Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

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quinta-feira, março 09, 2017

O infinito: uma breve abordagem

Pirâmides de Sierpinski. Esta estrutura é um fractal formado por triângulos equiláteros que podem replicar-se no mesmo padrão infinitamente.
O infinito suscita variadas interpretações. Para o pintor renascentista, o infinito está nos pontos de fuga de suas telas, dando a sensação de uma distância infinita ao observador, e servem para retratar realisticamente o espaço, as distâncias e os objetos de um determinado ponto de vista.

Técnica da aplicação dos pontos de fuga, obra de Hans Vredeman de Vries, de 1.608
Para os místicos, por outro lado, o infinito pode significar Deus ou o Absoluto, e para os filósofos estar relacionado com a eternidade. Já para o trovador medieval, infinito são o amor por sua donzela e a dor de não ser correspondido. Porém, é na matemática que o infinito está mais intimamente relacionado e foram os matemáticos que deram as maiores contribuições para sua compreensão. Iniciando nossa caminhada pela história rumo ao infinito, vejamos como povos antigos lidavam com esse tema, partindo da civilização maia.


Os maias foram não somente grandes matemáticos, mas também astrônomos brilhantes, a ponto de criarem um calendário − conhecido também como 'roda calendárica' – que, baseado em seu sistema numérico vigesimal, permitia-lhes calcular o tempo com grande precisão; de fato uma de suas maiores realizações na astronomia. Os maias creditavam à divindade Itzamna o ensinamento do sistema de calendários, junto com a escrita e outros aspectos de sua cultura.

A roda calendárica maia
O calendário maia é constituído de 3 rodas: a menor, interna, possui 13 divisões; a roda intermediária contém 20 divisões e a externa, 19 divisões. A roda interna (que representa dias) engrenada à roda intermediária (que representa meses) perfazem um ciclo correspondente a um ano de 260 dias (13 dias × 20 meses) e constituem o calendário religioso, ou Tzolkin na língua maia. Era utilizado para determinar o momento de eventos religiosos e cerimoniais. Além do calendário ritualístico, os maias também tinham o calendário solar, conhecido como Haab, em que a roda externa, com 19 divisões (ou dias) trabalha em conjunto com a roda intermediária de 20 divisões, perfazendo um ano solar de 360 dias (18 dias × 20 meses) mais a 19ª divisão de apenas 5 dias. Estes 5 dias que faltam para completar um ano solar de 365 dias eram chamados de uayeb, ou "aqueles que não têm nome". Os maias consideravam-nos como "dias fantasmas" e qualquer um que nascesse em um deles teria má sorte e permaneceria pobre e miserável por toda a vida. Além disso, nesses dias os portais entre o reino mortal e o submundo desapareciam, sem limites que impedissem que deidades mal-intencionadas causassem desastres. A combinação das três rodas gerava ainda um terceiro calendário, que os maias chamavam de Contagem longa. O mínimo múltiplo comum entre o ano religioso (de 260 dias) e o solar (de 365 dias) é 18.980 dias, ou seja, a cada 52 anos solares (18.980/365) ou a cada 73 anos religiosos (18.980/260), as rodas retornavam à mesma posição inicial que tinham 18.980 dias antes. A contagem longa inicia-se em um ponto místico situado em 3.114 a.C. e considerado pelos próprios maias como o momento da criação de sua civilização. O cálculo de datas neste sistema calendárico era feito numa base vigesimal modificada, contendo em geral cinco números sequenciais, como no exemplo abaixo:

$$ \left [ 8;14;3;1;12 \right ] $$

Para saber qual data em nosso calendário corresponde essa sequência numérica, procedemos à seguinte conta, começando da direita para a esquerda:

$$ \left ( 12\times 20^{0} \right )+\left ( 1\times 20^{1} \right )+\left ( 3\times 18\times 20^{1} \right )+\left ( 14\times 18\times 20^{2} \right )+\left ( 8\times 18\times 20^{3} \right ) $$

Observe: a partir do terceiro termo, ao invés de multiplicarem o número da sequência (neste caso o 3) por 20 ao quadrado, os maias iniciavam a multiplicação por 18 seguido da multiplicação por potências de 20, daí porque essa contagem não era vigesimal pura. O resultado dessa conta é de 1.253.912 dias corridos, que se iniciam em 3.114 a.C., chegando a cerca de 321 d.C. em nosso calendário. Neste sistema, um dia era denominado kin, 20 kin perfaziam um mês (uinal), 18 uinal perfaziam um ano (tun). Com 20 tun chegava-se a 1 katun (20 anos), 20 katun equivaliam a 1 baktun (360 anos) e 20 baktun perfaziam 1 pictun (7.200 anos). A maioria das inscrições maias da contagem longa limitam-se em registrar somente os 5 primeiros coeficientes, mas existem inscrições que apontam ou implicam em sequências maiores que 5, gerando contagens muito mais longas, o que leva a crer que essa incrível civilização tivesse alguma noção do ilimitado, infindável esticamento do tempo, ou infinito potencial. O infinito potencial é a forma mais natural e intuitiva de conceber o infinito, sendo nesta concepção algo que pode aumentar, continuar ou estender tanto quanto se queira, como é o caso dos números naturais:

$$ 1,2,3,4,5,6,7,8,9... $$

Sempre é possível somar mais um número à sequência, estendendo-a indefinidamente, ou seja, é uma sucessão infinita de elementos discretos, infinitamente extensíveis. Considere, porém, um segmento de reta: apesar de limitado em sua extensão, é um contínuo de pontos onde não faz sentido falar do elemento seguinte, pois entre um ponto e outro da reta sempre é possível haver um ponto intermediário, o que faz com que um segmento de reta, finito, seja infinitamente divisível. Este segundo tipo de infinito é denominado infinito atual. Para a civilização grega, o infinito foi sempre um conceito problemático. Para os pitagóricos, em que tudo em seu mundo era número, o finito estava associado ao bem e o infinito ao mal. Leucipo de Mileto (século V a.C.) e seu discípulo Demócrito de Abdera (460 a.C. a 370 a.C.) deram às quantias infinitamente pequenas um limite, abaixo do qual não haveria possibilidade de divisão, e que denominaram de átomos. Zenão de Eléia (485 a.C. a 430 a.C.) foi um crítico da multiplicidade, que expunha através de seus paradoxos:

Se a multiplicidade existe, as coisas serão ao mesmo tempo limitadas e infinitas em número. Se a multiplicidade existe, as coisas, ao mesmo tempo, serão infinitas em tamanho e não terão tamanho algum.

