Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

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sexta-feira, março 03, 2017

Os números negativos

Lente positiva ou convergente, ou simplesmente "lente convexa". Observe que os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, unem-se à direita no chamado "ponto focal".

Lente negativa ou divergente, ou simplesmente "lente côncava". Neste caso os feixes de luz paralelos (à esquerda), ao atravessarem a lente, espalham-se à direita, sem a ocorrência do "ponto focal".
O que eles são? De onde vieram? Os números negativos possuem uma história mais peculiar do que nossa vã filosofia poderia imaginar (diria o poeta), e sua natureza provocou as mentes de muitos matemáticos; porém, tanto babilônios quanto egípcios ignoraram sua existência, porque a matemática dessas civilizações estava toda voltada à solução de problemas práticos do dia-a-dia: produção de alimentos e criação de animais, fabricação de tijolos e artefatos cerâmicos, construção de edifícios e monumentos, cobranças de impostos, enfim, uma matemática concreta e positiva para problemas relativos à sobrevivência e manutenção daquelas sociedades primevas. Para os gregos, a situação não foi muito diferente: entre os pitagóricos, no século V a.C., os mathématikoi definiam um ponto – que chamavam de mônada e que representava o número 1 – e desenhavam um círculo ao redor dele. É Platão quem resume a fórmula pitagórica: “a divindade geometriza”, ou seja, a partir do ponto uma radiação igual em todas as direções se inicia, estabelecendo uma circunferência ou esfera dentro do qual todas as atividades do ponto estão confinadas, daí porque consideravam também que o círculo era o pai de todas as formas geométricas e que a partir desta unidade a geometria do universo emergiu, de modo que dela surgiu a multiplicidade e que o 'um' evoluiu para 'muitos'. Este sistema é mais conhecido como 'doutrina das emanações', mas Pitágoras a denominava ciência dos números. Observa-se que os números negativos não são mencionados nem encontram espaço nessa estrutura filosófica.

Representação pitagórica da mônada

Cosmogonia segundo a visão medieval; observa-se claramente a influência pitagórica da mônada representando a criação do universo por mãos divinas. Essa iluminura, datada de 1.230 d.C.  abre o capítulo das subtrações.

Imagem do mapeamento em micro-ondas do universo conhecido, através de um sistema de sensoriamento térmico da energia remanescente de fundo, ou ruído térmico de fundo. O big bang, ou a grande explosão, é uma teoria segundo a qual o universo surgiu há pelo menos 13,7 bilhões de anos a partir de um estado inicial de temperatura e densidade altamente elevadas. Impressionante semelhança com a mônada dos pitagóricos.

Com o 'surgimento' dos números irracionais, protagonizado pelo desabonado Hipaso de Metaponto e o abalo profundo que provocaram na doutrina pitagórica, Eudoxo de Cnido estabelece no século IV a.C. a diferenciação entre números (ou seja, os números naturais) e magnitudes (entes geométricos que são divisíveis em divisíveis que são infinitamente divisíveis), como citado por Aristóteles em sua obra Física, sem entretanto dar indicações do conceito de números negativos ou de magnitudes negativas. Esta situação persiste com Euclides no século III a.C. em seu Elementos, onde o grego continua com a distinção entre número e magnitude estabelecida por Eudoxo-Aristóteles, mas ainda sem nenhuma indicação dos números negativos. A situação começa a mudar somente no período entre 100 a.C. e 50 d.C. no império chinês, com o livro Jiuzhang Suanshu (ou "Nove capítulos na arte matemática"). Ao contrário do Elementos de Euclides, a obra chinesa aborda diversos problemas práticos do mundo real e os respectivos algoritmos para resolvê-los, sem nenhuma indicação de provas. Desde essa época, o Nove Capítulos teve uma longa história de altos e baixos, sendo requisitado para exames em serviços civis ou sendo queimado e quase perdido. No primeiro milênio a.C. a aritmética chinesa passou a ser realizada por meio de varetas de contagem (ou numerais de varas), que eram dispostas em linhas e faziam uso de um sistema de notação decimal.

Ilustração japonesa mostrando um indivíduo ajoelhado à esquerda, fazendo contas em um tabuleiro quadriculado contendo numerais de varas.
É no oitavo capítulo da obra matemática chinesa que os números negativos aparecem e são extensivamente utilizados. Existem comentários de um matemático de nome Liu, onde afirma que varetas vermelhas ou hastes verticais são utilizadas para números positivos, que ele denomina 'ganhos' (zheng) e varetas pretas ou hastes oblíquas para números negativos, às quais denomina 'perdas' (fu). Afirma ainda que “varetas de contagem vermelhas e pretas são utilizadas para cancelarem umas às outras”. O mais curioso nessa obra está associada à descrição da regra de sinais:

Sinais iguais subtraem; sinais opostos somam; positivo sem extra faz negativo; negativo sem extra faz positivo.
Sinais opostos subtraem; sinais iguais somam; positivo sem extra faz positivo; negativo sem extra faz negativo.

Apesar da linguagem truncada para os nossos dias, a regra de sinais evidencia que os números negativos foram analisados e tratados corretamente tão logo surgiram, presumivelmente pela primeira vez na China e no mundo. No ocidente, a primeira ocorrência dos números negativos aparece na obra Arithmetica, do matemático grego Diofanto de Alexandria no século III d.C., mas de uma forma não muito bem vista por ele. O número negativo surge no seguinte problema (em notação moderna):

$$ 4\blacksquare +20=0 $$

Para manter a igualdade e descobrir qual o valor contido na cartela preta, começamos por subtrair 20 de ambos os lados da igualdade:

$$ 4\blacksquare +20-20=0-20 $$

Resultando:

$$ 4\blacksquare=-20 $$

Finalmente, dividindo ambos os lados da igualdade por 4, vem:

$$ \frac{4\blacksquare }{4}=\frac{-20}{4} $$
$$ \blacksquare=-5 $$

O resultado negativo (-5) para a cartela preta é considerado um absurdo para Diofanto, o que indica que ele provavelmente não tinha o conceito da noção abstrata de um número negativo. Voltemos nossos olhos e mentes novamente para o oriente, agora para os hindus; nesta civilização, os números negativos aparecem abundantemente na obra Arthashastra, um verdadeiro manual de governança de Estado, escrita no século IV a.C. e de autoria do estudioso hindu Cautília. O Arthashastra cobre com detalhes surpreendentes cada aspecto da criação e gestão de um reino, com tópicos sobre mineração, agricultura, pecuária, medicina e o uso de animais selvagens, incluindo o manuseio de uma floresta para elefantes!


Duas folhas originais do manuscrito hindu Arthashastra
O Arthashastra trata também de assuntos sobre bem-estar (por exemplo, a redistribuição de riquezas durante uma fome) e ética coletiva para a manutenção de uma sociedade unida. No aspecto matemático, porém, o manuscrito chama a atenção no livro II, capítulos VI e seguintes, em que Cautília detalha um sistema completo de contabilidade: ele tem um livro razão para as rendas com datas, horários, pagadores, categorias, etc. e um livro razão para as despesas e, finalmente, um terceiro livro para os balanços ou saldos. Há seções sobre auditoria, seguro contra roubo, devedores, empréstimos, hipotecas, etc. e questões de contabilidade mais sutis, tais como recebimentos atuais versus recebimentos diferidos, como contabilizar mudanças de preços de itens em estoque, custos fixos versus custos variáveis. Embora ele não use números negativos explicitamente, Cautília está claramente consciente de que a contabilidade às vezes deve mostrar um prejuízo e que as pessoas podem ter um patrimônio líquido negativo. Se os números negativos não aparecem explicitamente no Arthashastra, o mesmo não se pode dizer com o Brahmasphutasiddhanta, do matemático e astrônomo hindu Brahmagupta, escrito em 628 d.C. Este manuscrito inclui dois capítulos que são um compêndio de técnicas e conceitos matemáticos desenvolvidos ao longo dos séculos que o antecederam. Neles, encontramos as regras corretas para a aritmética com números negativos; também encontramos referências que tratam os números positivos como 'fortunas' e números negativos como 'débitos'. Abaixo, alguns versos contendo a regra de sinais e de como multiplicar números negativos:

[A soma] de dois positivos é positiva, de dois negativos, negativa; de um positivo e um negativo [a soma] é sua diferença; se forem iguais, a soma é zero. A soma de um negativo e zero é negativa, de um positivo e zero, positiva, e de dois zeros, zero.

