Uma das situações mais frustrantes para os estudantes é deparar-se com um novo conceito matemático sem a devida contextualização, ou ainda, sem a apresentação de situações práticas e reais onde esse conceito possa ser aplicado, dando-lhe um significado e um sentido. Este é precisamente o caso quando estudamos logaritmos na escola: aprendemos as regras para operá-los, trabalhando com as identidades logarítmicas (produto, quociente, potência, raiz), mudanças de base, etc. Mas na boa: para que servem os logaritmos, afinal? A verdade é que logaritmos são aplicados em temas tão diversos quanto probabilidade e estatística, algoritmos computacionais, fractais, música, entre outros; o problema neste caso é que são necessários conhecimentos sobre uma enorme variedade de outros assuntos para entender e contemplar a beleza e o poder dos logaritmos nessas aplicações, uma tarefa inglória para o estudante do ensino fundamental. Existe, porém, uma forma de aplicar logaritmos em situações práticas bem próximas da realidade do aluno através da chamada Lei de Newcomb-Benford. A lei de Newcomb-Benford estabelece empiricamente que em determinadas fontes de dados numéricos o primeiro dígito não apresenta uma distribuição uniforme de ocorrências dos algarismos de 1 a 9, mas antes uma distribuição logarítmica decrescente quanto maior for o algarismo. Este tipo de distribuição ocorre para uma ampla gama de conjuntos de dados: número do endereço residencial, população por cidade, taxas de mortalidade, balanços contábeis, bem como constantes físicas e matemáticas. Simon Newcomb, astrônomo e matemático canadense, foi o primeiro a identificar este princípio estatístico, ou pelo menos a reportá-lo formalmente em seu artigo de 1881, onde afirma:
“Que os dez dígitos não ocorrem com igual frequência está evidente a qualquer um que faça muito uso de tabelas logarítmicas e nota quão rapidamente as primeiras páginas desgastam-se em relação às últimas. O primeiro número significativo é comumente o 1 mais que qualquer outro, e a frequência diminui até 9”.
Simon Newcomb |
Porém, coube a Frank Benford, engenheiro eletricista e físico norte-americano, redescobrir e generalizar este princípio em seu artigo de 1938, dando-lhe a formatação matemática conhecida atualmente.
Frank Benford |
A esta altura você talvez esteja pensando: “Tá, e que formatação matemática é essa?”. Observe abaixo sobre o quê Newcomb estava falando:
$$ P(d)=log_{10}\left ( 1+\frac{1}{d} \right ) $$
Essa fórmula informa qual a probabilidade P de um dígito d ocorrer num conjunto de números, e que essa probabilidade tem um comportamento logarítmico. Na fórmula, d é o primeiro dígito de um número, podendo ser os algarismos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 ou 9. Substituindo um algarismo de cada vez na fórmula, obtemos a probabilidade de ocorrência de cada algarismo em um conjunto numérico, conforme indicado na tabela abaixo:
Por exemplo, a probabilidade do algarismo 1 ocorrer como o primeiro dígito em um conjunto de números é de:
d
|
P(d)
|
1
|
30,1%
|
2
|
17,6%
|
3
|
12,5%
|
4
|
9,7%
|
5
|
7,9%
|
6
|
6,7%
|
7
|
5,8%
|
8
|
5,1%
|
9
|
4,6%
|
$$ P(1)=log_{10}\left ( 1+\frac{1}{1} \right )=log_{10}\left ( 1+1 \right )=log_{10}\left ( 2 \right )\cong 0,301 $$
Ou seja: 30,1%; para o algarismo 2, a probabilidade cai para 17,6%; e assim sucessivamente até o algarismo 9, cuja probabilidade de ocorrência cai para apenas 4,6%. É isto o que Newcomb quis dizer quando afirmou que “o primeiro número significativo é comumente o 1 mais que qualquer outro, e a frequência diminui até 9”. Pois é, havíamos prometido uma demonstração prática, correto? Então é chegada a hora de utilizarmos essa preciosa ferramenta empírica, atuando como verdadeiros detetives. Para quem mora em apartamento, provavelmente já viu chegar à casa a correspondência da administradora contendo o demonstrativo de despesas do seu condomínio. Pois bem, vejamos um pequeno exemplo dessas demonstrações de despesas:
Vamos agora iniciar a seleção do primeiro dígito de cada uma dessas despesas, destacando-os com a cor vermelha:
Despesas
|
01/2016
|
02/2016
|
03/2016
|
Despesas com
pessoal
|
|||
Salários
|
4.088,00
|
5.068,00
|
9.020,65
|
INSS
|
2.609,12
|
5.420,44
|
2.582,46
|
PIS
|
69,02
|
61,46
|
71,48
|
Vale
Transporte
|
199,40
|
98,80
|
98,00
|
FGTS
|
863,15
|
650,98
|
571,50
|
Contribuição
Confederativa
|
106,12
|
110,65
|
110,65
|
Adiantamento
|
2.217,00
|
1.630,00
|
1.851,00
|
Cesta
Básica
|
403,58
|
398,54
|
323,82
|
Despesas
com refeitório
|