O segmento de reta finito, com seus infinitos pontos, é uma boa representação dessa contradição. Seguindo essa linha de pensamento, Zenão afirmava que percorrer infinitos pontos de um percurso (segmento de reta) num tempo finito é impossível, de modo que o movimento seria apenas uma ilusão.  O paradoxo da dicotomia é bastante didático nesse aspecto:

"Aquilo que está em movimento deve alcançar a metade do percurso antes de chegar à meta"

A representação desse paradoxo já foi vista no capítulo dos números irracionais:

Mas porque este paradoxo não funciona? Considere que o percurso completo possa ser representado por um quadrado de área igual a 1, onde essa área unitária representa o trajeto como um todo:


Para que o atleta percorra o caminho inteiro, é preciso que ele alcance metade do trajeto, o que se traduz como:


Para percorrer metade do trajeto, antes é necessário que o atleta alcance um quarto do caminho (metade de 1/2):


Para percorrer um quarto do caminho, antes o atleta tem que avançar um oitavo do percurso (metade de 1/4):


Para percorrer um oitavo do caminho, antes o atleta deve alcançar a décima sexta parte do trajeto (metade de 1/8):


Seguindo esse procedimento, para atingir a décima sexta parte do trajeto, antes o atleta deve alcançar a trigésima segunda parte do percurso (metade de 1/16):


A tendência é de que os avanços, cada vez mais infinitesimais, perfaçam o trajeto completo:


Em termos fracionários, temos:

$$ \frac{1}{2}+\frac{1}{4}+\frac{1}{8}+\frac{1}{16}+\frac{1}{32}+\frac{1}{64}+...=1 $$

A verdade é que num tempo finito percorre-se uma quantidade infinita de trechos infinitesimais, o que em filosofia é denominado super-tarefa, de modo que o movimento é real e não uma ilusão como afirmava Zenão. Para Platão (428? a.C. a 347? a.C.), o potencial de extensão era considerado limitado, finito; o conceito de infinito propriamente dito era algo irracional, impensável, sem sentido. Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), discípulo de Platão, aceitava o infinito potencial, como o dos números inteiros, onde se pode sempre somar mais um para se obter um número maior, mas o conjunto infinito de números como tal não existe. Argumentava também que a maioria das magnitudes sequer poderia ser potencialmente infinita porque pela soma sucessiva de magnitudes seria possível exceder os limites do universo; mas o universo é potencialmente infinito no sentido de que pode ser repetidamente dividido. O tempo, por sua vez, é potencialmente infinito em ambos os sentidos. Na geometria, Aristóteles admite que os pontos estejam em linhas, mas que os pontos não constituem a linha, uma vez que o contínuo não poderia ser constituído pelo discreto. Euclides (325 a.C. a 265 a.C.) segue a mesma toada ao misturar o infinitesimal com o infinito, quando define os conceitos básicos de ponto e reta em seu Elementos:

Um ponto é o que não tem parte;
Uma linha reta é uma linha composta de pontos uniformemente distribuídos.

Arquimedes (287 a.C. a 212 a.C.) em seu manuscrito O contador de areia, igualmente refuta a hipótese de um universo infinito como estabelecido por seu conterrâneo, Aristarco de Samos. Para fins de cálculo, o universo seria limitado a uma esfera que vai do centro do Sol ao centro da Terra totalmente preenchida de grãos de areia. Para chegar a um resultado, desenvolveu um sistema de potências numéricas composto de períodos. Neste sistema, Arquimedes demonstra potências equivalentes a 10 elevado a 799.999.999; apesar do gigantismo impensável deste número, ainda assim é finito, pois basta somar 1 à potência acima que obtemos um número maior que a própria potência. Ao contrário dos gregos, a civilização hindu tinha verdadeiro fascínio pelo infinito, como nesta passagem em que um sacerdote, após preparar os tijolos para um ritual védico, reza a Agni, divindade do fogo:

Oh Agni! Torne estes tijolos em vacas que dão leite para mim
Por favor, dê-me uma, e dez, e cem, e mil
Dez mil, e lakh e prayutam
E arbudam e nyarbudam e samudram
E madhyam e parardham neste mundo e em outros mundos também

Nestes versos, os nomes hindus correspondem a potências de dez:

Lakh = 10 elevado a 5;
Prayutam = 10 elevado a 6;
Arbudam = 10 elevado a 7; 
Nyarbudam = 10 elevado a 8;
Samudram = 10 elevado a 9;
Madhyam = 10 elevado a 10;
Parardham = 10 elevado a 12;

O conceito de infinito era repetidamente usado na era védica:

Do infinito nasce o infinito
Quando infinito é retirado do infinito, o que resta é apenas infinito.

No Ramaiana, um épico sânscrito que conta a história do príncipe Rama, cuja esposa Sita é raptada pelo demônio Ravana, e escrito entre 500 a.C. e 100 a.C., aparecem potências que chegam a 10 elevado a 62, cujo número representa a quantidade de Vanaras (homens macaco da armada do príncipe Rama) empregados na construção da ponte Rama ou Adam.

Um homem macaco ou vanara ao centro, marcando seu nome em um tijolo para a construção da ponte Adam. O homem azul à esquerda é o príncipe Rama.
A ponte Adam é uma formação geológica de pedra calcária com 50 quilômetros de extensão entre a ilha Pamban, na Índia, e a ilha Mannar, no Sri Lanka.

Vista aérea da ponte Adam
Entre os árabes, como tutores da herança grega no conhecimento matemático, não houve avanços sobre o infinito. Adentrando a idade média, o infinito é retomado na escolástica, doutrinas teológico-filosóficas caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a e a razão. Representam essa linha de pensamento: Santo Agostinho, que adota a visão platônica de que Deus era infinito e teria infinitos pensamentos; São Tomás de Aquino, que permitia o ilimitado de Deus, mas negava que fizesse coisas ilimitadas; e Nicolau de Cusa, cardeal católico e filósofo, que afirmou:

A verdade da imagem não pode ser vista tal como é em si através da imagem, porque a imagem nunca chega a ser o modelo, pois toda perfeição vem do exemplar que é a razão das coisas. Este é o jeito como Deus reluz com as coisas. Como consequência, o Absoluto é incompreensível, posto que o invisível não pode se transformar no visível, o infinito não se encontra no finito.

