como entes matemáticos como quaisquer outros, a verdade é que atualmente começamos a estudar os números negativos desde a tenra juventude e sem maiores constrangimentos, ou usando a reta numérica de John Wallis ou trabalhando com jogos de créditos e débitos na comercialização de mercadorias utilizando dinheiro 'de brincadeira' à moda de Fibonacci ou por meio de outros recursos pedagógicos. E uma vez que a história dos números negativos nos foi apresentada, iremos ao encontro de outro assunto instigante: o infinito e seus desdobramentos na matemática.

sexta-feira, agosto 07, 2015

A potenciação


Espaço sideral com galáxia ao centro, com uma quantidade gigantesca de estrelas, e um número ainda maior, mesmo que não visível, de planetas orbitando-as
A potenciação, ou exponenciação, é uma operação mate-mática envolvendo dois números: uma base e um expoente ou potência. Quando a potência, ou expoente, é um número inteiro positivo, a potenciação corresponderá à quantidade de vezes em que a base será multiplicada. Por exemplo, se quisermos multiplicar o número 3 por ele mesmo cinco vezes:


Podemos representar essa conta assim:


onde o número 5 (o expoente) indica a quantidade de vezes que o 3 (a base) deve ser multiplicado por ele mesmo. Quando um número é multiplicado por ele mesmo 2 vezes, dizemos que o número foi "elevado ao quadrado" e existe uma razão para isso. O quadrado é uma figura geométrica que possui todos os seus lados com o mesmo tamanho; suponha que temos um quadrado de lado com magnitude igual a 4:


Para calcularmos a área desse quadrado, basta multiplicar dois de seus lados: 4 × 4, ou ainda:


Eis porque se aplica o termo "quadrado" a qualquer número elevado à segunda potência. Já quando um número é multiplicado por ele mesmo 3 vezes, dizemos que o número foi "elevado ao cubo". A razão para isso é parecida com a anterior; suponha que temos um cubo cujas arestas tenham magnitude igual a 4:


Como o cubo é uma figura geométrica tridimensional, cujas faces são quadrados, o cálculo de seu volume é feito multiplicando-se sua largura, seu comprimento e sua altura, que são todas iguais: 4 × 4 × 4, ou ainda:


daí porque se utiliza o termo cubo a qualquer número elevado à terceira potência. Desse ponto em diante, as demais potências são todas indicadas por números ordinais (quarta potência, quinta potência, sexta potência, etc.) apenas porque o mundo físico – tal como o enxergamos e por influência dos geômetras gregos –  limita-se à tridimensionalidade. A potenciação é conhecida desde a antiguidade e teve, para cada civilização que dela fez uso, uma forma distinta de representá-la. Como visto no primeiro volume, para os egípcios um par de pernas andando para frente ( ) podia significar uma soma, mas também elevar um número ao quadrado. Os babilônios tinham igualmente a noção de potência, quando observamos o conteúdo da tabuleta de argila cozida encontrada em Larsa (atual Iraque), que apresenta – em notação sexagesimal – o quadrado dos números 1 a 60 e o cubo dos números 1 a 32.

Tabuleta de argila cozida babilônica, pertencente ao Museu Britânico sob o número 92698. Encontrada em Larsa, às vezes chamada de “Segunda tábua de Senkereh”, contém quadrados e cubos de números em notação sexagesimal na escrita cuneiforme.

A tradução para elevar um número ao quadrado na tabuleta de Larsa segue o modelo abaixo, destacado em negrito:

 

O quadrado de 1 é 1

O quadrado de 2 é 4

...

O quadrado de 8 é 1, 4 = 60 + 4 = 64

O quadrado de 9 é 1, 21 = 60 + 21 = 81

...

O quadrado de 11 é 2, 1 = 2 × 60 + 1 = 121

O quadrado de 12 é 2, 24 = 2 × 60 + 24 = 14

...

O quadrado de 30 é 15 = 60 × 15 = 900

...

