Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

Mostrando postagens com marcador teorema de pick. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador teorema de pick. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, outubro 14, 2016

Brincando com o Teorema de Pick

Globo formado por uma malha de pontos

C

Georg Alexander Pick

alcular áreas de figuras geométricas planas faz parte do currículo escolar do ensino fundamental; baseando-se nos conceitos básicos da geometria e da aritmética, o professor demonstra as fórmulas necessárias aos cálculos das áreas de quadrados, retângulos, paralelogramos, triângulos, losangos, trapézios e círculos. O assunto pode não despertar grande curiosidade nos alunos, e de fato encaram-nas com uma dose ingrata de tédio. Para tornar o aprendizado deste tópico da matemática um pouco mais interessante, podemos lançar mão de um teorema descrito em um artigo científico publicado em 1.900 pelo matemático austríaco Georg Alexander Pick, e que leva o seu nome.

Georg Alexander Pick
Pick viria a chefiar o comitê da universidade alemã de Praga, que nomearia Albert Einstein para uma cadeira de física-matemática em 1911. Pick apresentou a Einstein o trabalho dos matemáticos italianos Gregorio Ricci-Curbastro e Tullio Levi-Civita no campo do absoluto cálculo diferencial, que em 1.915 ajudaria Einstein a formular com sucesso sua teoria da relatividade geral. Curiosamente, o artigo sobre o teorema de Pick passaria despercebido por décadas, tendo sido redescoberto somente em 1.969 pelo matemático polonês Wladyslaw Hugo Dionizy Steinhaus, que republicaria os resultados obtidos por Pick numa edição da revista Mathematical Snapshots. Vejamos então como este curioso teorema funciona; forneça aos alunos folhas de papel sulfite A4 já quadriculadas, com um espaçamento de 1 centímetro, conforme indicado abaixo:

Peça aos alunos que desenhem um retângulo com as seguintes medidas: 7 centrímetros de largura por 3 centímetros de altura:

Em seguida, o professor demonstra geometricamente que a área de um retângulo é dada por:

$$ \acute{A}rea\:do\:ret\hat{a}ngulo=base\times altura $$

Para o retângulo desenhado, sua área será de:

$$ \acute{A}rea\:do\:ret\hat{a}ngulo=7\:cm\times 3\:cm=21\:cm^{2} $$

Para mostrar que o teorema de Pick funciona, o professor solicita aos alunos que marquem com pontos pretos as arestas dos quadriculados que coincidam com as bordas do retângulo. A figura abaixo apresenta essa marcação:

Em seguida, os alunos devem marcar com pontos amarelos as arestas dos quadriculados que estejam internos ao retângulo. A figura abaixo apresenta essa nova marcação:

Feitas as novas marcações, contamos o total de pontos pretos (20) e o total de pontos amarelos (12). A fórmula do teorema de Pick para o cálculo de áreas é esta:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

Assim, substituindo os totais de pontos pretos e amarelos na fórmula de Pick, temos:

$$ \acute{A}rea=\frac{20}{2}+12-1=10+12-1=21\:cm^{2} $$

Observe que a área obtida é exatamente a mesma. Interessante, não? Vejamos outro exemplo, calculando agora a área de um triângulo retângulo. Peça aos alunos para desenhá-lo com 4 centímetros de altura e 6 centímetros de base, conforme indicado na ilustração a seguir:

Em seguida, o professor demonstra geometricamente que a área de um triângulo é dada por:

$$ \acute{A}rea\:do\:tri\hat{a}ngulo=\frac{base\times altura}{2} $$

Para o triângulo desenhado, sua área será de:

$$ \acute{A}rea\:do\:tri\hat{a}ngulo=\frac{6\:cm\times 4\:cm}{2}=\frac{24}{2}=12\:cm^{2} $$

Agora, siga o mesmo procedimento utilizado para o retângulo: primeiro marque com pontos pretos as arestas dos quadriculados que se encontrem na borda do triângulo e em seguida marque com pontos amarelos as arestas dos quadriculados que estejam internos ao triângulo. O resultado obtido deverá ser igual ao da figura a seguir:

Contamos o total de pontos pretos (12) e o total de pontos amarelos (7) e substituímos estes valores na fórmula de Pick:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

$$ \acute{A}rea=\frac{12}{2}+7-1=6+7-1=12\:cm^{2} $$

Mais um exemplo: desenhe um trapézio cuja base maior tenha 5 centímetros, a base menor 3 centímetros e a altura seja igual a 3,5 centímetros, conforme segue:

