Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

quinta-feira, março 09, 2017

O infinito: uma breve abordagem

Pirâmides de Sierpinski. Esta estrutura é um fractal formado por triângulos equiláteros que podem replicar-se no mesmo padrão infinitamente.
O infinito suscita variadas interpretações. Para o pintor renascentista, o infinito está nos pontos de fuga de suas telas, dando a sensação de uma distância infinita ao observador, e servem para retratar realisticamente o espaço, as distâncias e os objetos de um determinado ponto de vista.

Técnica da aplicação dos pontos de fuga, obra de Hans Vredeman de Vries, de 1.608
Para os místicos, por outro lado, o infinito pode significar Deus ou o Absoluto, e para os filósofos estar relacionado com a eternidade. Já para o trovador medieval, infinito são o amor por sua donzela e a dor de não ser correspondido. Porém, é na matemática que o infinito está mais intimamente relacionado e foram os matemáticos que deram as maiores contribuições para sua compreensão. Iniciando nossa caminhada pela história rumo ao infinito, vejamos como povos antigos lidavam com esse tema, partindo da civilização maia.


Os maias foram não somente grandes matemáticos, mas também astrônomos brilhantes, a ponto de criarem um calendário − conhecido também como 'roda calendárica' – que, baseado em seu sistema numérico vigesimal, permitia-lhes calcular o tempo com grande precisão; de fato uma de suas maiores realizações na astronomia. Os maias creditavam à divindade Itzamna o ensinamento do sistema de calendários, junto com a escrita e outros aspectos de sua cultura.

A roda calendárica maia
O calendário maia é constituído de 3 rodas: a menor, interna, possui 13 divisões; a roda intermediária contém 20 divisões e a externa, 19 divisões. A roda interna (que representa dias) engrenada à roda intermediária (que representa meses) perfazem um ciclo correspondente a um ano de 260 dias (13 dias × 20 meses) e constituem o calendário religioso, ou Tzolkin na língua maia. Era utilizado para determinar o momento de eventos religiosos e cerimoniais. Além do calendário ritualístico, os maias também tinham o calendário solar, conhecido como Haab, em que a roda externa, com 19 divisões (ou dias) trabalha em conjunto com a roda intermediária de 20 divisões, perfazendo um ano solar de 360 dias (18 dias × 20 meses) mais a 19ª divisão de apenas 5 dias. Estes 5 dias que faltam para completar um ano solar de 365 dias eram chamados de uayeb, ou "aqueles que não têm nome". Os maias consideravam-nos como "dias fantasmas" e qualquer um que nascesse em um deles teria má sorte e permaneceria pobre e miserável por toda a vida. Além disso, nesses dias os portais entre o reino mortal e o submundo desapareciam, sem limites que impedissem que deidades mal-intencionadas causassem desastres. A combinação das três rodas gerava ainda um terceiro calendário, que os maias chamavam de Contagem longa. O mínimo múltiplo comum entre o ano religioso (de 260 dias) e o solar (de 365 dias) é 18.980 dias, ou seja, a cada 52 anos solares (18.980/365) ou a cada 73 anos religiosos (18.980/260), as rodas retornavam à mesma posição inicial que tinham 18.980 dias antes. A contagem longa inicia-se em um ponto místico situado em 3.114 a.C. e considerado pelos próprios maias como o momento da criação de sua civilização. O cálculo de datas neste sistema calendárico era feito numa base vigesimal modificada, contendo em geral cinco números sequenciais, como no exemplo abaixo:

$$ \left [ 8;14;3;1;12 \right ] $$

Para saber qual data em nosso calendário corresponde essa sequência numérica, procedemos à seguinte conta, começando da direita para a esquerda:

$$ \left ( 12\times 20^{0} \right )+\left ( 1\times 20^{1} \right )+\left ( 3\times 18\times 20^{1} \right )+\left ( 14\times 18\times 20^{2} \right )+\left ( 8\times 18\times 20^{3} \right ) $$

Observe: a partir do terceiro termo, ao invés de multiplicarem o número da sequência (neste caso o 3) por 20 ao quadrado, os maias iniciavam a multiplicação por 18 seguido da multiplicação por potências de 20, daí porque essa contagem não era vigesimal pura. O resultado dessa conta é de 1.253.912 dias corridos, que se iniciam em 3.114 a.C., chegando a cerca de 321 d.C. em nosso calendário. Neste sistema, um dia era denominado kin, 20 kin perfaziam um mês (uinal), 18 uinal perfaziam um ano (tun). Com 20 tun chegava-se a 1 katun (20 anos), 20 katun equivaliam a 1 baktun (360 anos) e 20 baktun perfaziam 1 pictun (7.200 anos). A maioria das inscrições maias da contagem longa limitam-se em registrar somente os 5 primeiros coeficientes, mas existem inscrições que apontam ou implicam em sequências maiores que 5, gerando contagens muito mais longas, o que leva a crer que essa incrível civilização tivesse alguma noção do ilimitado, infindável esticamento do tempo, ou infinito potencial. O infinito potencial é a forma mais natural e intuitiva de conceber o infinito, sendo nesta concepção algo que pode aumentar, continuar ou estender tanto quanto se queira, como é o caso dos números naturais:

$$ 1,2,3,4,5,6,7,8,9... $$

Sempre é possível somar mais um número à sequência, estendendo-a indefinidamente, ou seja, é uma sucessão infinita de elementos discretos, infinitamente extensíveis. Considere, porém, um segmento de reta: apesar de limitado em sua extensão, é um contínuo de pontos onde não faz sentido falar do elemento seguinte, pois entre um ponto e outro da reta sempre é possível haver um ponto intermediário, o que faz com que um segmento de reta, finito, seja infinitamente divisível. Este segundo tipo de infinito é denominado infinito atual. Para a civilização grega, o infinito foi sempre um conceito problemático. Para os pitagóricos, em que tudo em seu mundo era número, o finito estava associado ao bem e o infinito ao mal. Leucipo de Mileto (século V a.C.) e seu discípulo Demócrito de Abdera (460 a.C. a 370 a.C.) deram às quantias infinitamente pequenas um limite, abaixo do qual não haveria possibilidade de divisão, e que denominaram de átomos. Zenão de Eléia (485 a.C. a 430 a.C.) foi um crítico da multiplicidade, que expunha através de seus paradoxos:

Se a multiplicidade existe, as coisas serão ao mesmo tempo limitadas e infinitas em número. Se a multiplicidade existe, as coisas, ao mesmo tempo, serão infinitas em tamanho e não terão tamanho algum.