O quadrado de 59 é 58, 1 = 58 × 60 + 1 = 3.481

O quadrado de 60 é 60 = 60 × 60 = 3.600

 

E os números elevados ao cubo seguem o modelo a seguir, também destacado em negrito:

 

O cubo de 1 é 1

O cubo de 2 é 8

...

O cubo de 15 é 56, 15 = 60 ×56 + 15 = 3.375

O cubo de 16 é 1, 8, 16 = 602 × 1 + 60 × 8 + 16 = 4.088

...

O cubo de 32 é 9, 6, 8 = 602 × 9 + 60 × 6 + 8 = 32.768


Quem primeiro fez uso da palavra “potência” foi Hipócrates de Quios (~470 a.C a ~410 a.C.), um matemático e geômetra grego cuja obra pode ter inspirado Euclides em seu Elementos. Hipócrates utilizava o termo dynamis, que atualmente é traduzido por potência (entre outros significados, tais como: poderio, força, habilidade, etc.), mas que pode ser traduzido alternativamente como “quadrado” e “raiz/lado do quadrado”. Já no século IX d.C., o matemático persa al-Khwārizmī usou o termo māl (cujo significado é posse ou propriedade) para designar o quadrado, ou seja, a segunda potência – para os muçulmanos, como para a maioria dos matemáticos daquela época, pensar em um número ao quadrado remetia-os à representação de uma área, especialmente de terras, daí a associação ao termo “propriedade” – bem como usava o termo kaʿbah (cujo significado é cubo) para designar a terceira potência. Posteriormente, por volta do século XV d.C., os matemáticos islâmicos passaram a representar a segunda e a terceira potências por uma notação matemática compostas, respectivamente, pelos termos mīm (m) e kāf (k), que podem ser encontrados, por exemplo, na obra do matemático hispano-islâmico al-Qalasādī. No século XV d.C. o matemático francês Nicolas Chuquet desenvolveria sua própria notação matemática para a exponenciação em seu artigo Triparty en la science des nombres, que viria a ser reaproveitada no século XVI d.C. tanto pelo matemático alemão Henricus Grammateus quanto pelo matemático e monge alemão Michael Stifel.
Excerto do Triparty de Chuquet, fazendo uso do 12 para descrever a segunda incógnita, sem nenhuma introdução ou explicação prévia, visível na 4ª,7ª e 8ª linhas do texto acima, à direita
Interessante observar que foi Michael Stifel quem primeiro cunhou a palavra expoente para descrever potências em 1.544, em sua obra Arithmetica integra. Por outro lado, no final do século XVI d.C., o matemático e relojoeiro suíço Jost Bürgi se apropriaria de numerais romanos para determinar as potências dos expoentes. Apenas em 1.637, na obra La Géométrie (Livro I, de René Descartes), é que surgirá pela primeira vez o uso da notação exponencial moderna, tal como é utilizada até hoje. Operações aritméticas com potências são possíveis; no caso de uma soma, teríamos:

$$ 3^{2}+2^{3}=3\times 3+2\times 2=9+8=17 $$

Outro exemplo de soma, em que adicionamos uma potência a um número:

$$ 4^{2}+13=4\times 4+13=16+13=29 $$

A subtração segue os mesmos procedimentos da soma; observe os dois exemplos a seguir:

$$ 4^{3}-5^{2}=4\times 4\times 4-5\times 5=64-25=39 $$

E:

$$ 5^{3}-42=5\times 5\times 5-42=125-42=83 $$

A multiplicação entre potências apresenta uma particularidade. Observe o cálculo a seguir:

$$ 3^{2}\times -3^{3}=\left (3\times 3  \right )\times \left ( 3\times 3\times 3 \right )=9\times 27=243 $$

Este exemplo demonstra uma interessante propriedade que decorre da multiplicação em potências de mesma base: os expoentes podem ser somados. Observe:

$$ 3^{2}\times -3^{3}=3^{\left ( 2+3 \right )}=3^{5}=3\times 3\times 3\times 3\times 3=243 $$