63,00
|
48,00
|
97,60
|
Tarifas
Públicas
|
|||
Luz
|
1.773,96
|
2.214,26
|
2.289,06
|
Telecomunicações
|
316,34
|
310,05
|
310,97
|
Conservação
|
|||
Materiais
Elétricos
|
115,45
|
19,80
|
580,65
|
Outros
Materiais e Equipamentos
|
869,46
|
549,46
|
558,61
|
Material
de Limpeza
|
606,00
|
47,71
|
672,71
|
Outros
Serviços Prestados por Terceiros
|
658,00
|
1.922,00
|
1.186,00
|
Material
de Reformas e Reparos
|
809,20
|
1.617,24
|
2.177,09
|
Retirada
de Entulho
|
340,00
|
240,00
|
85,00
|
Manutenção
de Piscina/Sauna
|
402,84
|
292,33
|
549,28
|
Vamos agora iniciar a seleção do primeiro dígito de cada uma dessas despesas, destacando-os com a cor vermelha:
Despesas
|
01/2016
|
02/2016
|
03/2016
|
Despesas com
pessoal
|
|||
Salários
|
4.088,00
|
5.068,00
|
9.020,65
|
INSS
|
2.609,12
|
5.420,44
|
2.582,46
|
PIS
|
69,02
|
61,46
|
71,48
|
Vale
Transporte
|
199,40
|
98,80
|
98,00
|
FGTS
|
863,15
|
650,98
|
571,50
|
Contribuição
Confederativa
|
106,12
|
110,65
|
110,65
|
Adiantamento
|
2.217,00
|
1.630,00
|
1.851,00
|
Cesta
Básica
|
403,58
|
398,54
|
323,82
|
Despesas
com refeitório
|
63,00
|
48,00
|
97,60
|
Tarifas
Públicas
|
|||
Luz
|
1.773,96
|
2.214,26
|
2.289,06
|
Telecomunicações
|
316,34
|
310,05
|
310,97
|
Conservação
|
|||
Materiais
Elétricos
|
115,45
|
19,80
|
580,65
|
Outros
Materiais e Equipamentos
|
869,46
|
549,46
|
558,61
|
Material
de Limpeza
|
606,00
|
47,71
|
672,71
|
Outros
Serviços Prestados por Terceiros
|
658,00
|
1.922,00
|
1.186,00
|
Material
de Reformas e Reparos
|
809,20
|
1.617,24
|
2.177,09
|
Retirada
de Entulho
|
340,00
|
240,00
|
85,00
|
Manutenção
de Piscina/Sauna
|
402,84
|
292,33
|
549,28
|
A seguir, totalizamos a quantidade de ocorrências de cada um dos dígitos destacados em vermelho:
Dígito:
|
1
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
9
|
Ocorrências:
|
12
|
8
|
6
|
5
|
7
|
7
|
1
|
4
|
4
|
Temos um total de 18 itens de despesa ao longo de três meses, totalizando 54 itens. A razão entre o total de ocorrências de cada dígito e o total de itens de despesa nos fornece a porcentagem de ocorrências para cada dígito:
Dígito:
|
1
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
9
|
Razão:
|
12/54
|
8/54
|
6/54
|
5/54
|
7/54
|
7/54
|
1/54
|
4/54
|
4/54
|
Porcentagem:
|
22,2%
|
14,8%
|
11,1%
|
9,26%
|
12,9%
|
12,9%
|
1,8%
|
7,4%
|
7,4%
|
Comparando os valores obtidos com aqueles estabelecidos pela lei de Newcomb-Benford, temos:
Dígito:
|
1
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
9
|
Porcentagem:
|
22,2%
|
14,8%
|
11,1%
|
9,26%
|
12,9%
|
12,9%
|
1,8%
|
7,4%
|
7,4%
|
Lei N-B:
|
30,1%
|
17,6%
|
12,5%
|
9,7%
|
7,9%
|
6,7%
|
5,8%
|
5,1%
|
4,6%
|
Importante: para que a lei de Newcomb-Benford tenha significância, o conjunto numérico deveria ter, pelo menos, 100 itens. Significa dizer que, numa análise mais rigorosa, seria necessário juntarmos vários meses de demonstrativos de despesa a fim de obtermos uma quantidade significativa de itens. Seja como for, o resultado acima mostra uma convergência entre as porcentagens encontradas e aquelas esperadas pela lei para os dígitos 1, 2, 3 e 4. E nota-se uma divergência para os dígitos 5, 6, 7, 8 e 9. Se ao longo dos meses constatar-se que as porcentagens de todos os dígitos convergem para as porcentagens da lei de Newcomb-Benford, significa que o seu condomínio é bem administrado. Senão... é bom os condôminos começarem a acompanhar as despesas mais de perto, pois a participação e o envolvimento de todos é que permite o bom andamento de um condomínio, de uma empresa e até de um país. Observe que você teve de lidar com diversas ferramentas matemáticas bem conhecidas e ensinadas na escola: somas, frações e porcentagens além, é claro, de logaritmos. E com essas ferramentas e o conhecimento da lei de Newcomb-Benford fomos capazes de analisar o comportamento de um balancete contábil, atuando como verdadeiros detetives, e de um modo que poucos conhecem! Não é qualquer conjunto de números que obedece a essa lei empírica; para maiores informações, consulte na internet: lei de Benford, ou para quem domina o inglês: Benford’s law. Para finalizar, aqueles que quiserem se aprofundar um pouco mais neste assunto, podem pesquisar também este link: Lei de Newcomb-Benford como ferramenta de auditoria.
Bibliografia:
Newcomb S., "Note on the frequency of use of the different digits in natural numbers", American Journal of Mathematics, vol. 4 – No. 1, 39-40, 1881.
Benford F., "The law of anomalous numbers". Proceedings of the American Philosophical Society 78 (4), 551–572, March-1938.