O segmento de reta finito, com seus infinitos pontos, é uma boa representação dessa contradição. Seguindo essa linha de pensamento, Zenão afirmava que percorrer infinitos pontos de um percurso (segmento de reta) num tempo finito é impossível, de modo que o movimento seria apenas uma ilusão.  O paradoxo da dicotomia é bastante didático nesse aspecto:

"Aquilo que está em movimento deve alcançar a metade do percurso antes de chegar à meta"

A representação desse paradoxo já foi vista no capítulo dos números irracionais:

Mas porque este paradoxo não funciona? Considere que o percurso completo possa ser representado por um quadrado de área igual a 1, onde essa área unitária representa o trajeto como um todo:


Para que o atleta percorra o caminho inteiro, é preciso que ele alcance metade do trajeto, o que se traduz como:


Para percorrer metade do trajeto, antes é necessário que o atleta alcance um quarto do caminho (metade de 1/2):


Para percorrer um quarto do caminho, antes o atleta tem que avançar um oitavo do percurso (metade de 1/4):


Para percorrer um oitavo do caminho, antes o atleta deve alcançar a décima sexta parte do trajeto (metade de 1/8):


Seguindo esse procedimento, para atingir a décima sexta parte do trajeto, antes o atleta deve alcançar a trigésima segunda parte do percurso (metade de 1/16):


A tendência é de que os avanços, cada vez mais infinitesimais, perfaçam o trajeto completo:


Em termos fracionários, temos:

$$ \frac{1}{2}+\frac{1}{4}+\frac{1}{8}+\frac{1}{16}+\frac{1}{32}+\frac{1}{64}+...=1 $$

A verdade é que num tempo finito percorre-se uma quantidade infinita de trechos infinitesimais, o que em filosofia é denominado super-tarefa, de modo que o movimento é real e não uma ilusão como afirmava Zenão. Para Platão (428? a.C. a 347? a.C.), o potencial de extensão era considerado limitado, finito; o conceito de infinito propriamente dito era algo irracional, impensável, sem sentido. Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), discípulo de Platão, aceitava o infinito potencial, como o dos números inteiros, onde se pode sempre somar mais um para se obter um número maior, mas o conjunto infinito de números como tal não existe. Argumentava também que a maioria das magnitudes sequer poderia ser potencialmente infinita porque pela soma sucessiva de magnitudes seria possível exceder os limites do universo; mas o universo é potencialmente infinito no sentido de que pode ser repetidamente dividido. O tempo, por sua vez, é potencialmente infinito em ambos os sentidos. Na geometria, Aristóteles admite que os pontos estejam em linhas, mas que os pontos não constituem a linha, uma vez que o contínuo não poderia ser constituído pelo discreto. Euclides (325 a.C. a 265 a.C.) segue a mesma toada ao misturar o infinitesimal com o infinito, quando define os conceitos básicos de ponto e reta em seu Elementos:

Um ponto é o que não tem parte;
Uma linha reta é uma linha composta de pontos uniformemente distribuídos.

Arquimedes (287 a.C. a 212 a.C.) em seu manuscrito O contador de areia, igualmente refuta a hipótese de um universo infinito como estabelecido por seu conterrâneo, Aristarco de Samos. Para fins de cálculo, o universo seria limitado a uma esfera que vai do centro do Sol ao centro da Terra totalmente preenchida de grãos de areia. Para chegar a um resultado, desenvolveu um sistema de potências numéricas composto de períodos. Neste sistema, Arquimedes demonstra potências equivalentes a 10 elevado a 799.999.999; apesar do gigantismo impensável deste número, ainda assim é finito, pois basta somar 1 à potência acima que obtemos um número maior que a própria potência. Ao contrário dos gregos, a civilização hindu tinha verdadeiro fascínio pelo infinito, como nesta passagem em que um sacerdote, após preparar os tijolos para um ritual védico, reza a Agni, divindade do fogo:

Oh Agni! Torne estes tijolos em vacas que dão leite para mim
Por favor, dê-me uma, e dez, e cem, e mil
Dez mil, e lakh e prayutam
E arbudam e nyarbudam e samudram
E madhyam e parardham neste mundo e em outros mundos também

Nestes versos, os nomes hindus correspondem a potências de dez:

Lakh = 10 elevado a 5;
Prayutam = 10 elevado a 6;
Arbudam = 10 elevado a 7; 
Nyarbudam = 10 elevado a 8;
Samudram = 10 elevado a 9;
Madhyam = 10 elevado a 10;
Parardham = 10 elevado a 12;

O conceito de infinito era repetidamente usado na era védica:

Do infinito nasce o infinito
Quando infinito é retirado do infinito, o que resta é apenas infinito.

No Ramaiana, um épico sânscrito que conta a história do príncipe Rama, cuja esposa Sita é raptada pelo demônio Ravana, e escrito entre 500 a.C. e 100 a.C., aparecem potências que chegam a 10 elevado a 62, cujo número representa a quantidade de Vanaras (homens macaco da armada do príncipe Rama) empregados na construção da ponte Rama ou Adam.

Um homem macaco ou vanara ao centro, marcando seu nome em um tijolo para a construção da ponte Adam. O homem azul à esquerda é o príncipe Rama.
A ponte Adam é uma formação geológica de pedra calcária com 50 quilômetros de extensão entre a ilha Pamban, na Índia, e a ilha Mannar, no Sri Lanka.

Vista aérea da ponte Adam
Entre os árabes, como tutores da herança grega no conhecimento matemático, não houve avanços sobre o infinito. Adentrando a idade média, o infinito é retomado na escolástica, doutrinas teológico-filosóficas caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a e a razão. Representam essa linha de pensamento: Santo Agostinho, que adota a visão platônica de que Deus era infinito e teria infinitos pensamentos; São Tomás de Aquino, que permitia o ilimitado de Deus, mas negava que fizesse coisas ilimitadas; e Nicolau de Cusa, cardeal católico e filósofo, que afirmou:

A verdade da imagem não pode ser vista tal como é em si através da imagem, porque a imagem nunca chega a ser o modelo, pois toda perfeição vem do exemplar que é a razão das coisas. Este é o jeito como Deus reluz com as coisas. Como consequência, o Absoluto é incompreensível, posto que o invisível não pode se transformar no visível, o infinito não se encontra no finito.