[Se] um menor [positivo] for subtraído de outro maior positivo, [o resultado] é positivo; [se] um menor negativo de outro maior negativo, [o resultado] é negativo; [se] um maior de outro menor, sua diferença será revertida – negativo torna-se positivo e positivo torna-se negativo.

[...]
O produto de um positivo e um negativo é negativo, de dois negativos, positivo; e de positivos, positivo; o produto de zero e um negativo, de zero e um positivo, ou de dois zeros, é zero. Um positivo dividido por um positivo e negativo dividido por um negativo é positivo; zero dividido por zero é zero; um positivo dividido por um negativo é negativo; um negativo dividido por um positivo é negativo.

Capítulo 18, versos 30–34

A única falha é a afirmativa de que zero dividido por zero é zero, um assunto já tratado no capítulo sobre operações aritméticas com frações, no segundo livro desta série; as demais assertivas de Brahmagupta estão todas corretas.


Selo soviético comemorativo aos 1.200 anos de nascimento do matemático Al-Khwarizmi, lançado em 1983.
Aliás, o Brahmasphutsiddhanta influenciaria, cerca de duzentos anos depois, outra obra que mudaria a matemática para sempre: o Al-kitab al-mukhtasar fi hisab al-jabr wal-muqabala, ou "Compêndio de cálculo por restauração e balanceamento", de autoria de Al-Khwarizmi (780 d.C. a 850 d.C.) sob o patrocínio do califa Al-Mamun, a quem o matemático tece o seguinte elogio:

"Esse carinho pela ciência... essa afabilidade e condescendência que ele [o califa] mostra aos sábios... encorajou-me a compor uma pequena obra de cálculo por restauração [al-jabr] e balanceamento [muqabala]... já que os homens constantemente o exigem em casos de herança, legados, partições, processos judiciais e comércio."

O termo al-jabr deu origem nada menos que à palavra portuguesa álgebra. Nesta obra, o autor reconhece que suas idéias são baseadas no trabalho de Brahmagupta e, portanto, ele estava familiarizado com os números negativos. Porém, seus modelos geométricos, todos eles baseados nos trabalhos de matemáticos gregos, o convenceram de que os resultados negativos não tinham sentido, questionando: "como se poderia obter um quadrado negativo"? Curiosamente, em outro tratado de sua autoria em legislação sobre heranças, Al-Khwarizmi representa quantidades negativas como débitos. A primeira ocorrência do uso explícito de números negativos em textos do mundo islâmico medieval é atribuído ao matemático e astrônomo Abu al-Wafa (940 d.C. a 998 d.C.), em sua obra: Kitab fi ma yahtaj ilayh al-kuttab wa l-ummal min ilm al-hisab, ou "Livro daquilo que é necessário da ciência aritmética para escribas e negociantes".


Representação alegórica de Abu al-Wafa

Nela, al-Wafa apresenta uma regra geral e demonstra um caso especial onde a subtração de 5 por 3 fornece um 'débito' de 2. Em seguida, multiplica o resultado por 10 para obter um novo 'débito' de 20, que adicionado a uma 'fortuna' de 35 resulta 15. Aliás, o famoso livro Almagesto, um influente tratado medieval de astronomia, escrito pelo matemático grego Ptolomeu, foi traduzido para o árabe por al-Wafa. Por fim, é digno de menção outro matemático e astrônomo árabe: Al-Samawal (1.130 d.C. a 1.180 d.C.), que em sua obra Al-bahir fil-jabr, ou "O brilhante em álgebra", estabelece algumas regras de sinais:


Se subtrairmos um número positivo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém negativo; e se subtrairmos um número negativo de uma 'potência vazia', resulta no mesmo número, porém positivo; o produto de um número negativo por um número positivo é negativo, e por um número negativo é positivo.


A justificativa para a regra de sinais da multiplicação, quando havia alguma, era sempre de caráter geométrico. Porém, a primeira prova no ocidente baseada na lei distributiva da aritmética para a regra de sinais aparece no trabalho do algebrista italiano maestro Dardi de Pisa, por volta de 1.380 em sua obra Aliabraa argibra, cuja prova é reproduzida a seguir. Dado um retângulo medindo 20 de largura por 10 de altura, cuja área é igual a 200:



Reduz-se suas medidas respectivamente de 3 unidades na largura e 2 unidades na altura, obtendo-se:



Pergunta: qual a nova área (em azul) após a redução nas medidas do retângulo laranja? Ora, como sabemos que a área de um retângulo é a multiplicação de sua base (ou largura) por sua altura, temos:

$$ Area=largura\times altura=17\times 8=136 $$

Mas, e se quiséssemos obter a área a partir das medidas originais subtraídas? Não há dúvida de que uma área igual a 136 tem de ser alcançada. Assim:

$$ Area=largura\times altura=\left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=136 $$

Para que a multiplicação de (20 – 3) por (10 – 2) resulte 136, aplica-se a lei distributiva da aritmética, em que todos os termos multiplicam-se uns aos outros, somando-se os resultados parciais. Logo:

$$ \left ( 20-3 \right )\times \left ( 10-2 \right )=\left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right ) $$

As multiplicações à direita da igualdade devem, somadas, valer 136:

$$ \left ( 20\times 10 \right )+\left ( 20\times -2 \right )+\left ( -3\times 10 \right )+\left ( -3\times -2 \right )=136 $$

Bom, agora com o auxílio da geometria, temos a seguinte situação: o primeiro termo da multiplicação (20 × 10) corresponde à área original do retângulo laranja.



Os dois termos são positivos e o resultado da multiplicação também é positivo:

$$ \left ( 20\times 10 \right )=200 $$

Daí deriva a primeira regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número positivo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: mais com mais dá mais.


O segundo termo (20 × –2) corresponde à faixa laranja horizontal, que deve ser subtraída da área original:



Logo, seu resultado deve ser negativo:

$$ \left ( 20\times -2 \right )=-40 $$

Neste caso, o primeiro termo é positivo e o segundo termo, negativo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa horizontal laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a segunda regra de sinais da multiplicação:

Um número positivo multiplicado por outro número negativo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: mais com menos dá menos.


O terceiro termo (–3 × 10) corresponde à faixa laranja vertical, que também deve ser subtraída da área original:


Logo, seu resultado também deve ser negativo:

$$ \left ( -3\times 10 \right )=-30 $$

Neste caso, o primeiro termo é negativo e o segundo termo, positivo. O resultado da multiplicação tem de ser negativo para que a área da faixa vertical laranja seja descontada do retângulo original; daí surge a terceira regra de sinais da multiplicação:

Um número negativo multiplicado por outro número positivo resulta em um negativo, ou como aprendemos na escola: menos com mais dá menos.