Note que somar os expoentes das duas potências de mesma base fornece exatamente o mesmo resultado que calcular as potências separadamente e depois multiplicar seus resultados. Veja agora este exemplo:

$$ 5^{2}\times 125 $$

Se lembrarmos de que 125 corresponde a 5 ao cubo, ou seja, a 5×5×5, podemos fazer uso da propriedade de somar os expoentes; logo:

$$ 5^{2}\times 5^{3}=5^{\left ( 2+3 \right )}=5\times 5\times 5\times 5\times 5=3.125 $$

A multiplicação entre potências de bases diferentes fica:

$$ 4^{2}\times 3^{3}=\left (4\times 4  \right )\times \left ( 3\times 3\times 3 \right )=16\times 27=432 $$

A multiplicação de uma potência por um número que não possa ser expresso por uma potência resulta:

$$ 2^{3}\times 7=\left ( 2\times 2\times 2 \right ) \times 7=8\times 7=56 $$

A divisão de potências de mesma base apresenta também uma particularidade, semelhante à multiplicação. Considere o exemplo abaixo:

$$ 4^{5} \div4^{3}=\frac{4\times 4\times 4\times 4\times 4}{4\times 4\times 4} $$

Na fração acima, que indica a divisão entre as duas potências, como temos apenas multiplicações, a simplificação é possível, de modo que o (4 × 4 × 4) do numerador pode ser "cancelado" com o (4 × 4 × 4) do denominador. Assim, temos:

$$ \frac{4\times 4\times 4\times 4\times 4}{4\times 4\times 4}=\frac{4\times 4\times 1}{1}=\frac{16}{1}=16 $$

Se na multiplicação de potências de mesma base os expoentes podem ser somados, na divisão eles podem ser subtraídos. Com base no exemplo anterior, temos:

$$ 4^{5}\div 4^{3}=4^{5-3}=4^{2}=4\times 4=16 $$

Observe que subtrair os expoentes fornece o mesmo resultado. Vejamos a seguir como se comporta a potenciação em função do expoente à qual a base é elevada.

Expoente maior que 1: este é o caso mais comum, e consiste na multiplicação da base por ela mesma tantas vezes quantas indicar o expoente. Assim, 5 à quarta potência resulta na potência 625:


O mesmo procedimento pode ser aplicado para as frações. Logo, (2/3) ao cubo resulta na fração 8/27:


Expoente igual a 1: toda base elevada ao expoente 1, resulta na própria base pois, neste caso, o expoente 1 indica que o número é multiplicado por ele mesmo uma vez, ou seja, é a própria representação da base. Assim:


O mesmo se passa com as frações:


Expoente igual a zero: toda base elevada ao expoente zero irá resultar no valor 1. Para entendermos como isso funciona, vamos nos aproveitar dos ensinamentos de Brahmagupta, quando afirma que:

"o zero é a quantidade que se é obtida quando subtraímos um número dele mesmo"

Assim, 9 elevado a zero é uma potenciação onde o zero pode representar um número qualquer que foi subtraído dele mesmo, por exemplo: 3 – 3 = 0. Então, podemos substituir por 9 elevado a (3-3); mas, vimos há pouco que um número elevado a um expoente onde existe uma subtração é o mesmo que uma divisão de duas potências. Assim:

$$ 9^{\left ( 3-3 \right )}=\frac{9^{3}}{9^{3}}=\frac{9\times 9\times 9}{9\times 9\times 9}=\frac{729}{729}=1 $$

Logo, do exposto, qualquer número elevado ao expoente zero é igual a 1.


Bom, o raciocínio neste caso é o mesmo do exemplo anterior, ou seja, 0 elevado a zero é uma potenciação onde o zero do expoente pode representar um número qualquer que foi subtraído dele mesmo, por exemplo, 6 – 6 = 0. Então, podemos substituir o 0 elevado a zero por 0 elevado a (6-6), que é o mesmo que uma divisão de duas potências. Assim:

$$ 0^{\left ( 6-6 \right )}=\frac{0^{6}}{0^{6}}=\frac{0\times 0\times 0\times 0\times 0\times 0}{0\times 0\times 0\times 0\times 0\times 0}=\frac{0}{0} $$