O professor demonstra geometricamente que a área de um trapézio é dada por:

$$ \acute{A}rea\:do\:trap\acute{e}zio=\frac{\left ( B+b \right )\times h}{2} $$

Onde B é a base maior, b é a base menor e h é a altura. Para o trapézio desenhado, sua área será de:

$$ \acute{A}rea\:do\:trap\acute{e}zio=\frac{\left ( 5+3 \right )\times 3,5}{2}=\frac{8\times 3,5}{2}=\frac{28}{2}=14\:cm^{2} $$

Determinando as arestas dos quadriculados que se encontrem na borda do trapézio com pontos pretos e as arestas dos quadriculados que estejam internos ao trapézio com pontos amarelos, vem:

Contamos o total de pontos pretos (6) e o total de pontos amarelos (12) e substituímos estes valores na fórmula de Pick:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

$$ \acute{A}rea=\frac{6}{2}+12-1=3+12-1=14\:cm^{2} $$

Chegando, uma vez mais, ao mesmo resultado. Dependendo da figura geométrica que queiramos calcular a área, o resultado obtido pelo teorema de Pick nem sempre é o esperado. Por exemplo, considere calcular a área de um círculo de raio igual a 3 centímetros, conforme ilustrado abaixo:

A área de um círculo é calculada segundo a fórmula:

$$ \acute{A}rea\:do\:circulo=\pi \times \left (raio  \right )^{2} $$

Então, para o nosso círculo, sua área será de:

$$ \acute{A}rea\:do\:circulo=\pi \times \left (3  \right )^{2}=\pi \times9\cong 28,27\:cm^{2} $$

Vejamos qual a área do círculo quando obtida pelo teorema de Pick; para isso, vamos marcar os pontos que se encontrem nas bordas e na parte interna dele, como de praxe:

Da figura obtemos: 4 pontos de borda e 25 pontos internos. Aplicando à fórmula de Pick, vem:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

$$ \acute{A}rea=\frac{4}{2}+25-1=2+25-1=26\:cm^{2} $$    

Neste caso, o erro entre a área correta do círculo, e aquela obtida pelo teorema de Pick, é de:

$$ Erro=\left ( 1-\frac{\acute{A}rea_{teorema}}{\acute{A}rea_{circulo}} \right )\times 100=\left ( 1-\frac{26}{28,27} \right )\times 100 $$

$$ Erro=\left ( 1-0,9197 \right )\times 100=8,03\% $$

Mas porque obtivemos esse erro? A causa está na resolução do quadriculado. Se ao invés de um quadriculado composto de quadrados de lados iguais a 1 centímetro tivéssemos outro quadriculado cujos quadrados tivessem lados iguais a 0,5 centímetro, o resultado seria:


Da figura obtemos: 4 pontos de borda e 109 pontos internos. Aplicando à fórmula de Pick, vem:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

$$ \acute{A}rea=\frac{4}{2}+109-1=2+109-1=110 $$

A área obtida – 110 – precisa de um ajuste, pois cada quadrado do novo quadriculado possui lados iguais a 0,5 cm. Como no quadriculado original cada quadrado possuía lados iguais a 1 cm, a área do círculo era obtida multiplicando-se 26 por (1)2. Neste caso, para obtermos a área correta devemos multiplicar 110 por (0,5)2, ou seja:

$$ \acute{A}rea=110\times \left ( 0,5 \right )^{2}=110\times 0,25=27,5\:cm^{2} $$

Nestas condições, o novo erro entre a área correta do círculo, e aquela obtida pelo teorema de Pick, é de:

$$ Erro=\left ( 1-\frac{\acute{A}rea_{teorema}}{\acute{A}rea_{circulo}} \right )\times 100=\left ( 1-\frac{27,5}{28,27} \right )\times 100 $$

$$ Erro=\left ( 1-0,9728 \right )\times 100=2,72\% $$

Note que o erro agora caiu quase 3 vezes em relação ao erro anterior. Não é difícil concluir que, quanto maior a resolução (ou seja, quanto mais denso for o quadriculado) mais próxima do valor correto será a área do círculo. No limite, quando a densidade do quadriculado tender ao infinito, a área do círculo calculada pelo teorema de Pick tenderá ao valor exato obtido pela fórmula geométrica tradicional. O problema é que a quantidade de pontos também tenderá ao infinito e, portanto, incontável... Será então que o teorema de Pick não passa de uma curiosidade matemática sem nenhuma aplicação prática? Não é o caso; de fato, este teorema é muito útil para medir áreas geométricas extremamente complexas, como a área territorial de um país, por exemplo: a quantidade de reentrâncias e bordas recortadas de um limite territorial torna o cálculo dessas áreas um verdadeiro tormento com métodos geométricos tradicionais, mas é quase uma brincadeira quando utilizamos o teorema de Pick; de fato, os satélites com essa finalidade valem-se desse teorema para realizar tais cálculos. Vamos calcular a área territorial do Brasil com esta poderosa ferramenta. Para isso, precisaremos de um mapa em escala, como o indicado a seguir, que o professor também poderá fornecer previamente aos alunos:

Esses mapas em escala são facilmente encontrados na Internet, mas para facilitar a vida do professor, fornecemos nas referências bibliográficas um link para baixá-lo, ao final desta postagem. Na escala acima, observe que cada 3 quadrados do quadriculado correspondem, grosseiramente, a 1000 km de território brasileiro. Logo, por uma regra de três simples, cada quadrado do quadriculado corresponderá aproximadamente a 333 km de território. O professor poderá ajustar o mapa ao quadriculado, para que a escala fique o mais próxima possível de 1 cm de comprimento. Aplicando os pontos de borda e internos ao mapa, obtemos o resultado a seguir:


Seguindo o mesmo procedimento adotado para as outras figuras geométricas, obtivemos neste caso: 8 pontos de borda e 72 pontos internos. Aplicando a fórmula de Pick, vem:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

Ou seja:

$$ \acute{A}rea=\frac{8}{2}+72-1=4+72-1=75\:cm^{2} $$

Mas lembre-se! Cada centímetro do quadriculado vale aproximadamente 333 km de território brasileiro, mantida a escala. Então, temos que multiplicar a área obtida em cm2 pela escala de 333 km, obtendo assim a área equivalente em km2:

$$ \acute{A}rea=75\times \left ( 333 \right )^{2}=75\times \left ( 110.889 \right )=8.316.675\:km^{2} $$

A área territorial do Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de: 8.515.767 km2. O erro entre o cálculo de nossa área e a área territorial oficial é de apenas:

$$ Erro=\left ( 1-\frac{\acute{A}rea_{teorema}}{\acute{A}rea_{circulo}} \right )\times 100=\left ( 1-\frac{8.316.675}{8.515.767} \right )\times 100=2,34\% $$

Veja que impressionante! Usando um mapa em escala obtido na Internet de baixa qualidade e aplicando uma regra de três simples para uma conversão aproximada entre a escala do mapa e o tamanho do quadriculado, tudo feito de forma bem artesanal, obtivemos uma área territorial do Brasil com um erro de pouco mais de 2% em relação à área oficial. Imagine se tivéssemos utilizado os equipamentos de alta precisão existentes em um satélite, qual não seria a exatidão dos resultados obtidos! É para este tipo de aplicação que vemos o poder do teorema de Pick. É importante salientar que o teorema não funciona para o cálculo de áreas de figuras geométricas vazadas, por exemplo, como esta:


Note que, com o teorema de Pick, o professor é capaz de abordar e relembrar em sala de aula não somente tópicos da geometria, mas também de aritmética, porcentagem, proporção e regra de três, inclusive tocando em temas mais avançados de forma instigante, como é o caso de limites, tudo de um jeito divertido e com aplicações práticas e úteis. Uma última observação – apesar de não ter ocorrido em nenhum exemplo apresentado neste capítulo, o primeiro termo da fórmula de Pick (Pontos na borda / 2), conforme indicado abaixo:

$$ \acute{A}rea=\frac{Pontos\:na\:borda}{2}+Pontos\:internos-1 $$

Poderá fornecer um valor quebrado, como 3,5 ou 4,5 quando a quantidade de pontos na borda (tocando arestas do quadriculado) for ímpar. Por outro lado, quando o cálculo da área de uma figura geométrica regular tiver números irracionais (como é o caso do π para a área do círculo ou √3 para a área de um triângulo equilátero) sempre obteremos uma área pela fórmula de Pick cujo valor é próximo ao valor obtido com a fórmula geométrica, mas nunca exato. Como já comentado anteriormente, tenderíamos à exatidão somente se o quadriculado fosse infinitesimal, gerando uma quantidade de arestas (dentro e nas bordas da figura geométrica) tendendo a infinito.



Referências bibliográficas:

[1]

Pick, G. A.: “Geometrisches zur Zahlenlehre” (Resultados geométricos na teoria dos números), Sitzungsber des Deutschen Naturwissenschaftlich-Medizinischen Vereins für Böhmen “Lotos”, Prag  (2), 19, pp. 311-319, 1900

[2]

Wikipedia; “Georg Alexander Pick”, acessado em Julho/2016. Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Georg_Alexander_Pick

[3]

Mapa quadriculado em escala do Brasil, para sala de aula. Elaborado pelo autor.

[4]

Folha sulfite A4 quadriculada, para sala de aula. Elaborado pelo autor.



Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 2. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.