Nicolau de Cusa
Foi também na idade média que se descobriu um paradoxo com o infinito. Considere dois círculos concêntricos, sendo que o círculo maior tem o dobro do tamanho do raio do círculo menor:


Como a circunferência do círculo externo é duas vezes maior que a do círculo interno, então o círculo externo conteria uma quantidade infinita de pontos maior que a do círculo interno. Porém, quando desenhamos dois raios, o primeiro atinge o círculo interno no ponto P e o círculo externo no ponto equivalente P’, e o segundo raio atingirá o círculo interno no ponto Q e o círculo externo no ponto equivalente Q’; observe:


O paradoxo aqui é que, sendo de tamanhos diferentes, os círculos apresentam uma quantia diferente de pontos, ainda que infinitos. Porém, quando colocados em correspondência um-para-um, a quantia de pontos infinitos em ambos os círculos é igual. Na renascença, é Galileu Galilei quem apresenta o paradoxo dos quadrados, em sua obra Discorsi e dimostrazioni matematiche a due nuove scienze, de 1.638, conforme a seguir. Considere uma sequência de números naturais (em azul) e seus respectivos quadrados perfeitos (em vermelho), como mostrado a seguir:



A condição paradoxal emerge porque, por um lado, torna-se evidente que a maioria dos números naturais (em azul) não são quadrados perfeitos, de modo que o conjunto dos quadrados perfeitos é menor que o conjunto de todos os números naturais; observe:



Fica evidente há um espaço vazio entre dois quadrados perfeitos consecutivos e que entre esses espaços há números naturais que não são quadrados perfeitos, e esses espaços vazios tornam-se maiores à medida que a contagem aumenta. Por outro lado, como para cada número natural há seu correspondente quadrado perfeito, conclui-se que existem tantos números naturais quantos quadrados perfeitos. Em outras palavras, há uma correspondência um-para-um em ambas as sequências numéricas. Ao evidenciar esta estranha contradição, Galileu conclui:


Quando tentamos, com nossas mentes finitas, discutir o infinito, associamos a ele aquelas propriedades que aplicamos ao finito e limitado; mas penso que isto está errado, pois não somos capazes de falar de quantidades infinitas como uma sendo ou maior, ou menor, ou igual a outra.



Quem primeiro contextualizou o conceito de infinito e lhe deu um formato lógico e racional foi o matemático russo naturalizado alemão Georg Cantor.


Um jovem Georg Cantor

A estratégia do matemático para lidar de forma adequada com esse conceito foi extraordinariamente simples e genial: imagine que você tenha duas cestas de ovos e te peçam para contar qual destas cestas contém mais ovos.



Uma forma de verificação é tirar simultaneamente um ovo de cada cesta; aquela que primeiro ficar vazia será a que contém a menor quantia de ovos. Se ambas as cestas ficarem vazias ao mesmo tempo, então ambas terão a mesma quantidade de ovos. Ridículo? Pois é o que os matemáticos da época também pensaram sobre tal raciocínio, mas aí também reside a simplicidade das idéias geniais. A diferença é que Cantor utilizou números ao invés de ovos e chamou as cestas de conjuntos ou classes. Conjunto ou classe é uma coleção de coisas semelhantes, como ovos, bicicletas, segmentos de reta, figuras geométricas, tampinhas de garrafa, números ou qualquer outra coisa. Para compará-los, Cantor utilizou diferentes conjuntos: um apenas contendo números pares, outro contendo apenas ímpares, um terceiro contendo os números inteiros, um quarto contendo os números fracionários e ainda um quinto conjunto contendo apenas inteiros negativos e depois de montados passou a comparar estes conjuntos quanto ao seu tamanho, ou no jargão desse matemático, quanto à sua cardinalidade, através do emparelhamento de seus elementos. Se um conjunto qualquer tivesse para cada elemento um único elemento a ele associado do outro conjunto, então ambos os conjuntos teriam a mesma cardinalidade; do contrário, o conjunto com mais elementos seria aquele de maior cardinalidade ou tamanho. Ele começou comparando o conjunto dos números inteiros com o conjunto dos números inteiros pares e constatou que há a mesma quantidade de elementos em ambos. Observe:





Cantor concluiu que quando se trata de quantidades infinitas, o todo nem sempre é maior que cada uma de suas partes. De fato, a mesma cardinalidade é obtida quando comparamos os números naturais com inteiros negativos ímpares, números divisíveis por 5 ou múltiplos de 7, entre tantos outros exemplos:



Depois dessas constatações, Cantor concluiu que não existe um conjunto infinito menor que o dos números naturais e para representá-lo ele adotou o termo 'aleph zero' (pronuncia-se aléfi), utilizando para isso a primeira letra do alfabeto hebraico: ℵ0. Para diferenciar este número dos números finitos, o matemático cunhou o termo transfinito para qualificar o ℵ0. Não satisfeito, Cantor decidiu verificar se haveriam outros números transfinitos maiores que ℵ0, e suas dúvidas recaíram sobre os números racionais, uma vez que existem infinitos números racionais entre dois números inteiros; por exemplo, entre o 2 e o 3 há infinitas frações cujos valores situam-se entre estes dois números. A estratégia adotada por Cantor para solucionar este problema foi brilhante: para confirmar se o conjunto dos números racionais tem a mesma cardinalidade da dos números naturais, os racionais devem ser enumeráveis, ou seja, são passíveis de serem contados (como fazemos com os números inteiros), de modo que se consiga aplicar, na terminologia de Cantor, uma associação biunívoca entre cada elemento dos dois conjuntos. Se essa associação não for possível, é porque o conjunto dos racionais conterá mais elementos que o conjunto dos naturais, quer dizer, compõe um número transfinito maior que ℵ0. O fato é que Cantor provou que os números racionais são enumeráveis. Veja como: monte uma tabela em que as colunas (em azul) representam os numeradores e as linhas (em vermelho), os denominadores:



Observe que muitas das frações se repetem ao longo das células. Agora, enumeramos as frações, seguindo a sequência abaixo:



Seguindo este zigue-zague e descartando as frações repetidas, percorremos todas as linhas e colunas; se seguíssemos apenas a primeira linha enumerando suas frações não passaríamos nunca à segunda linha, pois todas as linhas e colunas seguem ao infinito. Seja seguindo uma única linha ou ziguezagueando entre linhas e colunas, obtemos enfim um conjunto enumerável. Observe:




A sequência acima, composta de números racionais, pode agora ser emparelhada com os números naturais:



Com esse estratagema genial, Cantor demonstrou que os números racionais formam um conjunto enumerável com a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais, constituindo outro número transfinito0. O conceito de números transfinitos tem implicações interessantes: considere o número irracional √2. Este número pode ser representado por uma dízima infinita não periódica, conforme abaixo:

$$ 1,4142135623730950488016887242097... $$

Se aplicarmos ao infinito o algoritmo de Herão para o cálculo da raiz quadrada de um número natural, obteremos a cada rodada deste processo infindável uma nova fração que se aproxima cada vez mais do limite sem nunca atingí-lo. Observe:

$$ \frac{17}{12};\frac{577}{408};\frac{665.857}{470.832}... $$

Que resultam em valores cada vez mais aproximados para √2:

$$ 1,41\overline{66666666666666666666666666667...} $$
$$ 1,41421\overline{5686274509803921568627451...} $$
$$ 1,41421356237\overline{46899106262955788901...} $$

Deste modo, assim como o limite da sucessão dos números naturais pode ser visto como o número transfinito0, também o limite da sequência infinita de frações obtidas pelo método de Herão pode ser visto como um número, a constante de Pitágoras ou √2, ficando este número definido apenas em termos de números racionais. Cantor apresentou uma sequência infinita de números racionais ainda mais simples para a √2:



Outra situação interessante ao trabalharmos com o infinito é a afirmação de que 0,9999... é igual a 1. Considere a figura a seguir:



Este círculo está dividido em 3 partes iguais, de modo que cada fatia corresponde a 1/3 do total. Em notação decimal, esta fração pode ser escrita como uma dízima periódica infinita:

$$ \frac{1}{3}=0,33333333333333... $$

A soma das 3 fatias resulta:

$$ \frac{1}{3}+\frac{1}{3}+\frac{1}{3}=\frac{1+1+1}{3}=\frac{3}{3}=1 $$

Em notação decimal, a soma das dízimas infinitas fornece:

$$ 0,33333333333333...+0,33333333333333...+0,33333333333333...= $$
$$ =0,9999999999999...=1 $$


O limite da dízima periódica infinita 0,99999999999... pode ser visto como um número em si mesmo: o número 1! O estudo sobre o infinito iniciado por Cantor embasou a moderna teoria dos conjuntos, que aprendemos na escola e onde temos:


  • Conjunto dos números naturais, representado pela letra N: 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números inteiros, representado pela letra Z: ..., -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números racionais, representado pela letra Q: para qualquer número que possa ser representado na forma de uma fração (com denominador diferente de zero);
  • Conjunto dos números reais, representado pela letra R e do qual fazem parte os números irracionais, dentre outros.


A representação destes conjuntos é comumente feita por meio dos diagramas de Venn, conforme segue:


A lógica de classes inclui um desdobramento do conceito de cardinalidade no estudo sobre o infinito, quando se afirma que o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números inteiros, que está contido no conjunto dos números racionais, que está contido no conjunto dos números reais, ou seja:

$$ \mathbb{N}\subset \mathbb{Z}\subset \mathbb{Q}\subset \mathbb{R} $$

Os conjuntos dos números naturais, números inteiros e números racionais são todos números transfinitos0. O infinito também se aplica às formas geométricas; exemplo disso é a fita de Möbius, um espaço topológico obtido pela colagem das extremidades de uma fita (após efetuado meia volta em uma delas) que representa um caminho sem fim nem início, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um.

Formigas caminhando sobre uma fita de Möbius, obra de 1.963 do artista M.C. Escher
Esta figura recebe seu nome do matemático alemão August Ferdinand Möbius, quando estudava em 1.858 a teoria geométrica dos poliedros. Esse espaço topológico é semelhante ao símbolo de infinito (∞) tal como é utilizado atualmente, cuja introdução é creditada ao matemático John Wallis, em sua obra De sectionibus conicis, de 1.655. O ∞ também é chamado de lemniscata. Outro espaço topológico curioso é a garrafa de Klein, uma superfície não orientável e sem bordas, obtida pela colagem de duas fitas de Möbius. Foi estudada pelo matemático alemão Felix Christian Klein.

A garrafa de Klein, estudada pelo matemático alemão Felix Klein
Encerramos com estas topologias a breve introdução sobre o infinito, tendo começado pelo entendimento que as antigas civilizações tinham desse conceito até sua racionalização com o tratamento matemático dado por Georg Cantor.

terça-feira, fevereiro 21, 2017

As origens da raiz quadrada

Plaquetas de argila babilônicas, conhecidas pela sigla BM 15285, datadas entre 2.000 e 1.600 a.C., e que apresentam uma série de exercícios matemáticos em língua acadiana. O exercício indicado pela seta azul diz: “O lado do quadrado é igual a 1. Desenhei quatro triângulos nele. Quais suas áreas superficiais?”
Longo e pitoresco foi o avanço e o entendimento do conceito das raízes quadradas ao longo do tempo, até chegar à sua conceituação moderna. Para os babilônios, por exemplo, não existe nenhuma indicação de que classificassem os números entre inteiros, racionais ou irracionais. Todas as evidências arqueológicas encontradas até hoje se resumem a plaquetas de argila cozida contendo problemas com ou sem enunciado e sua solução sem maiores explicações. Exemplo desse tipo de artefato é a plaqueta conhecida pela sigla YBC7289 indicada a seguir:

À esquerda: plaqueta de argila cozida babilônica, conhecida pela sigla YBC7289. À direita: ilustração dessa mesma plaqueta, enfatizando a escrita cuneiforme.
Esta plaqueta provavelmente é um exercício escolar de um estudante (aspirante a escriba). Na parte superior esquerda da plaqueta, observamos o seguinte glifo:

Que na notação matemática babilônica corresponde a 30 e indica o tamanho do lado do quadrado. E na diagonal horizontal, temos dois conjuntos de glifos, sendo o primeiro:


Que corresponde à sequência numérica: 1, 24, 51, 10. E o segundo conjunto de glifos:


Que corresponde à sequência numérica: 42, 25, 35. Já vimos em capítulos anteriores que a primeira sequência numérica equivale a frações, cuja representação moderna é a que se segue:

$$ 1+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60}=\frac{305.470}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 1,41421\overline{296296}... $$