Nicolau de Cusa
Foi também na idade média que se descobriu um paradoxo com o infinito. Considere dois círculos concêntricos, sendo que o círculo maior tem o dobro do tamanho do raio do círculo menor:


Como a circunferência do círculo externo é duas vezes maior que a do círculo interno, então o círculo externo conteria uma quantidade infinita de pontos maior que a do círculo interno. Porém, quando desenhamos dois raios, o primeiro atinge o círculo interno no ponto P e o círculo externo no ponto equivalente P’, e o segundo raio atingirá o círculo interno no ponto Q e o círculo externo no ponto equivalente Q’; observe:


O paradoxo aqui é que, sendo de tamanhos diferentes, os círculos apresentam uma quantia diferente de pontos, ainda que infinitos. Porém, quando colocados em correspondência um-para-um, a quantia de pontos infinitos em ambos os círculos é igual. Na renascença, é Galileu Galilei quem apresenta o paradoxo dos quadrados, em sua obra Discorsi e dimostrazioni matematiche a due nuove scienze, de 1.638, conforme a seguir. Considere uma sequência de números naturais (em azul) e seus respectivos quadrados perfeitos (em vermelho), como mostrado a seguir:



A condição paradoxal emerge porque, por um lado, torna-se evidente que a maioria dos números naturais (em azul) não são quadrados perfeitos, de modo que o conjunto dos quadrados perfeitos é menor que o conjunto de todos os números naturais; observe:



Fica evidente há um espaço vazio entre dois quadrados perfeitos consecutivos e que entre esses espaços há números naturais que não são quadrados perfeitos, e esses espaços vazios tornam-se maiores à medida que a contagem aumenta. Por outro lado, como para cada número natural há seu correspondente quadrado perfeito, conclui-se que existem tantos números naturais quantos quadrados perfeitos. Em outras palavras, há uma correspondência um-para-um em ambas as sequências numéricas. Ao evidenciar esta estranha contradição, Galileu conclui:


Quando tentamos, com nossas mentes finitas, discutir o infinito, associamos a ele aquelas propriedades que aplicamos ao finito e limitado; mas penso que isto está errado, pois não somos capazes de falar de quantidades infinitas como uma sendo ou maior, ou menor, ou igual a outra.



Quem primeiro contextualizou o conceito de infinito e lhe deu um formato lógico e racional foi o matemático russo naturalizado alemão Georg Cantor.


Um jovem Georg Cantor

A estratégia do matemático para lidar de forma adequada com esse conceito foi extraordinariamente simples e genial: imagine que você tenha duas cestas de ovos e te peçam para contar qual destas cestas contém mais ovos.



Uma forma de verificação é tirar simultaneamente um ovo de cada cesta; aquela que primeiro ficar vazia será a que contém a menor quantia de ovos. Se ambas as cestas ficarem vazias ao mesmo tempo, então ambas terão a mesma quantidade de ovos. Ridículo? Pois é o que os matemáticos da época também pensaram sobre tal raciocínio, mas aí também reside a simplicidade das idéias geniais. A diferença é que Cantor utilizou números ao invés de ovos e chamou as cestas de conjuntos ou classes. Conjunto ou classe é uma coleção de coisas semelhantes, como ovos, bicicletas, segmentos de reta, figuras geométricas, tampinhas de garrafa, números ou qualquer outra coisa. Para compará-los, Cantor utilizou diferentes conjuntos: um apenas contendo números pares, outro contendo apenas ímpares, um terceiro contendo os números inteiros, um quarto contendo os números fracionários e ainda um quinto conjunto contendo apenas inteiros negativos e depois de montados passou a comparar estes conjuntos quanto ao seu tamanho, ou no jargão desse matemático, quanto à sua cardinalidade, através do emparelhamento de seus elementos. Se um conjunto qualquer tivesse para cada elemento um único elemento a ele associado do outro conjunto, então ambos os conjuntos teriam a mesma cardinalidade; do contrário, o conjunto com mais elementos seria aquele de maior cardinalidade ou tamanho. Ele começou comparando o conjunto dos números inteiros com o conjunto dos números inteiros pares e constatou que há a mesma quantidade de elementos em ambos. Observe:





Cantor concluiu que quando se trata de quantidades infinitas, o todo nem sempre é maior que cada uma de suas partes. De fato, a mesma cardinalidade é obtida quando comparamos os números naturais com inteiros negativos ímpares, números divisíveis por 5 ou múltiplos de 7, entre tantos outros exemplos:



Depois dessas constatações, Cantor concluiu que não existe um conjunto infinito menor que o dos números naturais e para representá-lo ele adotou o termo 'aleph zero' (pronuncia-se aléfi), utilizando para isso a primeira letra do alfabeto hebraico: ℵ0. Para diferenciar este número dos números finitos, o matemático cunhou o termo transfinito para qualificar o ℵ0. Não satisfeito, Cantor decidiu verificar se haveriam outros números transfinitos maiores que ℵ0, e suas dúvidas recaíram sobre os números racionais, uma vez que existem infinitos números racionais entre dois números inteiros; por exemplo, entre o 2 e o 3 há infinitas frações cujos valores situam-se entre estes dois números. A estratégia adotada por Cantor para solucionar este problema foi brilhante: para confirmar se o conjunto dos números racionais tem a mesma cardinalidade da dos números naturais, os racionais devem ser enumeráveis, ou seja, são passíveis de serem contados (como fazemos com os números inteiros), de modo que se consiga aplicar, na terminologia de Cantor, uma associação biunívoca entre cada elemento dos dois conjuntos. Se essa associação não for possível, é porque o conjunto dos racionais conterá mais elementos que o conjunto dos naturais, quer dizer, compõe um número transfinito maior que ℵ0. O fato é que Cantor provou que os números racionais são enumeráveis. Veja como: monte uma tabela em que as colunas (em azul) representam os numeradores e as linhas (em vermelho), os denominadores:



Observe que muitas das frações se repetem ao longo das células. Agora, enumeramos as frações, seguindo a sequência abaixo:



Seguindo este zigue-zague e descartando as frações repetidas, percorremos todas as linhas e colunas; se seguíssemos apenas a primeira linha enumerando suas frações não passaríamos nunca à segunda linha, pois todas as linhas e colunas seguem ao infinito. Seja seguindo uma única linha ou ziguezagueando entre linhas e colunas, obtemos enfim um conjunto enumerável. Observe:




A sequência acima, composta de números racionais, pode agora ser emparelhada com os números naturais:



Com esse estratagema genial, Cantor demonstrou que os números racionais formam um conjunto enumerável com a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais, constituindo outro número transfinito0. O conceito de números transfinitos tem implicações interessantes: considere o número irracional √2. Este número pode ser representado por uma dízima infinita não periódica, conforme abaixo:

$$ 1,4142135623730950488016887242097... $$

Se aplicarmos ao infinito o algoritmo de Herão para o cálculo da raiz quadrada de um número natural, obteremos a cada rodada deste processo infindável uma nova fração que se aproxima cada vez mais do limite sem nunca atingí-lo. Observe:

$$ \frac{17}{12};\frac{577}{408};\frac{665.857}{470.832}... $$

Que resultam em valores cada vez mais aproximados para √2:

$$ 1,41\overline{66666666666666666666666666667...} $$
$$ 1,41421\overline{5686274509803921568627451...} $$
$$ 1,41421356237\overline{46899106262955788901...} $$

Deste modo, assim como o limite da sucessão dos números naturais pode ser visto como o número transfinito0, também o limite da sequência infinita de frações obtidas pelo método de Herão pode ser visto como um número, a constante de Pitágoras ou √2, ficando este número definido apenas em termos de números racionais. Cantor apresentou uma sequência infinita de números racionais ainda mais simples para a √2:



Outra situação interessante ao trabalharmos com o infinito é a afirmação de que 0,9999... é igual a 1. Considere a figura a seguir:



Este círculo está dividido em 3 partes iguais, de modo que cada fatia corresponde a 1/3 do total. Em notação decimal, esta fração pode ser escrita como uma dízima periódica infinita:

$$ \frac{1}{3}=0,33333333333333... $$

A soma das 3 fatias resulta:

$$ \frac{1}{3}+\frac{1}{3}+\frac{1}{3}=\frac{1+1+1}{3}=\frac{3}{3}=1 $$

Em notação decimal, a soma das dízimas infinitas fornece:

$$ 0,33333333333333...+0,33333333333333...+0,33333333333333...= $$
$$ =0,9999999999999...=1 $$


O limite da dízima periódica infinita 0,99999999999... pode ser visto como um número em si mesmo: o número 1! O estudo sobre o infinito iniciado por Cantor embasou a moderna teoria dos conjuntos, que aprendemos na escola e onde temos:


  • Conjunto dos números naturais, representado pela letra N: 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números inteiros, representado pela letra Z: ..., -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, ...;
  • Conjunto dos números racionais, representado pela letra Q: para qualquer número que possa ser representado na forma de uma fração (com denominador diferente de zero);
  • Conjunto dos números reais, representado pela letra R e do qual fazem parte os números irracionais, dentre outros.


A representação destes conjuntos é comumente feita por meio dos diagramas de Venn, conforme segue:


A lógica de classes inclui um desdobramento do conceito de cardinalidade no estudo sobre o infinito, quando se afirma que o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números inteiros, que está contido no conjunto dos números racionais, que está contido no conjunto dos números reais, ou seja:

$$ \mathbb{N}\subset \mathbb{Z}\subset \mathbb{Q}\subset \mathbb{R} $$

Os conjuntos dos números naturais, números inteiros e números racionais são todos números transfinitos0. O infinito também se aplica às formas geométricas; exemplo disso é a fita de Möbius, um espaço topológico obtido pela colagem das extremidades de uma fita (após efetuado meia volta em uma delas) que representa um caminho sem fim nem início, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um.

Formigas caminhando sobre uma fita de Möbius, obra de 1.963 do artista M.C. Escher
Esta figura recebe seu nome do matemático alemão August Ferdinand Möbius, quando estudava em 1.858 a teoria geométrica dos poliedros. Esse espaço topológico é semelhante ao símbolo de infinito (∞) tal como é utilizado atualmente, cuja introdução é creditada ao matemático John Wallis, em sua obra De sectionibus conicis, de 1.655. O ∞ também é chamado de lemniscata. Outro espaço topológico curioso é a garrafa de Klein, uma superfície não orientável e sem bordas, obtida pela colagem de duas fitas de Möbius. Foi estudada pelo matemático alemão Felix Christian Klein.

A garrafa de Klein, estudada pelo matemático alemão Felix Klein
Encerramos com estas topologias a breve introdução sobre o infinito, tendo começado pelo entendimento que as antigas civilizações tinham desse conceito até sua racionalização com o tratamento matemático dado por Georg Cantor.

sexta-feira, março 03, 2017

Os números negativos

Lente positiva ou convergente, ou simplesmente "lente convexa". Observe que os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, unem-se à direita no chamado "ponto focal".

Lente negativa ou divergente, ou simplesmente "lente côncava". Neste caso os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, espalham-se à direita, sem a ocorrência do "ponto focal".
O que eles são? De onde vieram? Os números negativos possuem uma história mais peculiar do que nossa vã filosofia poderia imaginar (diria o poeta), e sua natureza provocou as mentes de muitos matemáticos; porém, tanto babilônios quanto egípcios ignoraram sua existência, porque a matemática dessas civilizações estava toda voltada à solução de problemas práticos do dia-a-dia: produção de alimentos e criação de animais, fabricação de tijolos e artefatos cerâmicos, construção de edifícios e monumentos, cobranças de impostos, enfim, uma matemática concreta e positiva para problemas relativos à sobrevivência e manutenção daquelas sociedades primevas. Para os gregos, a situação não foi muito diferente: entre os pitagóricos, no século V a.C., os mathématikoi definiam um ponto – que chamavam de mônada e que representava o número 1 – e desenhavam um círculo ao redor dele. É Platão quem resume a fórmula pitagórica: “a divindade geometriza”, ou seja, a partir do ponto uma radiação igual em todas as direções se inicia, estabelecendo uma circunferência ou esfera dentro do qual todas as atividades do ponto estão confinadas, daí porque consideravam também que o círculo era o pai de todas as formas geométricas e que a partir desta unidade a geometria do universo emergiu, de modo que dela surgiu a multiplicidade e que o 'um' evoluiu para 'muitos'. Este sistema é mais conhecido como 'doutrina das emanações', mas Pitágoras a denominava ciência dos números. Observa-se que os números negativos não são mencionados nem encontram espaço nessa estrutura filosófica.

Representação pitagórica da mônada

Cosmogonia segundo a visão medieval; observa-se claramente a influência pitagórica da mônada representando a criação do universo por mãos divinas. Essa iluminura, datada de 1.230 d.C.  abre o capítulo das subtrações.

Imagem do mapeamento em micro-ondas do universo conhecido, através de um sistema de sensoriamento térmico da energia remanescente de fundo, ou ruído térmico de fundo. O big bang, ou a grande explosão, é uma teoria segundo a qual o universo surgiu há pelo menos 13,7 bilhões de anos a partir de um estado inicial de temperatura e densidade altamente elevadas. Impressionante semelhança com a mônada dos pitagóricos.

Com o 'surgimento' dos números irracionais, protagonizado pelo desabonado Hipaso de Metaponto e o abalo profundo que provocaram na doutrina pitagórica, Eudoxo de Cnido estabelece no século IV a.C. a diferenciação entre números (ou seja, os números naturais) e magnitudes (entes geométricos que são divisíveis em divisíveis que são infinitamente divisíveis), como citado por Aristóteles em sua obra Física, sem entretanto dar indicações do conceito de números negativos ou de magnitudes negativas. Esta situação persiste com Euclides no século III a.C. em seu Elementos, onde o grego continua com a distinção entre número e magnitude estabelecida por Eudoxo-Aristóteles, mas ainda sem nenhuma indicação dos números negativos. A situação começa a mudar somente no período entre 100 a.C. e 50 d.C. no império chinês, com o livro Jiuzhang Suanshu (ou "Nove capítulos na arte matemática"). Ao contrário do Elementos de Euclides, a obra chinesa aborda diversos problemas práticos do mundo real e os respectivos algoritmos para resolvê-los, sem nenhuma indicação de provas. Desde essa época, o Nove Capítulos teve uma longa história de altos e baixos, sendo requisitado para exames em serviços civis ou sendo queimado e quase perdido. No primeiro milênio a.C. a aritmética chinesa passou a ser realizada por meio de varetas de contagem (ou numerais de varas), que eram dispostas em linhas e faziam uso de um sistema de notação decimal.