Bom, até aqui temos o seguinte resultado parcial para o cálculo da área do retângulo azul:

$$ 200-40-30=200-70=130 $$

Opa! Temos um problema: descontadas as áreas das faixas laranja horizontal e vertical, a área restante é menor em 6 unidades que a área do retângulo azul. Mas temos ainda uma última multiplicação a ser analisada:

$$ \left ( -3\times -2 \right ) $$

Se temos que somar 6 unidades para obter o valor correto da área do retângulo azul (de 130 para 136), o resultado dessa multiplicação tem de ser positivo:

$$ \left ( -3\times -2 \right )=6 $$

Essa área corresponde à intersecção entre as duas faixas laranja, a horizontal e a vertical, destacada abaixo em verde:



Como esse pedaço de área verde é descontado duas vezes nos cálculos parciais (uma vez com a faixa horizontal e outra com a faixa vertical), faz-se necessário acrescentar esse valor para que o cálculo da área do retângulo azul resulte correto. Chegamos assim à quarta e última regra de sinais da multiplicação:


Um número negativo multiplicado por outro número negativo resulta em um positivo, ou como aprendemos na escola: menos com menos dá mais.



A regra de sinais da multiplicação deriva da constatação geométrica do cálculo de áreas e a lei distributiva da aritmética é a forma matemática de demonstrar sua validade. Seja como for, os números negativos prosseguem em sua árdua marcha rumo ao reconhecimento nos caminhos nem sempre suaves da matemática e chegam finalmente à Europa medieval. Lá, são apresentados a banqueiros e comerciantes por ninguém menos que Fibonacci; a seção do Liber Abaci que trata das subtrações recebe o título: Da subtração de números menores por números maiores. Porém, é na segunda parte de seu manuscrito que o italiano lida com bens e dinheiro, reforçando um simbolismo para transações econômicas com os números negativos, particularmente a noção de lucros ou ganhos em oposição a perdas ou contração de débitos na forma de inúmeros problemas descritivos, como este:

Três homens tinham libras esterlinas, não sei quantas, das quais a metade pertencia ao primeiro, um terço ao segundo e um sexto ao terceiro; como eles queriam mantê-las em um lugar seguro, cada um deles tomou das libras alguma quantia, e do montante que o primeiro tomou pôs em comum a metade, e do que o segundo tomou, pôs em comum uma terça parte, e do que o terceiro tomou, colocou em comum uma sexta parte, e do que eles puseram em comum cada um recebeu uma terça parte, e, assim, cada um teve sua porção.

Fibonacci encontra a seguinte solução para o resgate do montante entre três os homens:

Primeiro: 326 libras;
Segundo: 174 libras;
Terceiro: −30 libras;


O terceiro homem, diz ele, não recebe nada do montante compartilhado, ao contrário, coloca mais 30 libras de seu próprio bolso: havia 470 libras no total e quando eles quiseram mantê-las 'em um local seguro', o terceiro homem adicionou 30 libras, o primeiro homem tomou 326 libras e o segundo tomou 174 libras. Observe que ao lidar com dinheiro, as quantidades negativas assumem um significado simples entre dar e receber, ou entre créditos e débitos assumidos. Esta situação perdura inalterada desde o lançamento do Liber Abaci em 1.202, quando em plena Renascença o matemático e frei franciscano Luca Pacioli publica em 1.494 o seu Summa de arithmetica geometria. Nesta obra, quando um resultado é negativo ele é descrito como um débito; a exceção fica por conta de um problema que Pacioli denomina de belíssimo caso: neste exemplo, pede-se para dividir 10 em duas partes cuja diferença dos quadrados das partes seja igual a 200. A resposta para esse problema é:

$$ 10=15-5 $$

De fato, a diferença dos quadrados das partes é igual a 200:

$$ \left ( 15 \right )^{2}-\left ( 5 \right )^{2}=225-25=200 $$

Mas ainda assim não temos um número negativo de fato; o que se vê nesta conta é a subtração de um número maior por outro menor. Finalmente, encontramos nesta obra a primeira citação da regra de sinais do modo formal como é ensinada atualmente na escola.


A regra de sinais para a divisão (que é a mesma da multiplicação) no Summa de arithmetica geometria, de Luca Pacioli. A primeira linha destacada em verde diz: a partire piu per piu neuen piu, ou seja: a divisão de mais com mais resulta mais, e assim por diante.

Outro matemático que lidou com números negativos foi o italiano Girolamo Cardano em sua obra Ars Magna, de 1.545. Ele é o primeiro matemático a oferecer uma argumentação satisfatória para soluções negativas a problemas com equações lineares (semelhantes à equação de Diofanto de Alexandria) e o primeiro a aceitar raízes quadradas de números negativos. Chama os números positivos de numeri ueri (números reais) e os números negativos de numeri ficti (números fictícios), afirmando: “para tal, chamamos aquele como um débito ou negativo”, porém não faz muito mais pelos negativos, ignorando-os sistematicamente.


Girolamo Cardano
No último capítulo do Ars Magna (Sobre a regra para postular um negativo), Cardano faz alguma exploração sobre o resultado de raízes negativas, como no exemplo abaixo:

O dote da esposa de Francisco vale 100 aurei [moedas de ouro] a mais do que a própria propriedade de Francisco, e o quadrado do dote é 400 mais que o quadrado de sua propriedade. Encontre o dote e a propriedade.


O problema reduz-se a duas equações:

$$ \blacksquare =\square +100 $$
$$ \blacksquare^{2} =\square^{2} +400 $$

O valor do dote da esposa de Francisco é representado pela cartela preta e o valor da propriedade pela cartela branca. Substituindo o valor da cartela preta da primeira equação na cartela preta da segunda equação, temos:

$$ \left ( \square +100 \right )^{2}=\square ^{2}+400 $$

Desenvolvendo, vem:

$$ \left ( \square +100 \right )\times \left (\square +100 \right )=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+100\square +100\square +100^{2}=\square ^{2}+400 $$
$$ \square ^{2}+200\square +10.000=\square ^{2}+400 $$

Simplificando:

$$ 200\square +10.000=400 $$
$$ 200\square +10.000-10.000=400-10.000 $$
$$ 200\square=-9.600 $$

Resultando em:

$$ \frac{200}{200}\square =\frac{-9.600}{200} $$
$$ \square =-48 $$

Ou seja, a propriedade de Francisco valeria −48 aurei, mas por sorte o valor do dote de sua esposa vale:

$$ \blacksquare =\square +100=-48+100 $$
$$ \blacksquare =+52 $$

Alguns anos antes de sua morte, Cardano publica em 1.570 o tratado De Aliza Regulae, cujo particular interesse é a refutação que faz para a regra de sinais para a multiplicação e a divisão geralmente aceita pelos algebristas em sua época. Usando o mesmo exemplo do maestro Dardi de Pisa, ele conclui o contrário deste: a de que menos com menos resultar mais seria tão 'verdadeiro' quanto dizer que mais com mais resultaria menos.