Novamente, chegamos a uma divisão por zero, mas neste caso o numerador também é zero. E agora, que resultado essa divisão fornece? Entre as possíveis respostas, poderíamos obter esta:

"Se sabemos que 1/0 = 0, e que 2/0 = 0, ou ainda  3/0 =0, etc., então 0/0 = 0"

Este raciocínio, porém, não é satisfatório nem correto. Vejamos por outro ângulo:

$$ \frac{0}{0}=?\rightarrow 0\times ?=0 $$

Os egípcios nos fariam a seguinte pergunta: "Que número multiplicado por zero resulta zero?". Ora, qualquer número multiplicado por zero dá zero, seja ele 0, 1, 328 ou 4/5. Se qualquer valor gera o mesmo resultado, logo não há "o número" que defina "o resultado", ou seja, não temos condições de demonstrar que número é 0/0 com as ferramentas matemáticas que temos à nossa disposição.


A potenciação também pode ficar intercalada em cálculos mais elaborados, como este:

$$ \frac{\left ( 5^{3}-81 \right )\div 2^{2}}{22}-\frac{160\div \left ( 5+3^{3} \right )}{12} $$

Já vimos como funciona a precedência para as quatro operações aritméticas básicas. Mas no exemplo acima, temos potenciações e o uso de parênteses. Quem se depara pela primeira vez com esse tipo de conta, novamente fica em dúvida sobre a correta sequência de cálculo. De fato, a precedência é de fundamental importância para que o resultado seja exatamente o mesmo quando resolvido por uma pessoa aqui no Brasil, na Índia, em Portugal ou no Japão. Assim, a precedência apresentada para as operações aritméticas deve ser complementada conforme abaixo:


Seguindo as regras indicadas, podemos iniciar o cálculo sem sobressaltos. Observando a primeira fração, temos parênteses no numerador; logo, as contas que estiverem dentro dos parênteses devem ser efetuadas antes das demais. Bom, dentro desses parênteses, temos potenciação e subtração. Pela precedência, a potenciação é calculada antes da subtração. Na segunda fração, ocorre o mesmo: temos parênteses no numerador, que nos obrigam a calcular primeiro aquilo que se encontra dentro deles; e dentro deles temos soma e potenciação. Pela precedência, a potenciação deve ser calculada antes da soma. Assim, chegamos a:

$$ \frac{\left ( 5^{3}-81 \right )\div 2^{2}}{22}-\frac{160\div \left ( 5+3^{3} \right )}{12} $$

$$ \frac{\left [ \left ( 5\times 5\times 5 \right )-81 \right ]\div2^{2}}{22}-\frac{160\div\left [ 5+\left ( 3\times 3\times 3 \right ) \right ]}{12} $$

Ainda existem contas nos parênteses das duas frações: uma subtração na primeira fração e uma soma na segunda. Logo, elas devem ser calculadas antes das demais contas:

$$ \frac{44\div2^{2}}{22}-\frac{160\div 32}{12} $$

A situação agora é a seguinte: na primeira fração temos divisão e potenciação no numerador; logo, pela precedência, a potenciação será calculada antes da divisão. Já na segunda fração, apenas uma divisão no numerador. O resultado até aqui é este:

$$ \frac{44\div4}{22}-\frac{5}{12} $$

A primeira fração agora tem apenas uma divisão no numerador, que será calculada. E a segunda fração já chegou ao valor final. O resultado será:

$$ \frac{11}{22}-\frac{5}{12} $$

A primeira fração ainda pode sofrer uma simplificação, já que 22 é múltiplo de 11:

$$ \frac{1}{2}-\frac{5}{12} $$

Agora, temos uma subtração entre duas frações. Para chegarmos ao resultado final, o mínimo múltiplo comum entre 2 e 12 deverá ser calculado. Pelo método de Euclides, o m.m.c. é 12:

$$ \frac{1}{2}-\frac{5}{12}=\frac{6-5}{12}=\frac{1}{12} $$

A fração 1/12, ou uncia para os romanos, é o resultado obtido da expressão matemática original. A expressão (1/2 – 5/12) em geral causa confusão na mente dos estudantes porque, pelos números envolvidos, tem-se a impressão de que 1/2 é menor que 5/12, o que não é verdade. Para enxergarmos melhor quanto cada fração representa em relação à unidade, ou as romano, usaremos uma barra de chocolate, composta de 12 quadrados:


A fração 1/2 equivale à metade da barra:


Por outro lado, a fração 5/12 corresponde a:


Ao subtrairmos os pedaços das barras de chocolate equivalentes às frações 1/2 e 5/12, obteremos:


Nota-se claramente que o quadradinho de chocolate que sobrou equivale à décima segunda parte da barra inteira, ou seja, a 1/12 do total, que é o resultado da subtração entre 1/2 e 5/12. Visualmente, não restam dúvidas de que 1/2 é maior que 5/12 e não o oposto. Sem perder de vista o assunto principal deste capítulo, existe uma história muito interessante sobre a origem do xadrez que mostra o quanto a potenciação é poderosa e pode facilmente confundir os mais incautos. Reza a lenda que Balhait, senhor e soberano de toda a Índia, sofrendo de profundo tédio com a rotina da vida na côrte, pediu a Sissa ibn Daher (seu mais sábio brâmane) que, usando de toda a sua sabedoria, o arrancasse daquele martírio d’alma. Sissa, sabedor do estado de espírito de seu rei, que era a depressão psicológica e a solidão, afirma-lhe que criará um novo jogo para entretê-lo. Balhait fica feliz com a decisão do sábio, pois conhecia o talento inigualável de seu súdito; mas fez a seguinte ressalva: não queria um jogo que dependesse da sorte tirada nos dados, mas sim que fosse capaz de destacar qualidades como a prudência, a visão estratégica e a agilidade mental do jogador. Algum tempo depois, Sissa apresenta seu jogo, que seria muito semelhante ao xadrez atual, composto dos quatro elementos do exército indiano: carros, cavalos, elefantes e soldados a pé, comandados pelo seu rei e seu vizir. Balhait e toda sua côrte ficam encantados com o jogo, e não mais martirizado pelo tédio, o rei diz a Sissa que escolha qualquer recompensa que desejar, que ele o atenderá com muito prazer. O brâmane, porém, satisfeito com a plena recuperação de seu soberano, afirma que ver seu rei feliz é para ele a maior recompensa que poderia desejar. Mas Balhait, malgrado todas as esquivas e vênias de Sissa, não aceita a escolha do sábio e exige que o brâmane faça um pedido.

Cristão (à esquerda) e muçulmano (à direita) jogando uma partida de xadrez. Ilustração do "Libro de juegos", (1251-1283), escrito por ordem do rei castelhano Afonso X.
Sissa, então, o formula marotamente nestes termos: uma recompensa em grãos de trigo sobre o tabuleiro do jogo que acabara de inventar, de modo que haja 1 grão de trigo na primeira casa (ou seja, 20), dois grãos na segunda casa (ou ainda, 21), quatro grãos na terceira casa (quer dizer, 22), oito grãos na quarta casa (23) e assim sucessivamente, até a 64a casa do tabuleiro. Balhait ri-se do pedido do brâmane, dizendo que desejar um punhado de trigo era uma solicitação ridícula; mas Sissa insiste que esse é seu desejo. O rei, então, chama um de seus auxiliares e manda trazer o punhado de trigo para entregá-lo ao sábio. Porém, à medida que se passava de uma casa à outra do tabuleiro, a quantidade de grãos de trigo necessários esgotaram o estoque dos armazéns reais. E antes de atingida a trigésima casa do tabuleiro, nem todos os grãos de trigo produzidos na Índia seriam suficientes para atender ao pedido do sábio. Passaram então a calcular quantos grãos seriam necessários para a última casa do tabuleiro, e chegaram com muito esforço à estratosférica quantia de 18.446.744.073.709.551.615 grãos (ou 264 grãos). Balhait, ciente da cilada em que fora colocado pelo seu sábio, olha para ele, preocupado; mas Sissa afirma, efusivo, que já sabia da resposta e da impossibilidade de ter seu pedido atendido. Depois disso, Balhait não sabia o que admirar mais: se o jogo que Sissa havia inventado ou o pedido de recompensa que fizera. A grande sacada de Sissa foi se limitar a dizer que a quantidade de grãos de trigo dobrava ao passar de uma casa a outra do tabuleiro, sem levantar suspeitas quanto à verdadeira catástrofe que essa quantia representaria às finanças do ingênuo rei, já que, nas primeiras casas, o total de grãos contabilizados é enganadoramente pequeno... Existe ainda uma operação matemática com potências que não foi abordada: a potência de potência.