Ilustração japonesa mostrando um indivíduo ajoelhado à esquerda, fazendo contas em um tabuleiro quadriculado contendo numerais de varas.
É no oitavo capítulo da obra matemática chinesa que os números negativos aparecem e são extensivamente utilizados. Existem comentários de um matemático de nome Liu, onde afirma que varetas vermelhas ou hastes verticais são utilizadas para números positivos, que ele denomina 'ganhos' (zheng) e varetas pretas ou hastes oblíquas para números negativos, às quais denomina 'perdas' (fu). Afirma ainda que “varetas de contagem vermelhas e pretas são utilizadas para cancelarem umas às outras”. O mais curioso nessa obra está associada à descrição da regra de sinais:

Sinais iguais subtraem; sinais opostos somam; positivo sem extra faz negativo; negativo sem extra faz positivo.
Sinais opostos subtraem; sinais iguais somam; positivo sem extra faz positivo; negativo sem extra faz negativo.

Apesar da linguagem truncada para os nossos dias, a regra de sinais evidencia que os números negativos foram analisados e tratados corretamente tão logo surgiram, presumivelmente pela primeira vez na China e no mundo. No ocidente, a primeira ocorrência dos números negativos aparece na obra Arithmetica, do matemático grego Diofanto de Alexandria no século III d.C., mas de uma forma não muito bem vista por ele. O número negativo surge no seguinte problema (em notação moderna):

$$ 4\blacksquare +20=0 $$

Para manter a igualdade e descobrir qual o valor contido na cartela preta, começamos por subtrair 20 de ambos os lados da igualdade:

$$ 4\blacksquare +20-20=0-20 $$

Resultando:

$$ 4\blacksquare=-20 $$

Finalmente, dividindo ambos os lados da igualdade por 4, vem:

$$ \frac{4\blacksquare }{4}=\frac{-20}{4} $$
$$ \blacksquare=-5 $$

O resultado negativo (-5) para a cartela preta é considerado um absurdo para Diofanto, o que indica que ele provavelmente não tinha o conceito da noção abstrata de um número negativo. Voltemos nossos olhos e mentes novamente para o oriente, agora para os hindus; nesta civilização, os números negativos aparecem abundantemente na obra Arthashastra, um verdadeiro manual de governança de Estado, escrita no século IV a.C. e de autoria do estudioso hindu Cautília. O Arthashastra cobre com detalhes surpreendentes cada aspecto da criação e gestão de um reino, com tópicos sobre mineração, agricultura, pecuária, medicina e o uso de animais selvagens, incluindo o manuseio de uma floresta para elefantes!


Duas folhas originais do manuscrito hindu Arthashastra
O Arthashastra trata também de assuntos sobre bem-estar (por exemplo, a redistribuição de riquezas durante uma fome) e ética coletiva para a manutenção de uma sociedade unida. No aspecto matemático, porém, o manuscrito chama a atenção no livro II, capítulos VI e seguintes, em que Cautília detalha um sistema completo de contabilidade: ele tem um livro razão para as rendas com datas, horários, pagadores, categorias, etc. e um livro razão para as despesas e, finalmente, um terceiro livro para os balanços ou saldos. Há seções sobre auditoria, seguro contra roubo, devedores, empréstimos, hipotecas, etc. e questões de contabilidade mais sutis, tais como recebimentos atuais versus recebimentos diferidos, como contabilizar mudanças de preços de itens em estoque, custos fixos versus custos variáveis. Embora ele não use números negativos explicitamente, Cautília está claramente consciente de que a contabilidade às vezes deve mostrar um prejuízo e que as pessoas podem ter um patrimônio líquido negativo. Se os números negativos não aparecem explicitamente no Arthashastra, o mesmo não se pode dizer com o Brahmasphutasiddhanta, do matemático e astrônomo hindu Brahmagupta, escrito em 628 d.C. Este manuscrito inclui dois capítulos que são um compêndio de técnicas e conceitos matemáticos desenvolvidos ao longo dos séculos que o antecederam. Neles, encontramos as regras corretas para a aritmética com números negativos; também encontramos referências que tratam os números positivos como 'fortunas' e números negativos como 'débitos'. Abaixo, alguns versos contendo a regra de sinais e de como multiplicar números negativos:

[A soma] de dois positivos é positiva, de dois negativos, negativa; de um positivo e um negativo [a soma] é sua diferença; se forem iguais, a soma é zero. A soma de um negativo e zero é negativa, de um positivo e zero, positiva, e de dois zeros, zero.

[Se] um menor [positivo] for subtraído de outro maior positivo, [o resultado] é positivo; [se] um menor negativo de outro maior negativo, [o resultado] é negativo; [se] um maior de outro menor, sua diferença será revertida – negativo torna-se positivo e positivo torna-se negativo.

[...]
O produto de um positivo e um negativo é negativo, de dois negativos, positivo; e de positivos, positivo; o produto de zero e um negativo, de zero e um positivo, ou de dois zeros, é zero. Um positivo dividido por um positivo e negativo dividido por um negativo é positivo; zero dividido por zero é zero; um positivo dividido por um negativo é negativo; um negativo dividido por um positivo é negativo.

Capítulo 18, versos 30–34

A única falha é a afirmativa de que zero dividido por zero é zero, um assunto já tratado no capítulo sobre operações aritméticas com frações, no segundo livro desta série; as demais assertivas de Brahmagupta estão todas corretas.


Selo soviético comemorativo aos 1.200 anos de nascimento do matemático Al-Khwarizmi, lançado em 1983.
Aliás, o Brahmasphutsiddhanta influenciaria, cerca de duzentos anos depois, outra obra que mudaria a matemática para sempre: o Al-kitab al-mukhtasar fi hisab al-jabr wal-muqabala, ou "Compêndio de cálculo por restauração e balanceamento", de autoria de Al-Khwarizmi (780 d.C. a 850 d.C.) sob o patrocínio do califa Al-Mamun, a quem o matemático tece o seguinte elogio:

"Esse carinho pela ciência... essa afabilidade e condescendência que ele [o califa] mostra aos sábios... encorajou-me a compor uma pequena obra de cálculo por restauração [al-jabr] e balanceamento [muqabala]... já que os homens constantemente o exigem em casos de herança, legados, partições, processos judiciais e comércio."