Que é também conhecido por constante de Pitágoras. Este número, multiplicado pelo lado do quadrado (que vale 30), fornece como resultado:

$$ 42,426\overline{38888}... $$

Que corresponde ao tamanho da diagonal do quadrado. A segunda sequência numérica, que também equivale a frações, se expressa da seguinte forma na notação matemática moderna:

$$ \frac{42}{60}+\frac{25}{60\times 60}+\frac{35}{60\times 60\times 60}=\frac{152.735}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 0,707106\overline{481481}... $$

Estes números guardam também uma relação entre si; observe:

$$ 1,41421\overline{296296}...=\frac{1}{0,707106\overline{481481}...} $$

Ou seja, as duas sequências numéricas em grafia cuneiforme são recíprocas. É muito comum na matemática babilônica o uso de frações recíprocas. Não seria um completo absurdo supor que a lição contida na plaqueta de argila executada pelo aprendiz de escriba fosse esta: para qualquer quadrado, o tamanho de suas diagonais é o produto do tamanho do lado pela constante de Pitágoras. Isto porque a plaqueta de argila não possui nenhum enunciado: contém apenas uma figura geométrica com três números. Ao que tudo indica os egípcios também lidavam com esse tipo de cálculo. Um dos poucos exemplos existentes é encontrado no papiro de Berlim 6619, ou simplesmente, papiro de Berlim.


Reprodução do papiro de Berlim 6619
Em um fragmento do documento IV.4 deste papiro, depois da sexta linha, surge o hieróglifo abaixo:


Cuja pronúncia é quenebete e que significa 'quina' ou 'ângulo', seguido da soma de frações unitárias abaixo, conforme a tradição egípcia:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16} $$

O problema exige uma boa dose de interpretação para se tornar compreensível, pois como é de praxe, os egípcios não explicam como se chega ao resultado indicado. Primeiro, vejamos qual é a fração resultante desta soma de frações unitárias:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16}=\frac{16+8+1}{16}=\frac{25}{16} $$

Considerando que a fração 25/16 corresponda à área de um quadrado:



Pergunta-se: quanto vale o lado do quadrado, sabendo-se que sua área é igual a 25/16? Como a área de um quadrado é obtida multiplicando-se um lado por ele mesmo, o hieróglifo quenebete bem que poderia, em termos matemáticos, sugerir a multiplicação de dois lados do quadrado para a obtenção de sua área, que é o mesmo que elevar ao quadrado ou aplicar a potenciação, ou seja:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

O problema agora se resume em encontrar um número que multiplicado por ele mesmo resulte na área do quadrado. Este número corresponderá ao tamanho do lado do quadrado. Assim:

$$ Area=\frac{25}{16}=lado^{2}=lado\times lado $$

Esse resultado, aparentemente, também é uma fração. Então, podemos reescrever a equação acima deste modo:

$$ \frac{25}{16}=lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square } $$

Que número no numerador (indicado pelas cartelas pretas) que multiplicado por ele mesmo resulta 25? E que número no denominador (indicado pelas cartelas brancas) que multiplicado por ele mesmo resulta 16? Para quem estudou potenciação, ou pelo menos se lembra das tabuadas, já sabe a resposta:

$$ lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square }=\frac{5}{4}\times \frac{5}{4}=\frac{25}{16} $$

Portanto, o lado de um quadrado de área 25/16 é igual a 5/4. De fato, a resposta ao problema no papiro é esta:

$$ 1+\frac{1}{4} $$

Na notação fracionária egípcia, que só admitia frações unitárias. Esta soma de frações corresponde a:

$$ 1+\frac{1}{4}=\frac{4+1}{4}=\frac{5}{4} $$

Que é a solução encontrada para o tamanho do lado do quadrado. Os gregos também utilizavam geometria como ferramenta para o cálculo do valor do lado de um quadrado a partir de sua área. O matemático Téon de Alexandria (335 d.C. a 395 d.C.), pai de Hipátia e um grande comentador de obras gregas clássicas, apresenta na obra Almagesto (tratado matemático e astronômico escrito no século II d.C. por Cláudio Ptolomeu), um comentário onde demonstra um método geométrico para o cálculo do lado de um quadrado. O método é o seguinte: considere um quadrado cuja área seja igual a 144, conforme ilustrado abaixo:



Deseja-se descobrir qual o tamanho do lado deste quadrado; para isso, Téon inicia com um 'chute', atribuindo o valor 10 como sendo o tamanho do lado. Já que a área de um quadrado é dada por:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

Então, com o valor estimado, a área do quadrado será:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2}=\left ( 10 \right )^{2}=100 $$

Como a área obtida é menor que a área real, ajusta-se a figura conforme segue:



O lado do quadrado é maior que 10 de uma quantidade indicada por um ponto de interrogação (?). A área que restou do quadrado laranja pode ser segmentado em 3 partes, conforme indicado:



Nesta nova configuração, o retângulo laranja na horizontal possui as seguintes dimensões: 10 de largura e (?) de altura. Por outro lado, o retângulo laranja na vertical possui as dimensões: (?) de largura e 10 de altura. Finalmente, o quadrado verde tem lado igual a (?). As áreas dos dois quadrados (azul e verde) e dos dois retângulos laranjas são assim calculados:

$$ Area\left (quadrado.azul  \right )=10\times 10=10^{2}=100 $$
$$ Area\left (quadrado.verde  \right )=?\times ?=?^{2} $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.horizontal  \right )=10\times ? $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.vertical  \right )=?\times 10 $$

Somando as áreas das 4 figuras geométricas, obtemos o valor da área total, que é 144. Então:

$$ 100+?^{2}+\left ( 10\times ? \right )+\left ( ?\times 10 \right )=144 $$

Agora, vem a pergunta: que número deve ser colocado no lugar do ponto de interrogação para que a soma à esquerda se iguale a 144? Bom, vamos começar substituindo o ponto de interrogação pelo número 1. Teremos:

$$ 100+1^{2}+\left ( 10\times 1 \right )+\left ( 1\times 10 \right ) $$
$$ 100+1+10+10=121 $$

Observe que o valor obtido (121) é menor que 144. Então, vamos aumentar esse valor, substituindo o ponto de interrogação por 2. Obtemos:

$$ 100+2^{2}+\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 10 \right ) $$
$$ 100+4+20+20=144 $$

Ótimo! Agora o número obtido é igual ao valor da área do quadrado laranja original. Então, o lado do quadrado laranja vale: 10 + 2 = 12. E sua área é: 12 × 12 = 144.



