Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

sábado, março 07, 2015

A multiplicação

Clérigos estudando astronomia e geometria, no livro “La Vraye Histoire du Bon Roy Alixandre” – início do séc. 15 d.C.

M

ultiplicar não era exatamente o que os antigos egípcios faziam; de fato, eles calculavam aplicando um método denominado duplicação, uma engenhosa forma de somar capaz de realizar a multiplicação entre números inteiros, cujo funcionamento veremos com este exemplo: 37 × 54, mas sem o uso burocrático dos hieróglifos. A duplicação consiste no seguinte procedimento: monte uma tabela com duas colunas; na coluna à esquerda, comece a duplicação sempre a partir do número 1. E na coluna à direita inicie a duplicação do primeiro fator da multiplicação (ou seja, 37), conforme abaixo:
A seguir, na coluna da esquerda, devemos agregar os números tal que sua soma seja igual ao segundo fator da multiplicação (ou seja, 54). A combinação de números que conduz a 54 está destacada em marrom abaixo:
Note que: 2 + 4 + 16 + 32 = 54. Na coluna da direita, selecionamos os números correspondentes àqueles utilizados para formar 54, conforme segue:
A soma de 74 + 148 + 592 + 1.184 = 1.998, que é o resultado de 37 × 54. O método da duplicação egípcio funciona igualmente alterando-se a ordem dos fatores, ou seja: 54 × 37. Assim, na coluna à esquerda, a soma dos fatores deve totalizar 37 e na coluna à direita inicia-se a duplicação a partir de 54, como se observa na tabela abaixo:
Observe: 1 + 4 + 32 = 37. E a soma dos números correspondentes: 54 + 216 + 1.728 = 1.998. A multiplicação egípcia (obviamente, utilizando-se de nosso sistema numérico) é simples e eficiente, ainda que se trate de um processo de duplicação seguido de somas.
Os maias, por sua vez, denominavam de Dzaac-Xox ao seu processo de multiplicação de números inteiros. Usando como exemplo o produto: 215 × 121, os maias colocavam estes fatores vertical e horizontalmente, formando com eles um gradeado de caixas inicialmente vazias, que armazenarão o resultado parcial da multiplicação, seguindo a numeração indicada a seguir:
Na linha horizontal, acima, temos o número 121 e na linha vertical à esquerda o número 215, ambos na grafia numérica maia. Em cada uma das 9 caixas, será armazenado o valor da multiplicação de cada numeral dos dois fatores, ou seja: 2 × 1 na caixa 1, 2 × 2 na caixa 2, 2 × 1 na caixa 3, 1 × 1 na caixa 4, 1 × 2 na caixa 5, 1 × 1 na caixa 6, 5 × 1 na caixa 7, 5 × 2 na caixa 8 e finalmente 5 × 1 na caixa 9. O resultado parcial será:
O próximo passo consiste em somar os resultados parciais das diagonais do gradeado de caixas, seguindo a ordem por cores a seguir:
Destarte, empilhando e somando as caixas segundo sua cor, começando pela inferior direita (em cinza) em direção à superior esquerda (em azul), obtemos:
Resta-nos agora seguir as regras maias para a quantidade de feijões e canudos de palha permitidos em cada caixa: na cinza temos 1 canudo, o que não constitui infração à regra; logo, não será alterada. Na caixa marrom temos 2 canudos, o que não é permitido; neste caso, os 2 canudos são eliminados e na caixa superior (vermelha) é acrescentado 1 feijão. O resultado parcial será:
A caixa vermelha, que tinha 4 feijões, agora fica com 5, o que também não é permitido pelas regras maias; então, os 5 feijões são substituídos por 1 canudo. Entretanto, a caixa vermelha, agora com 2 canudos, infringe outra regra maia e por isso esses 2 canudos devem ser eliminados e a caixa superior (a verde) receberá mais 1 feijão. O resultado até aqui é:
A caixa vermelha ficou vazia, o que não é permitido pelas regras maias; neste caso, colocaremos uma mixbaal, ou concha, para que não fique vazia. O resultado até o momento é este:
Finalmente, a caixa verde contém 6 feijões, outra situação não permitida pelas regras maias. Logo, substituiremos 5 desses feijões por um canudo de palha na mesma caixa. O cálculo final será:

O resultado de 215 × 121 com os algarismos maias e seguindo o procedimento Dzaac-Xox, agora em notação decimal, é: 26.015. Temos de admitir que os maias eram realmente muito bons em matemática. Com os antigos gregos, porém, a multiplicação aritmética enfrenta há mais de 450 anos um erro de tradução que nos engana e confunde até hoje com o mito de que a “multiplicação é a repetição de somas”. Imputa-se ao matemático grego Euclides, em sua obra “Elementos”, a definição da multiplicação como uma repetição de somas, mas de fato ele nunca escreveu isso. O texto original grego onde ocorre o erro de tradução é a proposição 16 do Livro VII, indicada abaixo:

Ἀριθμὸς ἀριθμὸν πολλαπλασιάζειν λέγεται, ὅταν, ὅσαι εἰσὶν ἐν αὐτῷ μονάδες, τοσαυτάκις συντεθῇ ὁπολλαπλασιαζόμενος, καὶ γένηταί τις.

Quem gerou essa confusão tão infeliz e duradoura foi Henry Billingsley, um armarinheiro e linguista amador londrino, o primeiro a traduzir a obra de Euclides para o inglês, em 1.570. A tradução equivocada de Billingsley para a proposição 16 é a seguinte:

“Diz-se que um número multiplica outro número quando o multiplicando é tão frequentemente somado a si mesmo quantas são as unidades do multiplicador: e um outro número [o produto] é produzido.”

O verbo grego συντεθ na frase original significa “colocado”, “posto junto”, mas Billinsgley o traduziu erroneamente para “somado a si mesmo”. Interessante notar que outro matemático, o italiano Nicolau Tartaglia, traduziu o texto grego para o italiano corretamente em 1.543, com os seguintes dizeres:

“Diz-se que um número é multiplicado por outro tal que seja (combinado/tomado) tantas vezes quantas são as unidades do multiplicador.”

Então, o que fez Euclides quando explicou a multiplicação? A resposta é que ele tratou os segmentos de linha como operações unárias. Uma operação unária é aquela efetuada com apenas um operando; são exemplos de operações unárias: o fatorial de um número natural ou o quadrado de um número real, entre outros. Porém, o que Henry Billingsley fez em 1.570 foi mudar a definição unária de Euclides para uma definição binária incorreta. Uma operação binária é aquela efetuada com dois operandos; operações aritméticas de soma, subtração, multiplicação e divisão são exemplos de operações binárias. O resultado disso tudo é que, até os dias atuais, as crianças aprendem a multiplicação por meio de adições repetidas, geralmente com o erro grotesco do “adicionar a si mesmo” incluído na pedagogia... Outro aspecto a ser considerado é que o uso da régua e do compasso na elaboração geométrica para multiplicar comprimentos de linha foi adotado pela primeira vez por René Descartes, filósofo e matemático francês que viveu entre 1.596 e 1.650, cuja demonstração encontra-se em sua obra “O discurso do método”, especificamente no apêndice “A Geometria”. De fato, o primeiro diagrama apresentado nesse apêndice descreve a multiplicação de segmentos de linhas através da semelhança de triângulos:

Imagem do apêndice “A Geometria”, de René Descartes. Tradução do texto à direita: “Por exemplo: seja AB unitário, e que seja necessário multiplicar BC por BD; então, tenho apenas que juntar os pontos A e C, e desenhar DE paralelo a CA; e BE será o produto desta multiplicação.”

Na verdade, o exemplo dado pelo matemático francês é uma repetição da proposição 12 do Livro VI do “Elementos”, cujo enunciado é:

“Dadas três linhas retas, achar a quarta proporcional”

Assim, a multiplicação do exemplo de Descartes, representada pela semelhança de triângulos, é equivalente à proporção:
$$ \frac{BC}{AB}=\frac{BE}{DB} $$
A grande sacada de Descartes foi adotar o segmento AB com magnitude unitária, como uma entre três linhas retas com magnitudes conhecidas para encontrar a quarta proporcional, conforme o enunciado. Deste modo, a proporção reduzir-se-á para:
$$ \frac{BC}{1}=\frac{BE}{DB} $$
Ou seja:
$$ Multiplicador\left ( BC \right )=\frac{Produto\left ( BE \right )}{Multiplicando\left ( BD \right )} $$
$$ Produto\left ( BE \right )=Multiplicador\left ( BC \right )\times Multiplicando\left ( BD \right ) $$
Seja como for, a multiplicação que será demonstrada utiliza o teorema da intersecção das cordas, de Euclides, aplicável tanto a números inteiros quanto números reais, positivos ou negativos. Assim, sejam dois segmentos de reta, um de magnitude igual a 5 e outro de magnitude igual a 2, unidos entre si em suas extremidades pelo ponto comum O; chame de A e B os pontos destes segmentos nas extremidades opostas. Perpendicular a estes segmentos, trace um terceiro segmento de reta, partindo de O, com magnitude unitária[1], e chame o ponto da outra extremidade de C, conforme indicado a seguir:

[1] Para quaisquer dois segmentos de reta cujas magnitudes se queiram multiplicar, o terceiro segmento sempre será perpendicular a estes dois, posicionado no ponto O de união, e terá sempre um tamanho fixo unitário.

Agora, trace duas cordas, uma unindo os pontos A e C, e outra unindo os pontos C e B. Prolongue também o segmento de reta OC, conforme indicado na ilustração a seguir:
Agora, trace retas perpendiculares às cordas: com a ponta seca do compasso em A, abra-o até C e trace dois arcos, um acima e outro abaixo da corda AC; repita o processo, agora com a ponta seca do compasso em C. Siga o mesmo procedimento para a corda CB. Chame o ponto de intersecção das retas perpendiculares de M:
Por fim, com a ponta seca do compasso em M, abra-o até o ponto A e desenhe um círculo. Se tudo tiver sido executado corretamente, a reta laranja resultante, de magnitude igual a 10, será o resultado da multiplicação dos segmentos de retas AO e OB:
Esta construção, apesar de gerar um resultado multiplicativo, nem de longe possui a eficiência de raciocínio algébrico e a simplicidade da multiplicação maia, servindo, no fundo, ao propósito de se perder o medo de manipular a régua e o compasso, e encarando-se o processo todo mais como uma brincadeira, ou um jogo capaz de aprimorar as capacidades cognitivas visuais e espaciais daqueles que o executam. Mais eficiente à abstração do raciocínio, sem dúvida, é a multiplicação logística helênica com o uso do ábaco; novamente, utilizaremos o soroban e o método multifatorial para multiplicar, já que não sabemos como os gregos operavam em seus ábacos. Assim, antes de qualquer coisa, vamos zerar o nosso ábaco:
Faremos a multiplicação de 315 por 47. Primeiro, sempre coloque mais à esquerda do ábaco o fator de menor ordem de grandeza como o multiplicando (neste caso o 47, nas varetas M e L) com seu valor subtraído de 1 (ou seja, 47 – 1 = 46). E mais à direita do ábaco o valor do fator de maior ordem de grandeza como multiplicador; logo: 315, nas varetas C, B e A. Quando ambos os fatores possuem a mesma ordem de grandeza, tanto faz a posição que ocupem no ábaco. O resultado fica:
Agora, iniciamos a multiplicação dos algarismos do multiplicando por cada um dos algarismos do multiplicador, começando do maior para o menor, aplicando-se os produtos parciais no próprio multiplicador, que desaparecerá para dar lugar ao resultado final. Assim, multiplicaremos 4 por 3, cujo produto é 12; aqui, porém, teremos que adotar o seguinte procedimento: este primeiro produto deverá ser posicionado à esquerda do multiplicador tantas varetas quantos sejam os algarismos do multiplicando: assim, para 47 (contendo dois algarismos) o produto 12 será posicionado duas varetas à esquerda da haste C, ou seja, nas varetas E (para o 1) e na D (para o 2). O resultado fica:
Agora multiplique 6 por 3, cujo produto é 18, posicionando este resultado do seguinte modo: o 1 somado ao valor da última vareta utilizada no produto anterior (ou seja, a D) e o 8 somado ao valor da vareta C. Como a haste D está com 2, a soma de 1 com 2 dá 3; e a vareta C, com o valor 3, somada a 8 dá 11. A haste C fica com 1 unidade e o 1 das dezenas será somado com o 3 da haste D, dando 4. O resultado será:
Recomeçaremos a multiplicação, agora de 4 por 1, cujo produto é 04; por conta deste recomeço, o resultado será posicionado nas mesmas varetas do produto anterior (ou seja, nas varetas D e C); este procedimento deve ser adotado sempre que a multiplicação passe para o próximo algarismo do multiplicador. Assim, o 0 será somado ao valor existente na vareta D e o 4 ao valor existente na haste C que, já tendo 1, vai a 5. O ábaco fica:
Multiplicar 6 por 1 dá 06, onde o 0 será somado ao valor da última vareta utilizada no produto anterior (ou seja, na haste C) e o 6 será somado ao valor existente na vareta B que, já tendo 1, vai a 7. Teremos:
Recomeçando a multiplicação, agora de 4 por 5, resultará 20; mais uma vez, em função do reinício da multiplicação dos algarismos do multiplicando com o próximo algarismo do multiplicador, as varetas do último produto serão utilizadas para receber este resultado: o 2 será somado ao valor da haste C que, já tendo 5, vai a 7, e o 0 será somado ao valor da vareta B. Teremos:
Finalmente, multiplicaremos 6 por 5, resultando 30; o 0 será somado ao valor existente na vareta A, que permanece em 5; e o 3 será somado ao valor existente na vareta B que, já tendo 7, vai a 10, de modo que o 1 das dezenas será somado ao valor existente na haste C que, tendo 7, vai a 8, e o zero das unidades será mantido na vareta B, que ficará com 0 mesmo (pois foi a 10). O produto final desta multiplicação, indicado no ábaco pelas varetas de A até E, será:

Que em notação decimal corresponde a 14.805. O multiplicando é sempre subtraído de 1 porque o multiplicador é sempre somado ao produto final (e por esse motivo é que desaparece) no método de multiplicação multifatorial. Como sempre, as operações aritméticas efetuadas em um ábaco soam complicadas e um tanto exóticas quando travamos contato com suas regras e o manuseamos pela primeira vez; mas, ao criar-se o hábito e a prática, transforma-se numa ferramenta de cálculo muito rápida e eficiente.
Janela com gelosias
O método de multiplicação hindu, por outro lado, foi bastante utilizado na idade média, onde recebia o nome de "gelosia" (grade de ripas de madeira cruzadas intervaladamente, ocupando os vãos de uma janela) e que inspirou a criação do método moderno de multiplicação que aprendemos na escola. Para entender o método hindu, vamos multiplicar 435 por 28; a gelosia terá tantas linhas e colunas quantos forem os algarismos contidos no multiplicando e no multiplicador, conforme exemplificado a seguir:
Esta gelosia possui três colunas e duas linhas. Agora, efetuaremos a multiplicação de cada uma das três colunas do multiplicando (453) pela primeira linha do multiplicador (2). Teremos como resultado:
Observe: 08 obtido da multiplicação de 4 × 2 na primeira coluna; 10 obtido de 5 × 2 na segunda e 06 de 3 × 2 na terceira coluna. Seguindo o mesmo raciocínio para multiplicar a segunda linha do multiplicador (ou seja, o 8), teremos:
Note a importância de se saber a tabuada de cor: se nem isso a criança souber, como aprenderá multiplicações longas? Agora, somaremos os valores contidos nas diagonais das caixas, e guardaremos os resultados das somas nas caixas chanfradas, seguindo o esquema de cores abaixo. Obtém-se:
Cada uma das caixas chanfradas, onde as somas foram acumuladas, representa uma ordem de grandeza do produto obtido na multiplicação. Assim, a caixa roxa representa as unidades, a vermelha as dezenas, a verde as centenas, a azul as unidades de milhares e a amarela as dezenas de milhares. E como já vimos anteriormente, uma caixa de uma determinada ordem de grandeza não pode conter dois números, pois no sistema posicional hindu-arábico isso não faz o menor sentido. Então, na caixa azul, o 2 permanece onde está e o 1, que é uma ordem de grandeza superior, vai para a caixa amarela, somando-se ao valor já contido lá. O resultado final será:
O produto: 453 × 28, lendo-se as caixas chanfradas no sentido anti-horário, é 12.684. Na idade média, mais uma vez é Fibonacci quem vem em nosso auxílio, ensinando o método da multiplicação no segundo capítulo de seu “Liber Abaci”. O método por ele utilizado é o mesmo que estudamos na escola, porém o produto da multiplicação era colocado acima dos fatores e não abaixo, sem sinais aritméticos e barra de separação entre os fatores e o resultado, como fazemos atualmente:
Multiplicação, segundo o "Liber Abaci", de Fibonacci
O livro Treviso Arithmetica, de 1.478, demonstra três diferentes formas de multiplicar: a atual, a gelosia e um híbrido dos dois métodos. Observe:
Três diferentes formas de multiplicar, segundo o "Treviso Arithmetica": o atual (acima à esquerda), a gelosia (abaixo) e um híbrido entre os dois métodos (acima à direita).
No Tractado Subtilissimo d’arismetica, escrito por Juan Hortega em 1.563, também se demonstra as três técnicas de multiplicação conhecidas na época:

Três diferentes formas de multiplicar, segundo o “Tractado Subtilissimo d’arismetica”

Luca Pacioli, em seu Summa de arithmetica, de 1.523, já demonstra o seu método de multiplicação muito semelhante ao que nós aprendemos:
A multiplicação, segundo o "Summa de arithmetica"
As gelosias eram muito eficientes para o cálculo de multiplicações longas, largamente aplicadas na astronomia durante Renascença. E foi nessa época o matemático escocês John Napier (1.550 a 1.617), tornou-se famoso graças à criação de engenhosos dispositivos que auxiliavam na computação numérica. Entre esses dispositivos, sem dúvida os mais famosos são os bastões numerados, conhecidos como Ossos de Napier, apresentados em sua obra “Rabdologiæ”, de 1.617.
Os bastões, ou ossos, de Napier
Cada osso (que nada mais é que um bastão retangular) contém no topo um dos dez algarismos hindu-arábicos, acompanhado de sua respectiva tabuada, conforme ilustrado no exemplo abaixo:
Um osso correspondente ao algarismo 7, com a sua correspondente tabuada
Podemos ter tantos ossos de cada algarismo quantos se queiram, pois eles são utilizados para computar multiplicações de uma forma muito original e eficiente. Vejamos então como funciona essa máquina de calcular mecânica com um primeiro exemplo: multiplicar 825 por 913. Para efetuar esta conta, alinhe os ossos com os algarismos 8, 2 e 5 do multiplicador, conforme abaixo:
Alinhando os algarismos do multiplicador com os ossos de Napier
A coluna branca representa os nove algarismos significativos e fica localizada à esquerda da caixa utilizada para o encaixe dos ossos, impressa na própria moldura. Caso não tenhamos uma caixa, a coluna branca pode também ser um osso. Como os números a serem multiplicados contêm vários dígitos, e já alinhamos o multiplicador (825), destacamos o multiplicando (913) nas linhas dessa mesma estrutura, conforme indicado abaixo:

Destacando em vermelho os algarismos do multiplicando

Agora, basta somarmos as diagonais de cada linha, da direita para a esquerda, começando pelo dígito 9, igual ao procedimento adotado nas gelosias:
Observe: o número 5 não possui nenhum outro número com o qual possa ser somado; então, ele entra como o primeiro resultado parcial. Em seguida, somamos o 4 com o 8, resultando 12; como em cada caixa podemos ter um único algarismo, o 1 do 12 é uma ordem de grandeza maior, ele passa para a próxima diagonal, ficando o 2 como o segundo resultado parcial. Na terceira diagonal, temos o 1 (que veio da diagonal anterior) para ser somado com os algarismos 1 e 2, resultando 4 como o terceiro resultado parcial. Finalmente, o algarismo 7 também não tem nenhum outro número com o qual possa ser somado, entrando como o quarto e último resultado parcial, chegando-se a: 7425. Para a linha do dígito 1, o resultado é o próprio valor do algarismo de cada osso; assim, chegamos ao valor 825, conforme indicado abaixo:
Para a linha do dígito 3, o procedimento é o mesmo utilizado no dígito 9. Seguindo o mesmo raciocínio, chegamos ao valor 2475, conforme abaixo:
Agora, estes três resultados devem ser somados entre si de acordo com a seguinte regra: no multiplicador (ou seja, o 913) para o dígito 3 (que representa as unidades) mantém-se o resultado 2475 inalterado; para o dígito 1 (que representa as dezenas), acrescentamos um zero à direita de 825, resultando 8250. E para o dígito 9 (que representa as centenas) acrescentamos dois zeros à direita de 7425, resultando 742500. Finalmente, somamos estes três resultados parciais para chegarmos ao equivalente da multiplicação entre 825 e 913 em nosso método moderno, conforme indicado a seguir:

O resultado da multiplicação entre 825 e 913 é: 753225, como destacado em vermelho. Apesar de Napier receber todo o crédito pela invenção de seus ossos de cálculo, há claros indícios de seu uso anterior; ainda que descrito formalmente pela primeira vez no “Rabdologiæ”, este tipo de artefato já era bem conhecido e disponibilizado por vários artesãos e fabricantes de instrumentos, fato este evidenciado na dedicatória do livro do matemático escocês, onde afirma:

"Eu tive duas razões para tornar meu livro sobre a fabricação e uso dos ossos disponível para o público. A primeira foi que os ossos caíram nas graças de tanta gente que quase se podia dizer que já eram de uso comum, tanto dentro quanto fora de casa. A segunda razão é que foi trazido à minha atenção... o conselho que você gentilmente me deu de publicá-las, para que não fossem publicadas sob o nome de outra pessoa...".

Os ossos de Napier podem ser considerados como uma adaptação inteligente das chamadas mesas de multiplicação. Evidências desse tipo de artefato existem desde o tempo dos babilônios, na forma de placas de argila, utilizando o sistema sexagesimal em escrita cuneiforme. Também são conhecidas como mesas de Pitágoras, havendo uma aparição delas na obra “Arithmetike eisagoge” (“Introdução à Aritmética”), do filósofo e matemático greco-romano Nicômaco de Gerasa, que viveu entre 60 d.C. e 120 d.C. A mais antiga mesa de multiplicação grega existente encontra-se no formato de uma plaqueta de cera, datada do século I d.C., e atualmente em posse do Museu Britânico.
Uma mesa de Pitágoras, feita de ripas semelhantes a palitos de picolé
E a mesa de multiplicação mais antiga de que se tem notícia utilizando o sistema decimal é um conjunto de varetas de bambu, oriundas da China, datadas de cerca de 305 a.C., também conhecidas como bambus deslizantes de Tsinghua.
Mesa de multiplicação chinesa, conhecida como bambus deslizantes de Tsinghua

Entre os árabes, a técnica de cálculo com as mesas de Pitágoras denominava-se método da peneira ou método da rede. Na Itália dos séculos XIV e XV o método era conhecido, como já visto, pelo nome de gelosia ou graticola. Seja como for, os ossos de Napier representam, sem dúvida, uma ferramenta pedagógica bastante interessante para o ensino da multiplicação e, como veremos a seguir, igualmente para o ensino da divisão.

 

Referências bibliográficas:

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Joseph, G. G. “The crest of the peacock: non-european roots of mathematics”, Princeton University Press, 2011. ISBN: 978-0-691-13526-7.

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Juan de Hortega, "Tractado subtilissimo d'arismetica y geometria", 1563

[20]

John Napier, “Rabdologiae”, Andrew Hart (Publisher), Edinburgh, 1.617.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.

segunda-feira, fevereiro 02, 2015

A subtração

“Deus, o arquiteto do universo”, iluminura em pergaminho, elaborada entre 1.220 e 1.230. Para muitos estudiosos medievais, a ciência – e particularmente a geometria e a astronomia – estavam ligados ao divino.