O termo al-jabr deu origem nada menos que à palavra portuguesa álgebra. Nesta obra, o autor reconhece que suas idéias são baseadas no trabalho de Brahmagupta e, portanto, ele estava familiarizado com os números negativos. Porém, seus modelos geométricos, todos eles baseados nos trabalhos de matemáticos gregos, o convenceram de que os resultados negativos não tinham sentido, questionando: "como se poderia obter um quadrado negativo"? Curiosamente, em outro tratado de sua autoria em legislação sobre heranças, Al-Khwarizmi representa quantidades negativas como débitos. A primeira ocorrência do uso explícito de números negativos em textos do mundo islâmico medieval é atribuído ao matemático e astrônomo Abu al-Wafa (940 d.C. a 998 d.C.), em sua obra: Kitab fi ma yahtaj ilayh al-kuttab wa l-ummal min ilm al-hisab, ou "Livro daquilo que é necessário da ciência aritmética para escribas e negociantes".


Representação alegórica de Abu al-Wafa

Nela, al-Wafa apresenta uma regra geral e demonstra um caso especial onde a subtração de 5 por 3 fornece um 'débito' de 2. Em seguida, multiplica o resultado por 10 para obter um novo 'débito' de 20, que adicionado a uma 'fortuna' de 35 resulta 15. Aliás, o famoso livro Almagesto, um influente tratado medieval de astronomia, escrito pelo matemático grego Ptolomeu, foi traduzido para o árabe por al-Wafa. Por fim, é digno de menção outro matemático e astrônomo árabe: Al-Samawal (1.130 d.C. a 1.180 d.C.), que em sua obra Al-bahir fil-jabr, ou "O brilhante em álgebra", estabelece algumas regras de sinais:


Se subtrairmos um número positivo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém negativo; e se subtrairmos um número negativo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém positivo; o produto de um número negativo por um número positivo é negativo, e por um número negativo é positivo.


A justificativa para a regra de sinais da multiplicação, quando havia alguma, era sempre de caráter geométrico. Porém, a primeira prova no ocidente baseada na lei distributiva da aritmética para a regra de sinais aparece no trabalho do algebrista italiano maestro Dardi de Pisa, por volta de 1.380 em sua obra Aliabraa argibra, cuja prova é reproduzida a seguir. Dado um retângulo medindo 20 de largura por 10 de altura, cuja área é igual a 200:



Reduz-se suas medidas respectivamente de 3 unidades na largura e 2 unidades na altura, obtendo-se:



Pergunta: qual a nova área (em azul) após a redução nas medidas do retângulo laranja? Ora, como sabemos que a área de um retângulo é a multiplicação de sua base (ou largura) por sua altura, temos:

$$ Area=largura\times altura=17\times 8=136 $$

Mas, e se quiséssemos obter a área a partir das medidas originais subtraídas? Não há dúvida de que uma área igual a 136 tem de ser alcançada. Assim:

$$ Area=largura\times altura=\left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=136 $$

Para que a multiplicação de (20 – 3) por (10 – 2) resulte 136, aplica-se a lei distributiva da aritmética, em que todos os termos multiplicam-se uns aos outros, somando-se os resultados parciais. Logo:

$$ \left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=\left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right ) $$

As multiplicações à direita da igualdade devem, somadas, valer 136:

$$ \left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right )=136 $$

Bom, agora com o auxílio da geometria, temos a seguinte situação: o primeiro termo da multiplicação (20 × 10) corresponde à área original do retângulo laranja.



Os dois termos são positivos e o resultado da multiplicação também é positivo:

$$ \left ( 20\times 10 \right )=200 $$

Daí deriva a primeira regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número positivo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: mais com mais dá mais.


O segundo termo (20 × –2) corresponde à faixa laranja horizontal, que deve ser subtraída da área original:



Logo, seu resultado deve ser negativo:

$$ \left ( 20\times -2 \right )=-40 $$

Neste caso, o primeiro termo é positivo e o segundo termo, negativo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa horizontal laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a segunda regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número negativo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: mais com menos dá menos.


O terceiro termo (–3 × 10) corresponde à faixa laranja vertical, que também deve ser subtraída da área original:


Logo, seu resultado também deve ser negativo:

$$ \left ( -3\times 10 \right )=-30 $$

Neste caso, o primeiro termo é negativo e o segundo termo, positivo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa vertical laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a terceira regra de sinais da multiplicação:

Um número negativo multiplicado por outro número positivo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: menos com mais dá menos.


Bom, até aqui temos o seguinte resultado parcial para o cálculo da área do retângulo azul:

$$ 200-40-30=200-70=130 $$

Opa! Temos um problema: descontadas as áreas das faixas laranja horizontal e vertical, a área restante é menor em 6 unidades que a área do retângulo azul. Mas temos ainda uma última multiplicação a ser analisada:

$$ \left ( -3\times -2 \right ) $$

Se temos que somar 6 unidades para obter o valor correto da área do retângulo azul (de 130 para 136), o resultado dessa multiplicação tem de ser positivo:

$$ \left ( -3\times -2 \right )=6 $$

Essa área corresponde à intersecção entre as duas faixas laranja, a horizontal e a vertical, destacada abaixo em verde:



Como esse pedaço de área verde é descontado duas vezes nos cálculos parciais (uma vez com a faixa horizontal e outra com a faixa vertical), faz-se necessário acrescentar esse valor para que o cálculo da área do retângulo azul resulte correto. Chegamos assim à quarta e última regra de sinais da multiplicação:


Um número negativo multiplicado por outro número negativo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: menos com menos dá mais.



A regra de sinais da multiplicação deriva da constatação geométrica do cálculo de áreas e a lei distributiva da aritmética é a forma matemática de demonstrar sua validade. Seja como for, os números negativos prosseguem em sua árdua marcha rumo ao reconhecimento nos caminhos nem sempre suaves da matemática e chegam finalmente à Europa medieval. Lá, são apresentados a banqueiros e comerciantes por ninguém menos que Fibonacci; a seção do Liber Abaci que trata das subtrações recebe o título: Da subtração de números menores por números maiores. Porém, é na segunda parte de seu manuscrito que o italiano lida com bens e dinheiro, reforçando um simbolismo para transações econômicas com os números negativos, particularmente a noção de lucros ou ganhos em oposição a perdas ou contração de débitos na forma de inúmeros problemas descritivos, como este:

Três homens tinham libras esterlinas, não sei quantas, das quais a metade pertencia ao primeiro, um terço ao segundo e um sexto ao terceiro; como eles queriam mantê-las em um lugar seguro, cada um deles tomou das libras alguma quantia, e do montante que o primeiro tomou pôs em comum a metade, e do que o segundo tomou, pôs em comum uma terça parte, e do que o terceiro tomou, colocou em comum uma sexta parte, e do que eles puseram em comum cada um recebeu uma terça parte, e, assim, cada um teve sua porção.