Texto de Cardano refutando a regra de sinais, no De Aliza Regulae.
No texto de Cardano, o quadrado acfe tem lado ac igual a 10 e área igual a 100. Dado que bc e ag tem lado igual a 2, o quadrado egd terá uma área igual a 64. Para sair de 100 (quadrado acfe) e chegar a 64 (quadrado egd) temos que subtrair os dois retângulos cg e bf. Ao fazer isso, subtraímos o quadrado cbd duas vezes, de modo que temos que somá-lo uma vez mais. Assim, aritmeticamente, temos:

$$ 100-\left ( 10\times 2 \right )-\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 2 \right )=64 $$

A aplicação da lei distributiva acima é semelhante àquela adotada por maestro Dardi em sua prova. Entretanto, Cardano argumenta que o +4 não é o resultado da multiplicação de −2 por −2, mas uma área que deve ser novamente adicionada porque subtraímos o pequeno quadrado duas vezes do cálculo. Ele faz referência à proposição 7 do Livro II do Elementos de Euclides, reproduzida abaixo:

Se um segmento AB é dividido em dois por um ponto C, então o quadrado sobre o lado AB mais o quadrado sobre o lado CB é igual a duas vezes o retângulo de lados AB e CB mais o quadrado sobre o lado AC.


O resultado geométrico da proposição 7 do grego é muito semelhante ao desenho do matemático italiano:


Após referenciar Euclides, como para embasar sua linha de raciocínio, Cardano conclui: “E, portanto, está aberto o erro comumente asseverado de que menos vezes menos produzirá mais, para que de fato não seja mais correto afirmar que menos vezes menos produza mais, do que mais vezes mais produziria menos”. Um matemático importante para a história dos números negativos foi o inglês John Wallis: credita-se a ele a criação da reta numérica dos números inteiros, em sua obra Treatise on Algebra, escrito em inglês em 1.685, e que atualmente representamos por uma linha reta com o zero ao centro, os números positivos à direita da reta e os negativos à esquerda.


Reta numérica apresentada por John Wallis em sua obra Treatise on Algebra, de 1.685
Observe no texto acima a reta numérica de Wallis; acima da reta, o texto relata o seguinte:

No entanto, não é essa suposição (de quantidades negativas) nem inútil nem absurda quando corretamente compreendida. Porém, para a notação algébrica pura, importa uma quantidade menor que nada: entretanto, quando se trata de uma aplicação física, ela denota como real uma quantidade como se o sinal fosse +, mas para ser interpretado em sentido contrário. Como por exemplo: um homem que tenha avançado ou andado para frente (de A para B) 5 metros; e depois recuado (de B para C) 2 metros; se for perguntado, quanto tinha avançado (em toda a marcha) estando em C? Encontro... que ele avançou 3 metros. Mas, se tendo avançado 5 metros para B, ele retrocede 8 metros para D; então, se for perguntado, quanto avançou até D ou quanto teria avançado quando ele estava em A? Encontro −3 metros... ou seja, ele avançou 3 metros menos que nada... mas o que teríamos dito (em linguagem ordinária) é que ele retrocedeu 3 metros; ou que ele quer 3 metros a partir de onde está para avançar até onde estava em A.


John Wallis
Apesar da primazia pela criação da reta numérica e do exemplo interessante de alguém avançando ou recuando em um trajeto, Wallis também patinou em alguns conceitos matemáticos utilizando números negativos. Em sua obra Arithmetica Infinitorum, de 1.656, Wallis se aprofunda na idéia de que ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado é maior que infinito. A razão que o levou a essa conclusão equivocada encontra-se na proposição 104. Considere a seguinte fração:

$$ \frac{1}{\blacksquare } $$

Se no denominador a cartela preta for substituída por um número positivo muito grande, a fração se tornará zero. Ao contrário, se o denominador for substituído por zero, a fração resultará infinito. Agora, passando do zero, chegamos aos números negativos no denominador da fração (lembre-se da reta numérica). Avançando a linha de raciocínio, se números divididos por zero resultam infinito, então se formos além desse valor, ou seja, se dividirmos por números negativos, a fração resultará em valores maiores que o infinito. Ainda que tenhamos de compreender estas conclusões surpreendentes dentro do contexto em que são colocadas, a afirmação (e, portanto, o escorregão) de Wallis com os números negativos é incontestável, pois afirma que a razão de um número positivo por um negativo como sendo rationem plusquam infinitam (uma razão maior que infinito).


Texto onde Wallis afirma que um número positivo dividido por outro negativo gera um valor maior que infinito, no Arithmetica Infinitorum.
Levadas ao pé da letra, as duas primeiras assertivas de Wallis também estão incorretas, mas podemos 'suavizar' este contexto através de uma analogia rudimentar: se tivermos uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito grande, o resultado será algo muito pequeno (representado na figura abaixo pelo rato); reciprocamente, uma fração onde o numerador seja o número 1 e o denominador seja um número muito pequeno (um número em notação decimal próximo de zero), o resultado será algo muito grande (representado na figura pelo elefante):



Outro matemático, contemporâneo de Wallis, que não se livrou de tomar um escorregão dos números negativos foi o francês Antoine Arnauld.


Antoine Arnauld
Em sua obra Nouveaux éléments de géométrie, de 1.667, ele inclui um exemplo de regras simbólicas que considera como estando contra nossas intuições básicas sobre magnitudes e proporções. Seu raciocínio é o seguinte: suponha que temos dois números, um maior e outro menor (por exemplo, 5 e 2) e se estabeleça entre eles duas razões: 5/2 e 2/5. A proporção do maior para o menor (5/2) é evidentemente maior que a proporção do menor para o maior (2/5). Em seguida, ele sugere substituir o 5 e o 2 respectivamente por 1 e por −1, resultando em duas novas razões: 1/−1 e −1/1. Se a proporção anterior é válida, então a proporção entre as duas novas razões também deve ser, ou seja, conclui-se que 1/−1 é maior que −1/1, o que vai contra as regras da álgebra. Este embate no século XVII entre o pensamento simbólico (algébrico) e a teoria clássica das proporções, herdada da geometria grega, mostrou-se problemática. A proposição de Arnauld mereceu até mesmo uma análise do gigante da matemática, o alemão Gottfried Leibniz, quando discute o problema em um artigo na obra Acta Eruditorum, de 1.712.


Gottfried Leibniz
Nesse artigo, Leibniz reconhece o problema de Arnauld como legítimo, mas estabelece que a divisão devesse ser executada segundo as regras do cálculo simbólico. Além disso, ao aplicar cegamente as regras de sinais, igualmente não haveria nenhum problema: ao dividir um número positivo por outro negativo o resultado será negativo, e ao dividir um número negativo por outro positivo, o resultado também será negativo. Portanto, as razões 1/−1 e −1/1 são rigorosamente iguais.


Resposta de Leibniz a Arnauld no Acta Eruditorum, de 1.712.
Outro gigante da matemática que também tinha pleno controle dos números negativos e seus usos foi o inglês Isaac Newton. Em sua obra Universal Arithmetick, de 1.707, estabelece:


Quantidades são tanto Afirmativas, ou maiores que nada, quanto Negativas, ou menores que nada. Desse modo, nos afazeres humanos, posses ou estoque podem ser chamados bens afirmativos, e os débitos de negativos. Assim também no movimento local, progressão será chamada movimento afirmativo e regressão de movimento, negativo; porque o primeiro aumenta e o segundo diminui o comprimento do caminho percorrido. E ainda assim do mesmo modo na geometria, se uma linha desenhada em certo sentido for contada como afirmativa, então uma linha desenhada no sentido contrário será tomada como negativa.


Isaac Newton
Um dos últimos grandes matemáticos a se indispor com os números negativos foi o inglês Augustus De Morgan. Por exemplo, na enciclopédia Penny de 1.843, à qual contribuiu com muitos artigos, De Morgan escreveu o seguinte no artigo Negative and Impossible Quantities (Quantidades Negativas e Impossíveis):


Não é nossa intenção seguir os primeiros algebristas através de seus diferentes usos dos números negativos. Essas criações da álgebra retinham sua existência, diante da óbvia deficiência da explicação racional que caracterizava cada esforço de sua teoria.