Por muito improvável que possa parecer, tudo o que foi apresentado até agora trata de raízes quadradas! Vejamos por que: o cálculo do lado ou da diagonal de um quadrado pode resultar em um número inteiro ou, muito comumente, em um número irracional. Quando o cálculo do lado ou da diagonal do quadrado resultava em um número irracional, já vimos que os povos antigos faziam uso de frações para descrever esses números de modo aproximado, pois era a melhor ferramenta de que dispunham para descrever seu valor. As técnicas e geometrias desenvolvidas pelos babilônios, pelos egípcios e principalmente pelos gregos para o cálculo de lados e diagonais de quadrados foram transmitidas posteriormente para os povos árabes. Diversos matemáticos islâmicos (sendo Al-Khwarizmi o mais notório deles) traduziram esses textos matemáticos para o árabe. Por sua vez, esses textos árabes foram levados para a Europa através da península ibérica durante o califado Omíada e convertidos posteriormente para o latim por diversos tradutores, entre os quais destacam-se: João de Sevilha (também conhecido como Johannes Hispaniensis), Domingo Gundisalvo e Gerardo de Cremona, num período compreendido entre 1.135 e 1.162 d.C.; muitas dessas traduções foram realizadas em Toledo, na Espanha, que naquela época era um importante centro cultural. Pois bem: nos textos matemáticos árabes, o termo 'lado do quadrado' foi traduzido para o latim em duas variações: a correta latus quadratum (onde latus é lado em português) e a equivocada radix quadratum, em que radix significa raiz em português. A palavra latus foi sendo gradualmente substituída pela letra l, conforme o modelo abaixo:


E a palavra radix também foi sendo gradualmente substituída pela letra R, conforme abaixo:


Fato é que, apesar de equivocada, a tradução do termo em árabe 'lado do quadrado' para o latim radix quadratum prevaleceu sobre a tradução latus quadratum. Já o símbolo moderno de raiz (√) surge pela primeira vez em 1.525 na obra Die Coss, do matemático alemão Christoff Rudolff. O matemático suíço Leonhard Euler afirma em sua obra Institutiones calculi differentialis, de 1.755, o seguinte: no lugar da letra r, inicialmente indicada para radix, agora passou-se para o uso comum desta forma distorcida de √. É por isso que até hoje dizemos raiz quadrada para aquilo que antigamente estava relacionado ao cálculo do lado do quadrado a partir de sua área ou da diagonal do quadrado a partir de seus lados.


Página do “Die Coss”, de Christoff Rudolff. Observe os símbolos da raiz quadrada ao longo de todo o texto. O termo 'quadrat wurtzel', que aparece destacado em vermelho ao final da primeira linha do texto, significa 'raiz quadrada' em alemão.
Com esse conceito em mente, fica mais fácil entender o significado do que é raiz quadrada. Vejamos através de um exemplo: dado um quadrado de área 42, quanto vale o seu lado?



Sabemos que a área dessa figura geométrica é igual ao lado elevado ao quadrado:

$$ Area=lado^{2} $$

Que número elevado ao quadrado resulta 42? Se escolhermos o número 6, teremos:

$$ 6^{2}=6\times 6=36 $$

O resultado obtido (36) é menor que a área do quadrado (42). Se adotarmos o valor 7 para o lado do quadrado, teremos:

$$ 7^{2}=7\times 7=49 $$

Agora o resultado obtido (49) é maior que a área do quadrado (42). Portanto, o tamanho do lado do quadrado está entre 6 e 7, ou seja, não é um número inteiro. Em latim, diríamos: radix quadratum 42 aequalis, ou seja, o lado do quadrado [de área] 42 é igual a:

$$ lado=\sqrt{42} $$

Onde √42 (lê-se: raiz quadrada de 42) é a representação matemática moderna para o tamanho do lado do quadrado, um número cujo valor está entre 6 e 7 e que para babilônios, egípcios, gregos e outras civilizações antigas tinha seu valor representado por uma fração! Se fosse um número racional, a fração seria uma representação exata desse número; se fosse irracional, a fração representaria um valor aproximado.



Se a √42 é um número cujo valor é maior que 6 e menor que 7, então em notação decimal moderna, que número é esse? Herão de Alexandria (10 d.C. a 80 d.C.) foi um matemático e mecânico grego que criou um método poderoso para a obtenção da raiz quadrada de qualquer número inteiro que não seja um quadrado perfeito. Por exemplo, o número 9 é um quadrado perfeito, pois 3 x 3 = 9, assim como 64 é outro quadrado perfeito, pois 8 x 8 = 64. Para números que sejam quadrados perfeitos, ou seja, que são o produto de um número inteiro multiplicado por ele mesmo, o método demonstrado por Herão não se aplica! O método funciona assim: se o número que estamos procurando está entre 6 e 7, vamos tirar a média entre estes dois valores:

$$ Media=\frac{6+7}{2}=\frac{13}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela fração 13/2, resultando:

$$ \frac{42}{\frac{13}{2}}=\frac{42\times 2}{13}=\frac{84}{13} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (84/13) à fração inicial (13/2):

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 13 (que é 26), vem:

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13}=\frac{169+168}{26}=\frac{337}{26} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (337/26), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{337}{26}}{2}=\frac{337}{26}\times \frac{1}{2}=\frac{337}{52} $$

A fração obtida (337/52) é a primeira aproximação para √42, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{337}{52}=6,4807\overline{6923}... $$

Se quisermos aumentar essa precisão (já que uma fração pode sempre se aproximar cada vez mais do valor de um número irracional, sem, contudo, representar seu valor exato), repetimos o processo. Assim, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela nova fração (337/52), resultando:

$$ \frac{42}{\frac{337}{52}}=\frac{42\times 52}{337}=\frac{2.184}{337} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (2.184/337) à fração inicial (337/52):

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 52 e 337 (que é 17.524), vem:

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337}=\frac{113.569+113.568}{17.524}=\frac{227.137}{17.524} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (227.137/17.524), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{227.137}{17.524}}{2}=\frac{227.137}{17.524}\times \frac{1}{2}=\frac{227.137}{35.048} $$

A fração resultante (227.137/35.048) é o novo valor de √42, mais refinado que aquele obtido com a fração (337/52). O método de Herão pode prosseguir indefinidamente, quanto maior for a precisão desejada. Desse modo, o número irracional procurado, em notação decimal, será:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{227.137}{35.048}=6,4807406984\overline{7066}... $$

Observe a eficiência deste método: com apenas uma rodada foi alcançada uma precisão de 4 casas decimais e com duas rodadas, alcançou-se 9 casas decimais de precisão! Vejamos mais um exemplo: calcule a diagonal de um quadrado de lado igual a 1.