Fibonacci encontra a seguinte solução para o resgate do montante entre três os homens:

Primeiro: 326 libras;
Segundo: 174 libras;
Terceiro: −30 libras;


O terceiro homem, diz ele, não recebe nada do montante compartilhado, ao contrário, coloca mais 30 libras de seu próprio bolso: havia 470 libras no total e quando eles quiseram mantê-las 'em um local seguro', o terceiro homem adicionou 30 libras, o primeiro homem tomou 326 libras e o segundo tomou 174 libras. Observe que ao lidar com dinheiro, as quantidades negativas assumem um significado simples entre dar e receber, ou entre créditos e débitos assumidos. Esta situação perdura inalterada desde o lançamento do Liber Abaci em 1.202, quando em plena Renascença o matemático e frei franciscano Luca Pacioli publica em 1.494 o seu Summa de arithmetica geometria. Nesta obra, quando um resultado é negativo ele é descrito como um débito; a exceção fica por conta de um problema que Pacioli denomina de belíssimo caso: neste exemplo, pede-se para dividir 10 em duas partes cuja diferença dos quadrados das partes seja igual a 200. A resposta para esse problema é:

$$ 10=15-5 $$

De fato, a diferença dos quadrados das partes é igual a 200:

$$ \left ( 15 \right )^{2}-\left ( 5 \right )^{2}=225-25=200 $$

Mas ainda assim não temos um número negativo de fato; o que se vê nesta conta é a subtração de um número maior por outro menor. Finalmente, encontramos nesta obra a primeira citação da regra de sinais do modo formal como é ensinada atualmente na escola.


A regra de sinais para a divisão (que é a mesma da multiplicação) no Summa de arithmetica geometria, de Luca Pacioli. A primeira linha destacada em verde diz: a partire piu per piu neuen piu, ou seja: a divisão de mais com mais resulta mais, e assim por diante.

Outro matemático que lidou com números negativos foi o italiano Girolamo Cardano em sua obra Ars Magna, de 1.545. Ele é o primeiro matemático a oferecer uma argumentação satisfatória para soluções negativas a problemas com equações lineares (semelhantes à equação de Diofanto de Alexandria) e o primeiro a aceitar raízes quadradas de números negativos. Chama os números positivos de numeri ueri (números reais) e os números negativos de numeri ficti (números fictícios), afirmando: “para tal, chamamos aquele como um débito ou negativo”, porém não faz muito mais pelos negativos, ignorando-os sistematicamente.


Girolamo Cardano
No último capítulo do Ars Magna (Sobre a regra para postular um negativo), Cardano faz alguma exploração sobre o resultado de raízes negativas, como no exemplo abaixo:

O dote da esposa de Francisco vale 100 aurei [moedas de ouro] a mais do que a própria propriedade de Francisco, e o quadrado do dote é 400 mais que o quadrado de sua propriedade. Encontre o dote e a propriedade.


O problema reduz-se a duas equações:

$$ \blacksquare =\square +100 $$
$$ \blacksquare^{2} =\square^{2} +400 $$

O valor do dote da esposa de Francisco é representado pela cartela preta e o valor da propriedade pela cartela branca. Substituindo o valor da cartela preta da primeira equação na cartela preta da segunda equação, temos:

$$ \left ( \square +100 \right )^{2}=\square ^{2}+400 $$

Desenvolvendo, vem:

$$ \left ( \square +100 \right )\times \left (\square +100 \right )=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+100\square +100\square +100^{2}=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+200\square +10.000=\square ^{2}+400 $$

Simplificando:

$$ 200\square +10.000=400 $$
$$ 200\square +10.000-10.000=400-10.000 $$
$$ 200\square=-9.600 $$

Resultando em:

$$ \frac{200}{200}\square =\frac{-9.600}{200} $$
$$ \square =-48 $$

Ou seja, a propriedade de Francisco valeria −48 aurei, mas por sorte o valor do dote de sua esposa vale:

$$ \blacksquare =\square +100=-48+100 $$
$$ \blacksquare =+52 $$

Alguns anos antes de sua morte, Cardano publica em 1.570 o tratado De Aliza Regulae, cujo particular interesse é a refutação que faz para a regra de sinais para a multiplicação e a divisão geralmente aceita pelos algebristas em sua época. Usando o mesmo exemplo do maestro Dardi de Pisa, ele conclui o contrário deste: a de que menos com menos resultar mais seria tão 'verdadeiro' quanto dizer que mais com mais resultaria menos.


Texto de Cardano refutando a regra de sinais, no De Aliza Regulae.
No texto de Cardano, o quadrado acfe tem lado ac igual a 10 e área igual a 100. Dado que bc e ag tem lado igual a 2, o quadrado egd terá uma área igual a 64. Para sair de 100 (quadrado acfe) e chegar a 64 (quadrado egd) temos que subtrair os dois retângulos cg e bf. Ao fazer isso, subtraímos o quadrado cbd duas vezes, de modo que temos que somá-lo uma vez mais. Assim, aritmeticamente, temos:

$$ 100-\left ( 10\times 2 \right )-\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 2 \right )=64 $$

A aplicação da lei distributiva acima é semelhante àquela adotada por maestro Dardi em sua prova. Entretanto, Cardano argumenta que o +4 não é o resultado da multiplicação de −2 por −2, mas uma área que deve ser novamente adicionada porque subtraímos o pequeno quadrado duas vezes do cálculo. Ele faz referência à proposição 7 do Livro II do Elementos de Euclides, reproduzida abaixo:

Se um segmento AB é dividido em dois por um ponto C, então o quadrado sobre o lado AB mais o quadrado sobre o lado CB é igual a duas vezes o retângulo de lados AB e CB mais o quadrado sobre o lado AC.


O resultado geométrico da proposição 7 do grego é muito semelhante ao desenho do matemático italiano:


Após referenciar Euclides, como para embasar sua linha de raciocínio, Cardano conclui: “E, portanto, está aberto o erro comumente asseverado de que menos vezes menos produzirá mais, para que de fato não seja mais correto afirmar que menos vezes menos produza mais, do que mais vezes mais produziria menos”. Um matemático importante para a história dos números negativos foi o inglês John Wallis: credita-se a ele a criação da reta numérica dos números inteiros, em sua obra Treatise on Algebra, escrito em inglês em 1.685, e que atualmente representamos por uma linha reta com o zero ao centro, os números positivos à direita da reta e os negativos à esquerda.


