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O número 104 na grafia cuneiforme babilônica |
O símbolo nfr para o zero egípcio |
Página do Codex Dresden. Consegue identificar os numerais e o zero maias? |
O monge Dionísio Exíguo |
Gravura de um coroado Ptolomeu sendo guiado (ou talvez inspirado) pela musa Astronomia, no livro "Margarita Philosophica", de Gregório Reis, de 1508 |
Seja como for, imputa-se aos hindus a atribuição do zero como um número e não mais como um mero símbolo ou espaço em branco, ao qual davam o nome sânscrito de súnia, que se traduz como “vazio”. Esta palavra deriva provavelmente de shuna, que é o particípio passado de svi, “crescer”. Em um dos primeiros textos Vedas, o “Rigveda”, súnia assume outro significado: falta ou deficiência. Talvez estes sinônimos tenham se fundido para dar a súnia um único sentido, exprimindo ausência ou vazio com potencial de crescimento. Daí porque a palavra suniata, derivada de súnia, descreve a doutrina budista do Vazio, ou seja, a prática espiritual de esvaziar a mente de todas as impressões cognitivas, um método prescrito em uma ampla gama de esforços criativos. Por exemplo, a prática da suniata é recomendada para escrever poesia, compor uma peça musical, produzir uma pintura ou qualquer atividade que saia da mente do artista. Um arquiteto recebeu o conselho nos tradicionais manuais Vedas de arquitetura (os “Shilpa Shastras”) de que projetar um edifício envolvia a organização do espaço vazio, pois “não são as paredes que fazem um edifício, mas os espaços vazios criados pelas paredes”. Observe o processo da criação vividamente descrito no seguinte versículo de um texto budista tântrico:
Primeiro, a realização do vazio (súnia)
Segundo, a semente na qual tudo está concentrado
Terceiro, a manifestação física
Quarto, deve-se implantar a sílaba
Logo se reconheceu que os súnias ocupavam uma posição notacional, assim como o “vazio” ou a ausência de valor numérico poderia ocupar qualquer posição em um número. Consequentemente, todas as grandezas numéricas, por maiores que fossem, poderiam ser representadas com apenas dez símbolos, como se pode observar neste comentário sobre o “Yogasutra”, de Patanjali, em que aparece a seguinte analogia:
“Assim como o mesmo signo é chamado de cem no lugar das 'centenas', dez no lugar das 'dezenas' e um no lugar das 'unidades', a uma mesma pessoa é imputada (diferentemente) o papel de mãe, filha ou irmã.”
Ou neste outro comentário, contido em um texto do trabalho enciclopédico “Manasollasa” (datado do século XII d.C.):
“Basicamente, existem apenas nove dígitos, começando com 'um' e indo até 'nove'. Com os zeros adicionados, eles são aumentados sucessivamente para dezenas, centenas e mais além.”
O símbolo para súnia começou como um ponto (bindu), sendo encontrado em inscrições na Índia, no Camboja e em Sumatra por volta dos séculos VII e VIII d.C. A associação entre o conceito de zero e seu símbolo já estava bem estabelecida nos primeiros séculos da era cristã, como mostra a seguinte citação, extraída do clássico conto romântico sânscrito, o “Vasavadatta” (escrito por volta de 400 d.C.):
“As estrelas brilhavam como zero-pontos (súnia-bindu) – espalhadas no céu como se no tapete azul o Criador contasse o total [usando] um pouco da lua como giz.”
Entretanto, a mais antiga e indubitável ocorrência na Índia do súnia, ou número zero, encontra-se em uma inscrição numa placa dentro de um templo dedicado ao deus Vishnu no Forte Gwalior, e datada de 876 d.C. Nessa placa, na quarta linha há o número 270 e na vigésima linha do texto, e onde são mencionadas 50 guirlandas usa-se um símbolo que é idêntico ao que usamos atualmente para o zero, ao qual os hindus denominavam chidra ou randra, cujo significado é “buraco”. Dada a época em que surgiu essa inscrição no Forte Gwalior, especula-se que houve a transmissão de conhecimentos astronômicos gregos pré-Ptolomaicos para os hindus através das rotas comerciais romanas durante a dinastia Gupta (portanto, entre os séculos 4 e 7 d.C.), porém com a adoção do sistema numérico posicional hindu para os cálculos matemáticos. Foi também nesse período dourado que os astrônomos hindus produziram os seus “Siddhantas”, cujo significado é “soluções”, e que cobriam conceitos matemáticos, astronômicos e movimentos planetários com base na teoria planetária grega. Os textos sânscritos sobre matemática e astronomia geralmente continham uma seção chamada súnia-ganita, ou cálculos envolvendo o zero. Enquanto a discussão nos textos aritméticos (pati-ganita) era limitada apenas à adição, subtração e multiplicação com zeros, o tratamento em textos sobre álgebra (bija-ganita) cobria questões como o efeito do zero sobre os sinais positivos e negativos, a divisão por zero e mais particularmente a relação entre zero e infinito (ananta).A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: o
Forte Gwalior |
A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: templo dedicado ao deus Vishnu, contendo a placa com os
números zeros |
A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da placa contendo o número 270 |
A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da mesma
placa contendo o número 50 |
As formas para o número zero |
Ouroboros, a cobra devorando a própria cauda |
Hoje em dia parece exagero fazer-se tanto barulho por um simples algarismo; porém, é justamente o fato de se conhecer e saber trabalhar corretamente as propriedades do zero que nos permitiu atingir um avanço matemático (e por consequência, tecnológico) sem precedentes. Ainda assim, mesmo funcionando como um símbolo e um conceito destinados a denotar ausência ou o vazio, somente o zero possui certos caprichos que o tornam um algarismo especial e profundamente filosófico.
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