Augustus De Morgan
Esse matemático passou grande parte de sua vida mostrando, numa primeira fase, quantas equações com esses 'números negativos sem importância' poderiam ser reelaboradas para afirmar fatos verídicos envolvendo apenas números positivos e, numa segunda fase, trabalhando lentamente para a definição de anéis e campos abstratos (conceitos da teoria dos conjuntos na álgebra moderna), idéias essas que ele sentia ser a única maneira de construir uma teoria totalmente satisfatória de números negativos. Tenham sido considerados absurdos ou sem sentido, ou apreciados como entes matemáticos como quaisquer outros, a verdade é que atualmente começamos a estudar os números negativos desde a tenra juventude e sem maiores constrangimentos, ou usando a reta numérica de John Wallis ou trabalhando com jogos de créditos e débitos na comercialização de mercadorias utilizando dinheiro 'de brincadeira' à moda de Fibonacci ou por meio de outros recursos pedagógicos. E uma vez que a história dos números negativos nos foi apresentada, iremos ao encontro de outro assunto instigante: o infinito e seus desdobramentos na matemática.

terça-feira, fevereiro 21, 2017

As origens da raiz quadrada

Plaquetas de argila babilônicas, conhecidas pela sigla BM 15285, datadas entre 2.000 e 1.600 a.C., e que apresentam uma série de exercícios matemáticos em língua acadiana. O exercício indicado pela seta azul diz: “O lado do quadrado é igual a 1. Desenhei quatro triângulos nele. Quais suas áreas superficiais?”
Longo e pitoresco foi o avanço e o entendimento do conceito das raízes quadradas ao longo do tempo, até chegar à sua conceituação moderna. Para os babilônios, por exemplo, não existe nenhuma indicação de que classificassem os números entre inteiros, racionais ou irracionais. Todas as evidências arqueológicas encontradas até hoje se resumem a plaquetas de argila cozida contendo problemas com ou sem enunciado e sua solução sem maiores explicações. Exemplo desse tipo de artefato é a plaqueta conhecida pela sigla YBC7289 indicada a seguir:

À esquerda: plaqueta de argila cozida babilônica, conhecida pela sigla YBC7289. À direita: ilustração dessa mesma plaqueta, enfatizando a escrita cuneiforme.
Esta plaqueta provavelmente é um exercício escolar de um estudante (aspirante a escriba). Na parte superior esquerda da plaqueta, observamos o seguinte glifo:

Que na notação matemática babilônica corresponde a 30 e indica o tamanho do lado do quadrado. E na diagonal horizontal, temos dois conjuntos de glifos, sendo o primeiro:


Que corresponde à sequência numérica: 1, 24, 51, 10. E o segundo conjunto de glifos:


Que corresponde à sequência numérica: 42, 25, 35. Já vimos em capítulos anteriores que a primeira sequência numérica equivale a frações, cuja representação moderna é a que se segue:

$$ 1+\frac{24}{60}+\frac{51}{60\times 60}+\frac{10}{60\times 60\times 60}=\frac{305.470}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 1,41421\overline{296296}... $$

Que é também conhecido por constante de Pitágoras. Este número, multiplicado pelo lado do quadrado (que vale 30), fornece como resultado:

$$ 42,426\overline{38888}... $$

Que corresponde ao tamanho da diagonal do quadrado. A segunda sequência numérica, que também equivale a frações, se expressa da seguinte forma na notação matemática moderna:

$$ \frac{42}{60}+\frac{25}{60\times 60}+\frac{35}{60\times 60\times 60}=\frac{152.735}{216.000} $$

Em notação decimal, essa soma de frações, ou a fração resultante dessa soma, corresponde ao número irracional:

$$ 0,707106\overline{481481}... $$

Estes números guardam também uma relação entre si; observe:

$$ 1,41421\overline{296296}...=\frac{1}{0,707106\overline{481481}...} $$

Ou seja, as duas sequências numéricas em grafia cuneiforme são recíprocas. É muito comum na matemática babilônica o uso de frações recíprocas. Não seria um completo absurdo supor que a lição contida na plaqueta de argila executada pelo aprendiz de escriba fosse esta: para qualquer quadrado, o tamanho de suas diagonais é o produto do tamanho do lado pela constante de Pitágoras. Isto porque a plaqueta de argila não possui nenhum enunciado: contém apenas uma figura geométrica com três números. Ao que tudo indica os egípcios também lidavam com esse tipo de cálculo. Um dos poucos exemplos existentes é encontrado no papiro de Berlim 6619, ou simplesmente, papiro de Berlim.


Reprodução do papiro de Berlim 6619
Em um fragmento do documento IV.4 deste papiro, depois da sexta linha, surge o hieróglifo abaixo:


Cuja pronúncia é quenebete e que significa 'quina' ou 'ângulo', seguido da soma de frações unitárias abaixo, conforme a tradição egípcia:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16} $$

O problema exige uma boa dose de interpretação para se tornar compreensível, pois como é de praxe, os egípcios não explicam como se chega ao resultado indicado. Primeiro, vejamos qual é a fração resultante desta soma de frações unitárias:

$$ 1+\frac{1}{2}+\frac{1}{16}=\frac{16+8+1}{16}=\frac{25}{16} $$

Considerando que a fração 25/16 corresponda à área de um quadrado:



Pergunta-se: quanto vale o lado do quadrado, sabendo-se que sua área é igual a 25/16? Como a área de um quadrado é obtida multiplicando-se um lado por ele mesmo, o hieróglifo quenebete bem que poderia, em termos matemáticos, sugerir a multiplicação de dois lados do quadrado para a obtenção de sua área, que é o mesmo que elevar ao quadrado ou aplicar a potenciação, ou seja:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

O problema agora se resume em encontrar um número que multiplicado por ele mesmo resulte na área do quadrado. Este número corresponderá ao tamanho do lado do quadrado. Assim:

$$ Area=\frac{25}{16}=lado^{2}=lado\times lado $$

Esse resultado, aparentemente, também é uma fração. Então, podemos reescrever a equação acima deste modo:

$$ \frac{25}{16}=lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square } $$

Que número no numerador (indicado pelas cartelas pretas) que multiplicado por ele mesmo resulta 25? E que número no denominador (indicado pelas cartelas brancas) que multiplicado por ele mesmo resulta 16? Para quem estudou potenciação, ou pelo menos se lembra das tabuadas, já sabe a resposta:

$$ lado\times lado=\frac{\blacksquare }{\square }\times \frac{\blacksquare }{\square }=\frac{5}{4}\times \frac{5}{4}=\frac{25}{16} $$

Portanto, o lado de um quadrado de área 25/16 é igual a 5/4. De fato, a resposta ao problema no papiro é esta:

$$ 1+\frac{1}{4} $$

Na notação fracionária egípcia, que só admitia frações unitárias. Esta soma de frações corresponde a:

$$ 1+\frac{1}{4}=\frac{4+1}{4}=\frac{5}{4} $$

Que é a solução encontrada para o tamanho do lado do quadrado. Os gregos também utilizavam geometria como ferramenta para o cálculo do valor do lado de um quadrado a partir de sua área. O matemático Téon de Alexandria (335 d.C. a 395 d.C.), pai de Hipátia e um grande comentador de obras gregas clássicas, apresenta na obra Almagesto (tratado matemático e astronômico escrito no século II d.C. por Cláudio Ptolomeu), um comentário onde demonstra um método geométrico para o cálculo do lado de um quadrado. O método é o seguinte: considere um quadrado cuja área seja igual a 144, conforme ilustrado abaixo:



Deseja-se descobrir qual o tamanho do lado deste quadrado; para isso, Téon inicia com um 'chute', atribuindo o valor 10 como sendo o tamanho do lado. Já que a área de um quadrado é dada por:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2} $$

Então, com o valor estimado, a área do quadrado será:

$$ Area=lado\times lado=lado^{2}=\left ( 10 \right )^{2}=100 $$

Como a área obtida é menor que a área real, ajusta-se a figura conforme segue:



O lado do quadrado é maior que 10 de uma quantidade indicada por um ponto de interrogação (?). A área que restou do quadrado laranja pode ser segmentado em 3 partes, conforme indicado:



Nesta nova configuração, o retângulo laranja na horizontal possui as seguintes dimensões: 10 de largura e (?) de altura. Por outro lado, o retângulo laranja na vertical possui as dimensões: (?) de largura e 10 de altura. Finalmente, o quadrado verde tem lado igual a (?). As áreas dos dois quadrados (azul e verde) e dos dois retângulos laranjas são assim calculados:

$$ Area\left (quadrado.azul  \right )=10\times 10=10^{2}=100 $$
$$ Area\left (quadrado.verde  \right )=?\times ?=?^{2} $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.horizontal  \right )=10\times ? $$
$$ Area\left (retangulo.laranja.vertical  \right )=?\times 10 $$

Somando as áreas das 4 figuras geométricas, obtemos o valor da área total, que é 144. Então:

$$ 100+?^{2}+\left ( 10\times ? \right )+\left ( ?\times 10 \right )=144 $$

Agora, vem a pergunta: que número deve ser colocado no lugar do ponto de interrogação para que a soma à esquerda se iguale a 144? Bom, vamos começar substituindo o ponto de interrogação pelo número 1. Teremos:

$$ 100+1^{2}+\left ( 10\times 1 \right )+\left ( 1\times 10 \right ) $$
$$ 100+1+10+10=121 $$

Observe que o valor obtido (121) é menor que 144. Então, vamos aumentar esse valor, substituindo o ponto de interrogação por 2. Obtemos:

$$ 100+2^{2}+\left ( 10\times 2 \right )+\left ( 2\times 10 \right ) $$
$$ 100+4+20+20=144 $$

Ótimo! Agora o número obtido é igual ao valor da área do quadrado laranja original. Então, o lado do quadrado laranja vale: 10 + 2 = 12. E sua área é: 12 × 12 = 144.



Por muito improvável que possa parecer, tudo o que foi apresentado até agora trata de raízes quadradas! Vejamos por que: o cálculo do lado ou da diagonal de um quadrado pode resultar em um número inteiro ou, muito comumente, em um número irracional. Quando o cálculo do lado ou da diagonal do quadrado resultava em um número irracional, já vimos que os povos antigos faziam uso de frações para descrever esses números de modo aproximado, pois era a melhor ferramenta de que dispunham para descrever seu valor. As técnicas e geometrias desenvolvidas pelos babilônios, pelos egípcios e principalmente pelos gregos para o cálculo de lados e diagonais de quadrados foram transmitidas posteriormente para os povos árabes. Diversos matemáticos islâmicos (sendo Al-Khwarizmi o mais notório deles) traduziram esses textos matemáticos para o árabe. Por sua vez, esses textos árabes foram levados para a Europa através da península ibérica durante o califado Omíada e convertidos posteriormente para o latim por diversos tradutores, entre os quais destacam-se: João de Sevilha (também conhecido como Johannes Hispaniensis), Domingo Gundisalvo e Gerardo de Cremona, num período compreendido entre 1.135 e 1.162 d.C.; muitas dessas traduções foram realizadas em Toledo, na Espanha, que naquela época era um importante centro cultural. Pois bem: nos textos matemáticos árabes, o termo 'lado do quadrado' foi traduzido para o latim em duas variações: a correta latus quadratum (onde latus é lado em português) e a equivocada radix quadratum, em que radix significa raiz em português. A palavra latus foi sendo gradualmente substituída pela letra l, conforme o modelo abaixo:


E a palavra radix também foi sendo gradualmente substituída pela letra R, conforme abaixo:


Fato é que, apesar de equivocada, a tradução do termo em árabe 'lado do quadrado' para o latim radix quadratum prevaleceu sobre a tradução latus quadratum. Já o símbolo moderno de raiz (√) surge pela primeira vez em 1.525 na obra Die Coss, do matemático alemão Christoff Rudolff. O matemático suíço Leonhard Euler afirma em sua obra Institutiones calculi differentialis, de 1.755, o seguinte: no lugar da letra r, inicialmente indicada para radix, agora passou-se para o uso comum desta forma distorcida de √. É por isso que até hoje dizemos raiz quadrada para aquilo que antigamente estava relacionado ao cálculo do lado do quadrado a partir de sua área ou da diagonal do quadrado a partir de seus lados.


Página do “Die Coss”, de Christoff Rudolff. Observe os símbolos da raiz quadrada ao longo de todo o texto. O termo 'quadrat wurtzel', que aparece destacado em vermelho ao final da primeira linha do texto, significa 'raiz quadrada' em alemão.
Com esse conceito em mente, fica mais fácil entender o significado do que é raiz quadrada. Vejamos através de um exemplo: dado um quadrado de área 42, quanto vale o seu lado?



Sabemos que a área dessa figura geométrica é igual ao lado elevado ao quadrado:

$$ Area=lado^{2} $$

Que número elevado ao quadrado resulta 42? Se escolhermos o número 6, teremos:

$$ 6^{2}=6\times 6=36 $$

O resultado obtido (36) é menor que a área do quadrado (42). Se adotarmos o valor 7 para o lado do quadrado, teremos:

$$ 7^{2}=7\times 7=49 $$

Agora o resultado obtido (49) é maior que a área do quadrado (42). Portanto, o tamanho do lado do quadrado está entre 6 e 7, ou seja, não é um número inteiro. Em latim, diríamos: radix quadratum 42 aequalis, ou seja, o lado do quadrado [de área] 42 é igual a:

$$ lado=\sqrt{42} $$

Onde √42 (lê-se: raiz quadrada de 42) é a representação matemática moderna para o tamanho do lado do quadrado, um número cujo valor está entre 6 e 7 e que para babilônios, egípcios, gregos e outras civilizações antigas tinha seu valor representado por uma fração! Se fosse um número racional, a fração seria uma representação exata desse número; se fosse irracional, a fração representaria um valor aproximado.