A

escrita cotidiana egípcia era a hierática, como já comentado; entretanto, vejamos (a título ilustrativo) como seria a subtração de 546 por 287 na escrita hieroglífica:
Os pés andando para trás (segundo nosso sentido de escrita e leitura, da esquerda para a direita) indica uma subtração. Neste exemplo, as dezenas e as unidades do minuendo 546, respectivamente 4 e 6, são menores que as dezenas e as unidades do subtraendo 287 (8 e 7). Sempre que ocorrerem situações como esta, o minuendo deve ser ajustado, de modo que sua quantidade de hieróglifos esteja sempre em maior número que a quantidade de hieróglifos do subtraendo. Assim, substituímos 1 rolo de corda por 10 pedaços de corda no minuendo:
De modo análogo, expandimos as unidades, representadas por traços verticais, substituindo um pedaço de corda por 10 traços verticais, conforme a equivalência quantitativa entre esses hieróglifos. O número 546 finalmente passa a conter 4 rolos de corda, 13 pedaços de corda e 16 traços verticais, assumindo a seguinte forma:
Agora que a quantidade de hieróglifos do minuendo (546) são maiores que a correspondente quantidade de hieróglifos do subtraendo (287), a subtração não só é possível, como muito simples. Começando pelos traços verticais, subtraímos 7 traços de 16, restando 9. Obteremos o resultado parcial abaixo:
Em seguida, subtraímos 8 pedaços de corda de 13, restando 5. O resultado até aqui é este:
Por fim, subtraímos 2 rolos de corda de 4, restando 2. O resultado final desta subtração em hieróglifos será:
Cujo valor decimal corresponde a 259, que é o resultado de 546 – 287. Se a soma egípcia não era muito prática, a subtração tampouco tornava o cálculo mais simples. Por outro lado, o método maia de subtrair guarda certa semelhança com o egípcio, mas como faziam uso de poucos símbolos para representar seus números e como seu sistema numérico era posicional, o procedimento de um modo geral é mais simples e visualmente mais fácil de entender. Assim, usando o exemplo anterior, vejamos como se subtrai 287 de 546 no modo maia. Tal como na soma, colocamos as colunas dos números a serem subtraídos lado a lado, posicionando preferencialmente o minuendo à esquerda e o subtraendo à direita. A operação aritmética e o resultado serão executados no minuendo, deixando o subtraendo inalterado.
Na subtração, para as caixas de mesmo nível, um feijão anula outro feijão e um canudo de palha anula outro canudo. E a substituição de um feijão numa caixa de um determinado nível vale dois canudos de palha na caixa do nível imediatamente abaixo. Como as unidades e as dezenas do minuendo são menores que as do subtraendo, o procedimento maia assemelha-se ao egípcio no sentido de que deixaremos cada caixa do minuendo com uma quantidade maior de feijões e canudos que as correspondentes caixas do subtraendo antes de executar a subtração. Seguindo esse raciocínio, na caixa das unidades temos menos feijões no minuendo que no subtraendo. Então, pegaremos um feijão da caixa das dezenas no minuendo e o transformaremos em dois canudos de palha na caixa das unidades; ao mesmo tempo, um destes canudos será convertido em 5 feijões. O resultado parcial será:
Na caixa das dezenas, o minuendo possui igual número de feijões que o subtraendo, mas não tem nenhum canudo. Então, substituímos o canudo das centenas por 5 feijões e passamos um deles para baixo, que será transformado em dois canudos. O novo resultado até aqui será:
Como a caixa das centenas do minuendo tem mais feijões que a do subtraendo, então agora podemos proceder à subtração de fato. Na caixa das unidades, anulamos respectivamente um canudo e dois feijões do minuendo com um canudo e dois feijões do subtraendo, resultando:
Na caixa das dezenas, seguimos o mesmo raciocínio: anulamos um canudo e três feijões do minuendo, em correspondência à mesma quantidade de feijões e canudo na caixa das dezenas do subtraendo; o novo resultado parcial será:
Por fim, na caixa das centenas, anularemos dois feijões do minuendo, em correspondência aos dois feijões do subtraendo. O resultado final será:
O número decorrente da subtração, obtido na coluna à esquerda (onde antes estava o minuendo), como não poderia deixar de ser, é 259. De fato, o método maia de calcular é muito interessante e sem dúvida um dos mais eficientes e eficazes do mundo antigo. Voltando agora nossos olhos para a civilização helênica, vejamos como os gregos procediam à subtração por meio da geometria e, na sequência, através da aritmética. Sendo assim, se gregos fôssemos, subtrairíamos geometricamente do seguinte modo: com uma régua, desenhe um segmento de reta, cujas extremidades tenham seus pontos identificados pelas letras A e D.
Agora, com um compasso, construa um círculo com centro em A e raio de magnitude igual a 4. Chame de B o ponto de intersecção entre o segmento de reta AD e o círculo.