Observe o exemplo dado:

$$ \left ( 8^{2} \right )^{3} $$

O procedimento é simples: primeiro, calculamos o que está dentro dos parênteses, respeitando-se as regras de precedência. Assim, temos:

$$ \left ( 8\times 8 \right )^{3}=\left ( 64 \right )^{3} $$

Em seguida, calculamos a potência restante:

$$ \left ( 64 \right )^{3}=64\times 64\times 64=262.144 $$

Quando temos um cálculo envolvendo potências de potências, os expoentes podem ser multiplicados. Logo:

$$ \left ( 8^{2} \right )^{3}=8^{6}=8\times 8\times 8\times 8\times 8\times 8=262.144 $$

Note que o resultado obtido é exatamente o mesmo. Arquimedes talvez tenha sido o primeiro a fazer uso intenso das potências, na antiga Grécia, motivado por uma discussão na corte do rei Gelão de Siracusa, sobre a impossibilidade de se contar os grãos de areia das praias da Sicília, mesmo que essa quantidade não fosse infinita, por conta da limitação da representação numérica grega.


Arquimedes não apenas mostrou que essa contagem era possível como também criou uma numeração adequada para expressar essas quantias, em sua carta dirigida ao rei Gelão, atualmente conhecida como "o contador de areia", transcrita parcialmente a seguir:

Há quem pense, Rei Gelão, que o número de grãos de areia é infinito. E quando menciono areia refiro-me não só aquela que existe em Siracusa e no resto da Sicília mas também àquela que se encontra nas outras regiões, sejam elas habitadas ou desabitadas. Mais uma vez, há quem, sem considerá-lo infinito, pense que nenhum número foi ainda nomeado que seja suficientemente grande para exceder a sua multiplicidade. E é claro que aqueles que têm esta opinião, se imaginassem uma massa de areia tão grande como a massa da terra, incluindo nesta todos os mares e depressões da terra preenchidas até uma altura igual à mais alta das montanhas, estariam muito longe ainda de reconhecer que qualquer número poderia ser expresso de tal forma que excedesse a multiplicidade da areia aí existente.

A partir de agora, Arquimedes começa a formular as condições de contorno, ou seja, a dimensionar aquilo que ele considera o 'universo', como pré-requisito para os cálculos que virão:

Mas eu tentarei mostrar-vos, através de provas geométricas que conseguireis acompanhar que, dos números nomeados por mim e que constam no trabalho que enviei a Zeuxipo, alguns excedem, não só o número da massa de areia igual em magnitude à da terra preenchida da maneira que atrás referi, mas também da massa igual em magnitude à do universo. Ora, vós estais por certo conscientes de que 'universo' é o nome dado por muitos astrônomos à esfera cujo centro é o centro da terra e cujo raio é igual à linha reta entre o centro do sol e o centro da terra. Esta é a definição comum, como tendes ouvido dos astrônomos.

A seguir, Arquimedes faz considerações acerca do conceito que outro matemático grego – e seu contemporâneo – Aristarco de Samos (310 a.C. a 230 a.C.), tem sobre o 'universo':

Mas Aristarco de Samos escreveu um livro no qual as premissas levam ao resultado de que o universo é muitas vezes maior do que aquele que é agora considerado. A hipótese dele é que as estrelas fixas e o sol permanecem imóveis, que a terra gira em torno do sol na forma de uma circunferência, que o sol permanece no centro da órbita e que a esfera das estrelas fixas, situada relativamente perto do centro do sol, é tão grande que o círculo em que ele supõe que a terra gira suporta uma proporção, relativamente à distância das estrelas fixas tal como o centro da esfera suporta relativamente à sua superfície.