Se a √42 é um número cujo valor é maior que 6 e menor que 7, então em notação decimal moderna, que número é esse? Herão de Alexandria (10 d.C. a 80 d.C.) foi um matemático e mecânico grego que criou um método poderoso para a obtenção da raiz quadrada de qualquer número inteiro que não seja um quadrado perfeito. Por exemplo, o número 9 é um quadrado perfeito, pois 3 x 3 = 9, assim como 64 é outro quadrado perfeito, pois 8 x 8 = 64. Para números que sejam quadrados perfeitos, ou seja, que são o produto de um número inteiro multiplicado por ele mesmo, o método demonstrado por Herão não se aplica! O método funciona assim: se o número que estamos procurando está entre 6 e 7, vamos tirar a média entre estes dois valores:

$$ Media=\frac{6+7}{2}=\frac{13}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela fração 13/2, resultando:

$$ \frac{42}{\frac{13}{2}}=\frac{42\times 2}{13}=\frac{84}{13} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (84/13) à fração inicial (13/2):

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 13 (que é 26), vem:

$$ \frac{13}{2}+\frac{84}{13}=\frac{169+168}{26}=\frac{337}{26} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (337/26), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{337}{26}}{2}=\frac{337}{26}\times \frac{1}{2}=\frac{337}{52} $$

A fração obtida (337/52) é a primeira aproximação para √42, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{337}{52}=6,4807\overline{6923}... $$

Se quisermos aumentar essa precisão (já que uma fração pode sempre se aproximar cada vez mais do valor de um número irracional, sem, contudo, representar seu valor exato), repetimos o processo. Assim, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (42) pela nova fração (337/52), resultando:

$$ \frac{42}{\frac{337}{52}}=\frac{42\times 52}{337}=\frac{2.184}{337} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (2.184/337) à fração inicial (337/52):

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 52 e 337 (que é 17.524), vem:

$$ \frac{337}{52}+\frac{2.184}{337}=\frac{113.569+113.568}{17.524}=\frac{227.137}{17.524} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (227.137/17.524), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{227.137}{17.524}}{2}=\frac{227.137}{17.524}\times \frac{1}{2}=\frac{227.137}{35.048} $$

A fração resultante (227.137/35.048) é o novo valor de √42, mais refinado que aquele obtido com a fração (337/52). O método de Herão pode prosseguir indefinidamente, quanto maior for a precisão desejada. Desse modo, o número irracional procurado, em notação decimal, será:

$$ \sqrt{42}\cong \frac{227.137}{35.048}=6,4807406984\overline{7066}... $$

Observe a eficiência deste método: com apenas uma rodada foi alcançada uma precisão de 4 casas decimais e com duas rodadas, alcançou-se 9 casas decimais de precisão! Vejamos mais um exemplo: calcule a diagonal de um quadrado de lado igual a 1.



A diagonal divide o quadrado em dois triângulos retângulos. Como já apresentado no capítulo anterior, o Teorema de Pitágoras estabelece que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Adaptando para o quadrado, podemos afirmar que o quadrado da diagonal é igual à soma dos quadrados dos lados. Ou seja:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Substituindo, temos:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=1+1=2 $$

Pergunta: que número elevado ao quadrado resulta 2? Também já foi visto no capítulo anterior que não existe um número inteiro que multiplicado por ele mesmo, ou elevado ao quadrado, resulte 2, tampouco se trata de um número racional (ou seja, obtido a partir de uma razão). Logo, esse é um número irracional. Sabendo-se que:

$$ diagonal^{2}=diagonal\times diagonal $$

Se aplicarmos a raiz quadrada em ambos os termos da igualdade para mantê-la inalterada, vem:

$$ diagonal^{2}=2 $$
$$ \sqrt{diagonal^{2}}=\sqrt{2} $$

A raiz quadrada da diagonal elevada ao quadrado equivale à própria diagonal, que por sua vez é igual à raiz quadrada de 2, uma notação matemática que representa o número irracional que é a medida da diagonal do quadrado de lado igual a 1. Assim, a diagonal do quadrado [de lado] 1 é igual a:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$

Em notação decimal, que número é √2? Como esse número é maior que 1 e menor que 2, vamos aplicar o método de Herão para descobrir seu valor aproximado na forma fracionária. Para isso, vamos estimar um valor inicial para esse número, tirando a média entre 1 e 2:

$$ Media=\frac{1+2}{2}=\frac{3}{2} $$

Com esta estimativa, podemos iniciar o método de Herão. O primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela fração 3/2, resultando:

$$ \frac{2}{\frac{3}{2}}=\frac{2\times 2}{3}=\frac{4}{3} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (4/3) à fração inicial (3/2):

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 2 e 3 (que é 6), vem:

$$ \frac{4}{3}+\frac{3}{2}=\frac{8+9}{6}=\frac{17}{6} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (17/6), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{17}{6}}{2}=\frac{17}{6}\times \frac{1}{2}=\frac{17}{12} $$

A fração obtida (17/12) é a primeira aproximação para √2, que na notação decimal vale:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{17}{12}=1,41\overline{6666}... $$

Repetindo o processo para melhorar a precisão, o primeiro passo consiste em dividir o número do qual se quer obter a raiz (2) pela nova fração (17/12), resultando:

$$ \frac{2}{\frac{17}{12}}=\frac{2\times 12}{17}=\frac{24}{17} $$

O próximo passo do método de Herão soma a fração (24/17) à fração inicial (17/12):

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17} $$

Obtendo o mínimo múltiplo comum entre 12 e 17 (que é 204), vem:

$$ \frac{17}{12}+\frac{24}{17}=\frac{289=288}{204}=\frac{577}{204} $$

O último passo do método de Herão consiste em dividir por 2 a fração resultante (577/204), obtendo-se:

$$ \frac{\frac{577}{204}}{2}=\frac{577}{204}\times \frac{1}{2}=\frac{577}{408} $$

A fração resultante (577/408) é o novo valor de √2, mais refinado que o obtido com a fração (17/12). Desse modo, temos:

$$ \sqrt{2}\cong \frac{577}{408}=1,41421\overline{5686}... $$

Observe: √2 é a notação matemática moderna para a constante de Pitágoras, que é um resultado muito próximo daquele apresentado pelo aprendiz de escriba babilônio em sua plaqueta de argila. Foram demonstrados com estes dois exemplos como calcular o tamanho do lado ou o tamanho da diagonal de um quadrado, e que este tamanho, ou magnitude, resultou em um número irracional, que por sua vez é representado na notação matemática moderna pelo símbolo de raiz (√), e que o número contido no símbolo de raiz é o quadrado do número irracional. De fato:

$$ \left ( 6,4807406984\overline{7066}... \right )^{2}\cong 42 $$
$$ 6,4807406984\overline{7066}... \cong \sqrt{42} $$

E:

$$ \left ( 1,41421\overline{5686}... \right )^{2}\cong 2 $$
$$ 1,41421\overline{5686}... \cong \sqrt{2} $$

Se Herão de Alexandria demonstrou um método aritmético para calcular raízes quadradas de números inteiros que não sejam quadrados perfeitos, outro grego bem antes dele – Teodoro de Cirene – desenvolveu um método geométrico para obter magnitudes comensuráveis ou incomensuráveis (ou seja, números inteiros ou irracionais) a partir de uma magnitude comensurável. Teodoro viveu no século V a.C., tendo sido aluno de Protágoras e professor de Platão e Teeteto. Nenhum texto de Teodoro sobreviveu aos nossos dias e a referência que temos dessa técnica aparece no Diálogos de Platão – Teeteto de Crátila. Neste manuscrito, em que Sócrates debate com Teeteto (aluno de Teodoro) sobre o que seria o conhecimento, o diálogo se desenrola nestes termos: 

[...]
Teeteto - Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu homônimo.
Sócrates - Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto - A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa única, que serviria para designar todas.
Sócrates- E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto - Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates - Podes falar.
Teeteto - Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela multi-plicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os designamos pelos nomes de quadrado e de equilátero.
Sócrates- Muito bem.
Teeteto - Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates - Ótimo! E depois?
Teeteto - Todas as linhas que formam um quadrado de número plano eqüilátero, defini-mos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes, por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas superfícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.
Sócrates - Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser acoimado de falso testemunho.
[...]


O método geométrico é o seguinte: comece desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1, conforme indicado abaixo.