A diagonal divide o quadrado em dois triângulos retângulos. Como já apresentado no capítulo anterior, o Teorema de Pitágoras estabelece que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Adaptando para o quadrado, podemos afirmar que o quadrado da diagonal é igual à soma dos quadrados dos lados. Ou seja:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Substituindo, temos:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=1+1=2 $$

Pergunta: que número elevado ao quadrado resulta 2? Também já foi visto no capítulo anterior que não existe um número inteiro que multiplicado por ele mesmo, ou elevado ao quadrado, resulte 2, tampouco se trata de um número racional (ou seja, obtido a partir de uma razão). Logo, esse é um número irracional. Sabendo-se que:

$$ diagonal^{2}=diagonal\times diagonal $$

Se aplicarmos a raiz quadrada em ambos os termos da igualdade para mantê-la inalterada, vem:

$$ diagonal^{2}=2 $$
$$ \sqrt{diagonal^{2}}=\sqrt{2} $$

A raiz quadrada da diagonal elevada ao quadrado equivale à própria diagonal, que por sua vez é igual à raiz quadrada de 2, uma notação matemática que representa o número irracional que é a medida da diagonal do quadrado de lado igual a 1. Assim, a diagonal do quadrado [de lado] 1 é igual a:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$

Em notação decimal, que número é √2? Como esse número é maior que 1 e menor que 2, vamos aplicar o método de Herão para descobrir seu valor aproximado na forma fracionária. Para isso, vamos estimar um valor inicial para esse número, tirando a média entre 1 e 2:

$$ Media=\frac{1+2}{2}=\frac{3}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela fração 3/2, resultando:

$$ \frac{2}{\frac{3}{2}}=\frac{2\times 2}{3}=\frac{4}{3} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (4/3) à fração inicial (3/2):

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 3 (que é 6), vem:

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2}=\frac{8+9}{6}=\frac{17}{6} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (17/6), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{17}{6}}{2}=\frac{17}{6}\times \frac{1}{2}=\frac{17}{12} $$

A fração obtida (17/12) é a primeira aproximação para √2, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{17}{12}=1,41\overline{6666}... $$

Repetindo o processo para melhorar a precisão, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela nova fração (17/12), resultando:

$$ \frac{2}{\frac{17}{12}}=\frac{2\times 12}{17}=\frac{24}{17} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (24/17) à fração inicial (17/12):

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 12 e 17 (que é 204), vem:

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17}=\frac{289=288}{204}=\frac{577}{204} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (577/204), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{577}{204}}{2}=\frac{577}{204}\times \frac{1}{2}=\frac{577}{408} $$

A fração resultante (577/408) é o novo valor de √2, mais refinado que o obtido com a fração (17/12). Desse modo, temos:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{577}{408}=1,41421\overline{5686}... $$

Observe: √2 é a notação matemática moderna para a constante de Pitágoras, que é um resultado muito próximo daquele apresentado pelo aprendiz de escriba babilônio em sua plaqueta de argila. Foram demonstrados com estes dois exemplos como calcular o tamanho do lado ou o tamanho da diagonal de um quadrado, e que este tamanho, ou magnitude, resultou em um número irracional, que por sua vez é representado na notação matemática moderna pelo símbolo de raiz (√), e que o número contido no símbolo de raiz é o quadrado do número irracional. De fato:

$$ \left ( 6,4807406984\overline{7066}... \right )^{2}\cong 42 $$
$$ 6,4807406984\overline{7066}... \cong \sqrt{42} $$

E:

$$ \left ( 1,41421\overline{5686}... \right )^{2}\cong 2 $$
$$ 1,41421\overline{5686}... \cong \sqrt{2} $$

Se Herão de Alexandria demonstrou um método aritmético para calcular raízes quadradas de números inteiros que não sejam quadrados perfeitos, outro grego bem antes dele – Teodoro de Cirene – desenvolveu um método geométrico para obter magnitudes comensuráveis ou incomensuráveis (ou seja, números inteiros ou irracionais) a partir de uma magnitude comensurável. Teodoro viveu no século V a.C., tendo sido aluno de Protágoras e professor de Platão e Teeteto. Nenhum texto de Teodoro sobreviveu aos nossos dias e a referência que temos dessa técnica aparece no Diálogos de Platão – Teeteto de Crátila. Neste manuscrito, em que Sócrates debate com Teeteto (aluno de Teodoro) sobre o que seria o conhecimento, o diálogo se desenrola nestes termos: 

[...]
Teeteto - Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu homônimo.
Sócrates - Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto - A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa única, que serviria para designar todas.
Sócrates- E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto - Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates - Podes falar.
Teeteto - Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela multi-plicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os designamos pelos nomes de quadrado e de equilátero.
Sócrates- Muito bem.
Teeteto - Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates - Ótimo! E depois?
Teeteto - Todas as linhas que formam um quadrado de número plano eqüilátero, defini-mos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes, por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas superfícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.
Sócrates - Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser acoimado de falso testemunho.
[...]


O método geométrico é o seguinte: comece desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1, conforme indicado abaixo.


Pelo teorema de Pitágoras, sabemos que:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Assim:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=2 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$


Sem novidades, já vimos este resultado algumas vezes. Agora, a partir da diagonal, vamos construir outro triângulo retângulo, com um de seus lados com magnitude igual a 1 e o outro lado (tomando como referência a diagonal) com magnitude igual a √2:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{2} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{2}\times \sqrt{2} \right )=1+\sqrt{2^{2}}=1+2=3 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{3} $$


Repetindo este procedimento, montamos um novo triângulo equilátero, em que um dos lados tenha magnitude igual a 1 e o outro lado magnitude igual a √3:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{3} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{3}\times \sqrt{3} \right )=1+\sqrt{3^{2}}=1+3=4 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{4}=\sqrt{2\times 2}=2 $$


E assim sucessivamente, construindo triângulos retângulos em que um dos lados tem sempre magnitude igual a 1 e o outro lado tem magnitude igual à diagonal do triângulo anterior, vamos montando uma espiral, conforme abaixo:


Esta espiral vai até √17, que é o exemplo que Teodoro apresentou a seu aluno Teeteto e que aparece nos diálogos de Platão. De fato, esta espiral pode prosseguir indefinidamente, como mostra a figura abaixo:


Outra curiosidade é que, quanto mais voltas a espiral dá, mais a distância entre duas voltas consecutivas se aproxima do número π, um número irracional que também surge da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo!