É curioso que Arquimedes considere impossível um universo tal como aquele descrito por Aristarco, quando afirma em seguida:

É fácil de ver que isto é impossível; pois dado que o centro da esfera não tem dimensão, não o podemos conceber para suportar qualquer proporção relativamente à superfície da esfera. Temos, contudo, de aceitar que Aristarco assim pense pela nossa parte, porque consideramos a terra como se fosse o centro do universo, a proporção que a terra suporta relativamente àquilo que descrevemos como sendo o 'universo' é igual à proporção da esfera contendo o círculo em que ele supõe que a terra gira comparativamente à esfera das estrelas fixas.

O pensamento de Arquimedes, considerando a Terra como o centro de seu 'universo', teve o valor de lei divina por toda a Idade Média; desmentir essa teoria, ou simplesmente querer contestá-la, equivalia a uma sentença de morte. De fato, somente com o surgimento da teoria heliocêntrica do astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico, e das observações astronômicas do matemático e astrônomo italiano Galileu Galilei, que confirmavam a teoria do heliocentrismo, dois mil anos depois de proposta embrionariamente por Aristarco, é que a teoria do geocentrismo literalmente caiu por terra.

Nicolau Copérnico

Galileu Galilei
Seja como for, é a partir dessa simplificação que Arquimedes continua sua preleção:

Pois ele [Aristarco] faz uma adaptação dos seus resultados às demonstrações tendo em conta hipóteses deste tipo, e em particular parece que ele supõe que a magnitude da esfera que representa a terra em movimento é igual à magnitude daquilo a que chamamos o 'universo'. Então eu digo que, mesmo que uma esfera constituída por uma tão elevada quantidade de areia como sendo comparativa à da esfera das estrelas fixas, como supõe Aristarco, eu continuarei a demonstrar que, dos números mencionados nos "Princípios", alguns excedem em multiplicidade o número da areia igual em magnitude à esfera atrás referida, desde que as seguintes suposições sejam feitas.

Sem entrarmos no mérito das demonstrações geométricas feitas por Arquimedes, vamos acompanhar a parte da epístola que trata especificamente da demonstração do uso das potências para expressar números muito grandes, elaborada pelo matemático:

I. Temos nomes tradicionais para números até uma miríade (10.000); podemos, portanto, expressar números até à miríade-miríade (100.000.000). Chamemos a estes números, números de primeira ordem.

O maior número grego (miríade) era representado pela letra M ou μα. Uma miríade (10.000) corresponderia, portanto, a:

$$ 10.000=10\times 10\times 10\times 10=10^{4} $$

em notação moderna. E a miríade-miríade seria equivalente a:

$$ 10.000\times 10.000=10^{4}\times 10^{4}=10^{4+4}=10^{8}=100.000.000 $$

Prossegue Arquimedes:

Suponha-se que 100.000.000 é a unidade de segunda ordem, e seja a segunda ordem constituída pelos números dessa unidade até (100.000.000)2. Seja então esta a unidade da terceira ordem dos números terminando com (100.000.000)3 e assim sucessivamente, até chegarmos à ordem 100.000.000 dos números terminando com 100.000.000100.000.000, a que chamaremos P.

Aqui, Arquimedes chama a miríade-miríade, ou 10 à oitava potência, o começo da unidade de segunda ordem; a terceira ordem iniciar-se-ia com:

$$ \left (100.000.000  \right )^{2}=\left ( 10^{8} \right )^{2}=10^{8\times 2}=10^{16} $$

A terceira ordem termina, ou ainda, a quarta ordem começa, em:

$$ \left (100.000.000  \right )^{3}=\left ( 10^{8} \right )^{3}=10^{8\times 3}=10^{24} $$

E assim sucessivamente, até chegar à absurda cifra P, dada por:

$$ \left (100.000.000  \right )^{100.000.000}=\left ( 10^{8} \right )^{100.000.000}=10^{8\times 100.000.000}=10^{800.000.000} $$

A epístola continua nestes termos:

II. Suponhamos que os números de 1 a P da forma atrás descrita formam o primeiro período.

Veja que o primeiro período, a que se refere Arquimedes, é dado por ordens, estas constituídas por octovalentes ou potências de dez, conforme abaixo:


Seja P a unidade da primeira ordem do segundo período, e sejam estes constituídos pelos números de P até 100.000.000 P. Seja o último número a unidade da segunda ordem do segundo período, e que este termine com (100.000.000)2 P. Podemos proceder deste modo até atingirmos a ordem 100.000.000 do segundo período terminando com PP, ou P2.
 