Novamente com o compasso, construa um círculo com centro em B e raio de magnitude igual a 2. Chame de C o ponto de intersecção entre o segmento de reta AB e o novo círculo.
Enfim, com uma régua, conecte os pontos A e C. Este segmento de reta (destacado em laranja) é a diferença, ou a subtração, dos raios dos círculos azul e vermelho. Simples como a soma geométrica.
Vejamos agora como proceder à subtração aritmética grega de 546 por 287 utilizando como referência o soroban. Primeiramente, zeramos o ábaco:
Em seguida, posicionamos o número 546 no soroban, deslocando as contas em direção à trave central; ou seja, uma conta azul (que vale 5) na vareta (C), 4 contas laranjas (valendo 1 cada) na vareta (B) e 1 conta azul e 1 conta laranja na haste (A), formando o número desejado, conforme abaixo:
Isto posto, iniciemos a subtração de 278 em 546. Primeiro, subtraímos 2 na vareta (C), incorrendo no afastamento da conta azul da trave central e respectiva aproximação de 3 contas laranjas (3 = 5 – 2). Teremos:
Agora, subtraímos 8 na vareta (B); porém, há apenas 4 contas laranjas disponíveis nessa haste para subtração. Assim como na soma, existem regras específicas para subtrações neste ábaco e da qual faremos uso, que estão descritas na tabela a seguir:
A primeira regra é descartada de imediato, pois foi justamente isso que tentamos fazer (subtrair 8); então a segunda regra diz: "subtrair 10 e somar 2", onde subtrair 10 significa diminuir de 1 na vareta à esquerda, ou seja, na (C), e somar 2 significa somar na própria vareta (B) que, já tendo 4, passa a 6, o que implica em aproximar 1 conta azul e manter 1 conta laranja junto à trave central. O resultado será:
Enfim, subtrairemos 7 de 6 na haste (A); novamente, como há menos contas disponíveis que aquelas a serem retiradas, recorremos mais uma vez à tabela. A primeira regra será logo descartada, pois subtrair 7 é o que gostaríamos de ter feito desde o início; então, vamos à segunda regra, que diz: "subtrair 10 e somar 3", onde subtrair 10 significa retirar 1 da vareta à esquerda (ou seja, a (B)), e somar 3 é feito na própria haste (A), aproximando mais 3 contas laranjas à trave central. Teremos:
A leitura do ábaco indica o resultado esperado desta subtração: 259. Passando agora para a aritmética hindu, vejamos como esse povo fazia uma subtração, aproveitando o mesmo exemplo usado até aqui: 546 – 287, começando o cálculo da direita para a esquerda (ao contrário do que faziam na soma, onde iniciavam da esquerda para a direita). Havia duas maneiras de calcular. Vejamos a primeira delas:
Neste exemplo, devemos subtrair 7 de 6 nas caixas vermelhas das unidades, mas como 6 é menor que 7, os hindus "pegavam emprestado" no minuendo 1 dezena da caixa azul. Agora é possível subtrair 7 não de 6, mas de 16, restando 9, conforme abaixo:
O próximo passo será diminuir 8 de 3, o que mais uma vez não é possível, exigindo um novo "empréstimo", tomando do minuendo 1 centena na caixa laranja; deste modo, subtraímos 8 não de 3, mas de 13, restando 5, conforme a seguir:
Finalmente, subtraímos 2 de 4, restando 2:
A segunda maneira de subtrair utilizada pelos hindus altera apenas o destinatário dos "empréstimos". Vejamos o mesmo exemplo com esta abordagem: subtrair 7 de 6 exige tomar emprestado 1 dezena, fazendo com que, após o empréstimo, subtraia-se 7 de 16 (como antes) sem, entretanto, alterar o valor das dezenas na caixa azul do minuendo, mas somando uma dezena à caixa azul do subtraendo, conforme mostrado a seguir:
Agora, temos de subtrair 9 de 4, o que mais uma vez não é possível. Então, tomamos emprestado 1 centena, fazendo com que se subtraia 9 de 14 (restando 5), sem alterar o valor das centenas na caixa laranja do minuendo, porém somando 1 centena na caixa laranja do subtraendo, conforme segue:
A conclusão óbvia deste cálculo, subtraindo 3 de 5, restará 2, que é o resultado esperado:
Note que a única coisa que muda nesta abordagem é que, ao invés de subtrair-se o empréstimo uma casa decimal acima, no minuendo, soma-se o empréstimo uma casa decimal acima, no subtraendo. Por fim, na idade média, os matemáticos aprenderam a subtrair com Fibonacci, a partir do quarto capítulo de seu “Liber Abbaci”, cujo método estava assentado na primeira abordagem dos hindus, que é a maneira pela qual aprendemos a subtrair ainda hoje na escola. Agora que já sabemos somar e subtrair segundo o ponto de vista das antigas civilizações, vamos multiplicar nossos conhecimentos! 

 

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Tejón, F. “Manual para uso do ábaco japonês - Soroban”, Editerio Krayono, Ponferrada, Espanha, 2007. Tradução de Raimundo Viana.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.