Pelo teorema de Pitágoras, sabemos que:

$$ diagonal^{2}=lado^{2}+lado^{2} $$

Assim:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+1^{2}=2 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{2} $$


Sem novidades, já vimos este resultado algumas vezes. Agora, a partir da diagonal, vamos construir outro triângulo retângulo, com um de seus lados com magnitude igual a 1 e o outro lado (tomando como referência a diagonal) com magnitude igual a √2:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{2} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{2}\times \sqrt{2} \right )=1+\sqrt{2^{2}}=1+2=3 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{3} $$


Repetindo este procedimento, montamos um novo triângulo equilátero, em que um dos lados tenha magnitude igual a 1 e o outro lado magnitude igual a √3:


Aplicando o teorema de Pitágoras para o novo triângulo, vem:

$$ diagonal^{2}=1^{2}+\left ( \sqrt{3} \right )^{2}=1+\left ( \sqrt{3}\times \sqrt{3} \right )=1+\sqrt{3^{2}}=1+3=4 $$

Finalmente:

$$ diagonal=\sqrt{4}=\sqrt{2\times 2}=2 $$


E assim sucessivamente, construindo triângulos retângulos em que um dos lados tem sempre magnitude igual a 1 e o outro lado tem magnitude igual à diagonal do triângulo anterior, vamos montando uma espiral, conforme abaixo:


Esta espiral vai até √17, que é o exemplo que Teodoro apresentou a seu aluno Teeteto e que aparece nos diálogos de Platão. De fato, esta espiral pode prosseguir indefinidamente, como mostra a figura abaixo:


Outra curiosidade é que, quanto mais voltas a espiral dá, mais a distância entre duas voltas consecutivas se aproxima do número π, um número irracional que também surge da razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo!


Esta espiral é mais conhecida pelos nomes: Espiral de Raiz Quadrada ou Espiral de Teodoro.


Aprendemos na escola que uma fração não deve conter um número irracional, como é o caso das raízes quadradas, onde o radicando, ou seja, o número dentro do radical (√) não seja um quadrado perfeito. Nestes casos, aprendemos a racionalizar o denominador para eliminar o número irracional dele. Sendo assim, considere a fração:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}} $$

Como ela possui um número irracional no denominador (a já conhecida constante de Pitágoras), torna-se necessário racionalizar o denominador. Isto é feito multiplicando-se a fração 1/√2 por:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}} $$

A fração √2/√2 é igual a 1; logo, multiplicar qualquer número (neste caso, a fração 1/√2) por 1 não altera o seu resultado. Temos:

$$ \frac{1}{\sqrt{2}}\times \frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2}}=\frac{1\times \sqrt{2}}{\sqrt{2}\times \sqrt{2}}=\frac{\sqrt{2}}{\sqrt{2^{2}}}=\frac{\sqrt{2}}{2} $$

Significa que a fração resultante (√2/2) equivale à fração original (1/√2). Mas afinal, se ambas as frações são equivalentes, porque gastar energia racionalizando o denominador? Ora, já sabemos que os gregos eram geômetras por excelência e que as magnitudes incomensuráveis para eles (ou números irracionais) geravam uma série de complicações matemáticas e filosóficas. Imagine que não seria de bom tom para um geômetra grego ter um segmento de reta de magnitude igual a 1 e querer dividí-lo por √2, um valor que não podia ser corretamente mensurado com régua e compasso! Então, o que eles faziam? Racionalizavam o denominador, ou seja, transformavam o divisor em um número racional que pudesse ser traduzido por um segmento de reta cuja magnitude fosse mensurável. Neste caso, para obterem geometricamente a magnitude da fração resultante (√2/2), eles começavam (por exemplo) desenhando um triângulo retângulo de lados iguais a 1:


Pelo teorema de Pitágoras, já sabemos que a hipotenusa deste triângulo vale √2. Agora, com régua e compasso somos capazes de dividir a hipotenusa do triângulo à metade, que é o mesmo que dividí-la por 2. Mesmo que a magnitude da hipotenusa seja incomensurável (ou seja, possua uma medida irracional), e que ao dividí-la ao meio geramos outros dois segmentos com magnitudes igualmente incomensuráveis, o resultado agora é geometricamente possível. Com um compasso, coloque a ponta seca no ponto A e abrindo-o até C, trace um arco. Siga o mesmo procedimento com a ponta seca em B e abertura até o ponto C, desenhando outro arco:


Por fim, trace uma reta passando pelos cruzamentos entre os dois arcos:


O segmento AB, ou seja, a hipotenusa do triângulo retângulo, com magnitude incomensurável igual a √2, está agora dividida ao meio. Cada metade, portanto, vale √2/2:


A fração √2/2, equivalente a 1/√2, fornece o valor procurado e é possível de se obter com régua e compasso, o que convinha muito aos valorosos geômetras gregos. E é por isso que até hoje seguimos o exemplo deles, racionalizando o denominador, ainda que não nos seja exigida sua prova geométrica.


Assim como a potenciação, a radiciação também possui algumas propriedades básicas: uma delas diz que a raiz não se modifica quando multiplicamos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Observe:

$$ \sqrt[3]{7^{2}}=\sqrt[3\times 2]{7^{2\times 2}}=\sqrt[6]{7^{4}} $$

De modo análogo, a raiz não se modifica quando dividimos o índice do radical e o expoente do radicando por um mesmo valor. Assim:

$$ \sqrt[12]{56^{8}}=\sqrt[12/4]{56^{8/4}}=\sqrt[3]{56^{2}} $$

Outra propriedade afirma que o produto de radicais de mesmo índice é igual à raiz do produto dos radicandos. Veja:

$$ \sqrt{3}\times \sqrt{11}=\sqrt{3\times 11}=\sqrt{33} $$

Analogamente, uma raiz com um índice qualquer, cujo radicando é um quociente, equivale ao quociente das raízes de mesmo índice dos radicandos:

$$ \sqrt[4]{\frac{5}{8}}=\frac{\sqrt[4]{5}}{\sqrt[4]{8}} $$

Outra propriedade afirma que uma raiz elevada a uma potência qualquer equivale à mesma raiz com o radicando elevado a essa potência:

$$ \left ( \sqrt[3]{5} \right )^{4}=\sqrt[3]{5^{4}} $$

Finalmente, uma raiz que seja ao mesmo tempo o radicando de outra raiz equivale a uma raiz cujo índice é o produto dos índices das raízes originais:

$$ \sqrt[3]{\sqrt[5]{13}}=\sqrt[3\times 5]{13}=\sqrt[15]{13} $$

Existe também o caso em que um número multiplicando uma raiz equivale a transformar esse número no radicando, desde que elevado a uma potência igual ao índice dessa raiz:

$$ 2\times \sqrt[3]{5}=\sqrt[3]{5\times 2^{3}} $$

Outro exemplo, agora com frações:

$$ \frac{1}{6}\times \sqrt[4]{7}=\sqrt[4]{7\times \left ( \frac{1}{6} \right )^{4}}=\sqrt[4]{7\times \frac{1}{6^{4}}} $$

Muito bem! Tivemos um panorama geral sobre a origem das raízes quadradas e de como esse conceito matemático evoluiu até chegar ao símbolo de √ dos nossos dias, bem como obter um valor aproximado por meio de frações quando geram um número irracional, ou desenhá-las através da geometria dos antigos gregos utilizando-se de magnitudes comensuráveis e incomensuráveis, finalizando com uma rápida abordagem sobre as propriedades da radiciação. Mais uma vez, evidencia-se que o uso da geometria e da aritmética com frações foram indispensáveis no entendimento desse conceito matemático na antiguidade e podem ainda hoje ser de grande valia como ferramentas de ensino. E o próximo tema a ser abordado é muito interessante, pois gerou diversas controvérsias no mundo acadêmico matemático: os números negativos.