Aqui, Arquimedes repete o raciocínio anterior, utilizando desta vez o período P, que equivale a 10800.000.000, para criar ordens no segundo período, cada ordem composta de oito potências de dez, conforme o esquema abaixo:


A segunda ordem começa com 10 elevado a 8P, que corresponde a:

$$ 100.000.000P=100.000.000\times P=10^{8}\times 10^{800.000.000} $$

Como temos uma multiplicação entre potências de mesma base, os expoentes podem ser somados; assim, 10 elevado a 8P é o mesmo que:

$$ 10^{800.000.008} $$

Arquimedes continua a expansão das ordens do segundo período até chegar a:


III. Tomando P2 como sendo a unidade da primeira ordem do terceiro período, procedemos da mesma forma até chegarmos à ordem 100.000.000 do terceiro período, terminando com P3.

Sem novidades; Arquimedes repete o raciocínio para demonstrar os números obtidos nas ordens do terceiro período, até P ao cubo.

IV. Tomando P3 como sendo a unidade da primeira ordem do quarto período, continuamos o mesmo processo até chegarmos à 100.000.000-ésima ordem do 100.000.000-ésimo período, terminando com P100.000.000.

Veja a que valores exorbitantes Arquimedes consegue chegar com as suas potências! Mesmo sendo capaz de expressar números que sequer conseguimos conceber mentalmente, ele concluiu, partindo da quantidade de grãos de areia que uma semente de papoula abrigaria, que a quantidade de grãos de areia em seu 'universo' (para ele, a esfera com diâmetro igual à distância entre o centro da Terra e o centro do Sol) conteria um total de:

$$ 10^{51} $$

grãos, ou seja:

1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000

Um número ainda muito pequeno em comparação com os períodos da notação matemática criada por Arquimedes; de fato, 1051 é um octovalente da sétima ordem do primeiro período, insignificante perto de 10799.999.999, que é o último octovalente do primeiro período, ou seja, o número 1 seguido de 799.999.999 zeros! Conclui Arquimedes sua epístola, com estes dizeres:

Creio que estas coisas, Rei Gelão, possam parecer inacreditáveis para a grande maioria das pessoas que não estudam matemática. Mas para aqueles que estão dentro do assunto e que já pensaram na questão das distâncias e tamanhos da terra, do sol, da lua e do universo inteiro, a prova terá algum fundamento. E foi por este motivo que achei que o tema seria apropriado para a vossa consideração.

O uso das potências de dez por Arquimedes é utilizado até hoje nas engenharias. Por exemplo, as potências são utilizadas para expressar as forças atuantes nas estruturas de um prédio, como lajes, colunas, etc., que estão sujeitas ao peso de pessoas, veículos, mobiliários, ventos, vibrações do solo e outros agentes mecânicos.

Vista noturna da cidade de São Paulo, com ponte estaiada em primeiro plano. A quantidade de energia consumida por uma megalópole como esta é melhor expressa através das potenciações.
As potências também são utilizadas na quantificação da energia elétrica consumida em uma cidade como São Paulo, em que os valores são melhor expressos através da potenciação. Para se ter uma idéia de valores, em 2012 a energia consumida em São Paulo foi por volta de 125 × 1012 Watts. A quantificação de distâncias astronômicas entre estrelas ou galáxias, a expressão de constantes físicas e matemáticas, todas utilizam exponenciação, ou potenciação, maciçamente.

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Heath, T. L.; “The Works of Archimedes”, Cambridge University Press, 1897.



Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.