Reta numérica apresentada por John Wallis em sua obra Treatise on Algebra, de 1.685
Observe no texto acima a reta numérica de Wallis; acima da reta, o texto relata o seguinte:

No entanto, não é essa suposição (de quantidades negativas) nem inútil nem absurda quando corretamente compreendida. Porém, para a notação algébrica pura, importa uma quantidade menor que nada: entretanto, quando se trata de uma aplicação física, ela denota como real uma quantidade como se o sinal fosse +, mas para ser interpretado em sentido contrário. Como por exemplo: um homem que tenha avançado ou andado para frente (de A para B) 5 metros; e depois recuado (de B para C) 2 metros; se for perguntado, quanto tinha avançado (em toda a marcha) estando em C? Encontro... que ele avançou 3 metros. Mas, se tendo avançado 5 metros para B, ele retrocede 8 metros para D; então, se for perguntado, quanto avançou até D ou quanto teria avançado quando ele estava em A? Encontro −3 metros... ou seja, ele avançou 3 metros menos que nada... mas o que teríamos dito (em linguagem ordinária) é que ele retrocedeu 3 metros; ou que ele quer 3 metros a partir de onde está para avançar até onde estava em A.


John Wallis
Apesar da primazia pela criação da reta numérica e do exemplo interessante de alguém avançando ou recuando em um trajeto, Wallis também patinou em alguns conceitos matemáticos utilizando números negativos. Em sua obra Arithmetica Infinitorum, de 1.656, Wallis se aprofunda na idéia de que ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado é maior que infinito. A razão que o levou a essa conclusão equivocada encontra-se na proposição 104. Considere a seguinte fração:

$$ \frac{1}{\blacksquare } $$

Se no denominador a cartela preta for substituída por um número positivo muito grande, a fração se tornará zero. Ao contrário, se o denominador for substituído por zero, a fração resultará infinito. Agora, passando do zero, chegamos aos números negativos no denominador da fração (lembre-se da reta numérica). Avançando a linha de raciocínio, se números divididos por zero resultam infinito, então se formos além desse valor, ou seja, se dividirmos por números negativos, a fração resultará em valores maiores que o infinito. Ainda que tenhamos de compreender estas conclusões surpreendentes dentro do contexto em que são colocadas, a afirmação (e, portanto, o escorregão) de Wallis com os números negativos é incontestável, pois afirma que a razão de um número positivo por um negativo como sendo rationem plusquam infinitam (uma razão maior que infinito).


Texto onde Wallis afirma que um número positivo dividido por outro negativo gera um valor maior que infinito, no Arithmetica Infinitorum.
Levadas ao pé da letra, as duas primeiras assertivas de Wallis também estão incorretas, mas podemos 'suavizar' este contexto através de uma analogia rudimentar: se tivermos uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito grande, o resultado será algo muito pequeno (representado na figura abaixo pelo rato); reciprocamente, uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito pequeno (um número em notação decimal próximo de zero), o resultado será algo muito grande (representado na figura pelo elefante):



Outro matemático, contemporâneo de Wallis, que não se livrou de tomar um escorregão dos números negativos foi o francês Antoine Arnauld.


Antoine Arnauld
Em sua obra Nouveaux éléments de géométrie, de 1.667, ele inclui um exemplo de regras simbólicas que considera como estando contra nossas intuições básicas sobre magnitudes e proporções. Seu raciocínio é o seguinte: suponha que temos dois números, um maior e outro menor (por exemplo, 5 e 2) e se estabeleça entre eles duas razões: 5/2 e 2/5. A proporção do maior para o menor (5/2) é evidentemente maior que a proporção do menor para o maior (2/5). Em seguida, ele sugere substituir o 5 e o 2 respectivamente por 1 e por −1, resultando em duas novas razões: 1/−1 e −1/1. Se a proporção anterior é válida, então a proporção entre as duas novas razões também deve ser, ou seja, conclui-se que 1/−1 é maior que −1/1, o que vai contra as regras da álgebra. Este embate no século XVII entre o pensamento simbólico (algébrico) e a teoria clássica das proporções, herdada da geometria grega, mostrou-se problemática. A proposição de Arnauld mereceu até mesmo uma análise do gigante da matemática, o alemão Gottfried Leibniz, quando discute o problema em um artigo na obra Acta Eruditorum, de 1.712.


Gottfried Leibniz
Nesse artigo, Leibniz reconhece o problema de Arnauld como legítimo, mas estabelece que a divisão devesse ser executada segundo as regras do cálculo simbólico. Além disso, ao aplicar cegamente as regras de sinais, igualmente não haveria nenhum problema: ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado será negativo, e ao dividir um número negativo por outro positivo, o resultado também será negativo. Portanto, as razões 1/−1 e −1/1 são rigorosamente iguais.


Resposta de Leibniz a Arnauld no Acta Eruditorum, de 1.712.
Outro gigante da matemática que também tinha pleno controle dos números negativos e seus usos foi o inglês Isaac Newton. Em sua obra Universal Arithmetick, de 1.707, estabelece:


Quantidades são tanto Afirmativas, ou maiores que nada, quanto Negativas, ou menores que nada. Desse modo, nos afazeres humanos, posses ou estoque podem ser chamados bens afirmativos, e os débitos de negativos. Assim também no movimento local, progressão será chamada movimento afirmativo e regressão de movimento, negativo; porque o primeiro aumenta e o segundo diminui o comprimento do caminho percorrido. E ainda assim do mesmo modo na geometria, se uma linha desenhada em certo sentido for contada como afirmativa, então uma linha desenhada no sentido contrário será tomada como negativa.


Isaac Newton
Um dos últimos grandes matemáticos a se indispor com os números negativos foi o inglês Augustus De Morgan. Por exemplo, na enciclopédia Penny de 1.843, à qual contribuiu com muitos artigos, De Morgan escreveu o seguinte no artigo Negative and Impossible Quantities (Quantidades Negativas e Impossíveis):


Não é nossa intenção seguir os primeiros algebristas através de seus diferentes usos dos números negativos. Essas criações da álgebra retinham sua existência, diante da óbvia deficiência da explicação racional que caracterizava cada esforço de sua teoria.


Augustus De Morgan
Esse matemático passou grande parte de sua vida mostrando, numa primeira fase, quantas equações com esses 'números negativos sem importância' poderiam ser reelaboradas para afirmar fatos verídicos envolvendo apenas números positivos e, numa segunda fase, trabalhando lentamente para a definição de anéis e campos abstratos (conceitos da teoria dos conjuntos na álgebra moderna), idéias essas que ele sentia ser a única maneira de construir uma teoria totalmente satisfatória de números negativos. Tenham sido considerados absurdos ou sem sentido, ou apreciados como entes matemáticos como quaisquer outros, a verdade é que atualmente começamos a estudar os números negativos desde a tenra juventude e sem maiores constrangimentos, ou usando a reta numérica de John Wallis ou trabalhando com jogos de créditos e débitos na comercialização de mercadorias utilizando dinheiro 'de brincadeira' à moda de Fibonacci ou por meio de outros recursos pedagógicos. E uma vez que a história dos números negativos nos foi apresentada, iremos ao encontro de outro assunto instigante: o infinito e seus desdobramentos na matemática.