Esta espiral é mais conhecida pelos nomes: Espiral de Raiz Quadrada ou Espiral de Teodoro.


Aprendemos na escola que uma fração não deve conter um número irracional, como é o caso das raízes quadradas, onde o radicando, ou seja, o número dentro do radical (√) não seja um quadrado perfeito. Nestes casos, aprendemos a racionalizar o denominador para eliminar o número irracional dele. Sendo assim, considere a fração:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}} $$

Como ela possui um número irracional no denominador (a já conhecida constante de Pitágoras), torna-se necessário racionalizar o denominador. Isto é feito multiplicando-se a fração 1/√2 por:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}} $$

A fração √2/√2 é igual a 1; logo, multiplicar qualquer número (neste caso, a fração 1/√2) por 1 não altera o seu resultado. Temos:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}}=\frac{1\times \sqrt{2}}{\sqrt{2}\times \sqrt{2}}=\frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2^{2}}}=\frac{\sqrt{2}}{2} $$

Significa que a fração resultante (√2/2) equivale à fração original (1/√2). Mas afinal, se ambas as frações são equivalentes, porque gastar energia racionalizando o denominador? Ora, já sabemos que os gregos eram geômetras por excelência e que as magnitudes incomensuráveis para eles (ou números irracionais) geravam uma série de complicações matemáticas e filosóficas. Imagine que não seria de bom tom para um geômetra grego ter um segmento de reta de magnitude igual a 1 e querer dividí-lo por √2, um valor que não podia ser corretamente mensurado com régua e compasso! Então, o que eles faziam? Racionalizavam o denominador, ou seja, transformavam o divisor em um número racional que pudesse ser traduzido por um segmento de reta cuja magnitude fosse mensurável. Neste caso, para obterem geometricamente a magnitude da fração resultante (√2/2), eles começavam (por exemplo) desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1:


Pelo teorema de Pitágoras, já sabemos que a hipotenusa deste triângulo vale √2. Agora, com régua e compasso somos capazes de dividir a hipotenusa do triângulo à metade, que é o mesmo que dividí-la por 2. Mesmo que a magnitude da hipotenusa seja incomensurável (ou seja, possua uma medida irracional), e que ao dividí-la ao meio geramos outros dois segmentos com magnitudes igualmente incomensuráveis, o resultado agora é geometricamente possível. Com um compasso, coloque a ponta seca no ponto A e abrindo-o até C, trace um arco. Siga o mesmo procedimento com a ponta seca em B e abertura até o ponto C, desenhando outro arco:


Por fim, trace uma reta passando pelos cruzamentos entre os dois arcos:


O segmento AB, ou seja, a hipotenusa do triângulo retângulo, com magnitude incomensurável igual a √2, está agora dividida ao meio. Cada metade, portanto, vale √2/2:


A fração √2/2, equivalente a 1/√2, fornece o valor procurado e é possível de se obter com régua e compasso, o que convinha muito aos valorosos geômetras gregos. E é por isso que até hoje seguimos o exemplo deles, racionalizando o denominador, ainda que não nos seja exigida sua prova geométrica.


Assim como a potenciação, a radiciação também possui algumas propriedades básicas: uma delas diz que a raiz não se modifica quando multiplicamos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Observe:

$$ \sqrt[3]{7^{2}}=\sqrt[3\times 2]{7^{2\times 2}}=\sqrt[6]{7^{4}} $$

De modo análogo, a raiz não se modifica quando dividimos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Assim:

$$ \sqrt[12]{56^{8}}=\sqrt[12/4]{56^{8/4}}=\sqrt[3]{56^{2}} $$

Outra propriedade afirma que o produto de radicais de mesmo índice é igual à raiz do produto dos radicandos. Veja:

$$ \sqrt{3}\times \sqrt{11}=\sqrt{3\times 11}=\sqrt{33} $$

Analogamente, uma raiz com um índice qualquer, cujo radicando é um quociente, equivale ao quociente das raízes de mesmo índice dos radicandos:

$$ \sqrt[4]{\frac{5}{8}}=\frac{\sqrt[4]{5}}{\sqrt[4]{8}} $$

Outra propriedade afirma que uma raiz elevada a uma potência qualquer equivale à mesma raiz com o radicando elevado a essa potência:

$$ \left ( \sqrt[3]{5} \right )^{4}=\sqrt[3]{5^{4}} $$

Finalmente, uma raiz que seja ao mesmo tempo o radicando de outra raiz equivale a uma raiz cujo índice é o produto dos índices das raízes originais:

$$ \sqrt[3]{\sqrt[5]{13}}=\sqrt[3\times 5]{13}=\sqrt[15]{13} $$

Existe também o caso em que um número multiplicando uma raiz equivale a transformar esse número no radicando, desde que elevado a uma potência igual ao índice dessa raiz:

$$ 2\times \sqrt[3]{5}=\sqrt[3]{5\times 2^{3}} $$

Outro exemplo, agora com frações:

$$ \frac{1}{6}\times \sqrt[4]{7}=\sqrt[4]{7\times \left ( \frac{1}{6} \right )^{4}}=\sqrt[4]{7\times \frac{1}{6^{4}}} $$

Muito bem! Tivemos um panorama geral sobre a origem das raízes quadradas e de como esse conceito matemático evoluiu até chegar ao símbolo de √ dos nossos dias, bem como obter um valor aproximado por meio de frações quando geram um número irracional, ou desenhá-las através da geometria dos antigos gregos utilizando-se de magnitudes comensuráveis e incomensuráveis, finalizando com uma rápida abordagem sobre as propriedades da radiciação. Mais uma vez, evidencia-se que o uso da geometria e da aritmética com frações foram indispensáveis no entendimento desse conceito matemático na antiguidade e podem ainda hoje ser de grande valia como ferramentas de ensino. E o próximo tema a ser abordado é muito interessante, pois gerou diversas controvérsias no mundo acadêmico matemático: os números negativos.