Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

terça-feira, julho 14, 2015

Matemática - Volume 2 - Introdução

Qual Prometeu, o semi-deus da mitologia grega, a quem a lenda afirma ter roubado de Zeus o fogo – simbolismo da busca do conhecimento – para dá-lo aos homens, também a Matemática vem não apenas alimentando este fogo, como aumentando suas labaredas há séculos em benefício da humanidade.
Entretanto, o castigo aplicado por Zeus a Prometeu pelo fogo roubado, propriedade exclusiva dos deuses, foi a de acorrenta-lo no cume do monte Cáucaso, onde todas as manhãs uma águia devorava seu fígado, que se regenerava ao longo do dia, num martírio infindo. Lamentavelmente, a Matemática também sofre castigo imerecido pelo favor prestado: dissociada dos fatos históricos que lhe dão o correto significado, distorcida em obras sucessivamente traduzidas sem as devidas contextualizações dos manuscritos originais, deformada a cada nova diretriz metodológica de ensino, esta nobre ciência viu-se transformada na ctônica Medusa, a quem a maioria dos comuns mortais fica petrificado de terror só de pensar nela... Quem usar da razão e do bom-senso não demora a concluir que há algo de muito errado no processo ensino-aprendizagem, pois são punidos, indistintamente, professores e alunos, igualmente vítimas do longo processo de descaracterização da Matemática. É como solicitar a alguém que comente e explique, após ter viajado quilômetros por uma estrada de olhos vendados, os detalhes do caminho e as belezas das paisagens percorridas. Se tal pedido de explicação beira o sadismo, tentar explicar algo razoável beirará o masoquismo. Mantendo inalterados os propósitos de seguir os fatos históricos que deram origem às descobertas matemáticas propostas no primeiro volume, procurar-se-á desvelar, mais uma vez, a face dessa dama que é a ciência dos números, e oxalá concluir que ela pouca semelhança guarda com a Medusa mitológica. E que, ao fim e ao cabo, compete a nós, professores e alunos de todas as épocas e idades, a grande tarefa de desmistificar e melhorar a qualidade de nosso ensino. Com disciplina, chegaremos lá.

segunda-feira, julho 06, 2015

A divisão

Homem vitruviano, desenho de Leonardo da Vinci feito ao redor de 1.490, inspirado no conceito da obra “Os dez livros da Arquitetura”, escrita no século 1 a.C. pelo arquiteto greco-romano Marco Vitrúvio Polião. O conceito é considerado um cânone (lei divina) das proporções do corpo humano. O homem descrito por Vitrúvio apresenta-se como um modelo cujas proporções são consideradas perfeitas, segundo o clássico conceito grego de beleza.

O

método egípcio de dividir era muito semelhante àquele aplicado para multiplicar: duplicação. Porém, os escribas, ao invés de fazerem a seguinte pergunta: “quantas vezes o 12 divide 329?”, colocavam a questão do seguinte modo: “por quanto devo multiplicar 12 para obter 329?”. Para chegar à resposta montaremos, tal como na multiplicação, uma tabela com duas colunas; na coluna à esquerda, começaremos a duplicação sempre a partir do número 1. E na coluna à direita iniciaremos a duplicação do divisor (aquele que divide, ou seja, 12), conforme abaixo:

A seguir, na coluna da direita, devemos agregar os números tal que sua soma seja igual ou a mais próxima do valor do dividendo (aquele que é dividido, ou seja, 329). A combinação de números na coluna à direita que mais se aproxima de 329 está destacada em marrom abaixo:

Note que: 12 + 24 + 96 + 192 = 324. Neste exemplo, não existe uma combinação de números que, somados, chegue a 329, o que significa que esta divisão não é exata. Agora, na coluna da direita, selecionamos os números correspondentes àqueles utilizados para formar 324, conforme segue:
A soma de 1 + 2 + 8 + 16 = 27, que é o resultado de 329 ÷ 12. Não sendo uma divisão exata, temos que o resto é 5, que é a diferença que falta a 324 para chegar a 329. Vejamos outro exemplo, onde a divisão é exata: 225 ÷ 9. Seguindo o mesmo procedimento adotado no exemplo anterior temos:
Observe: 9 + 72 + 144 = 225 que é o valor do dividendo e 1 + 8 + 16 = 25 que é o resultado da divisão, sem resto. A divisão egípcia, tal como a multiplicação, aplicado o método da duplicação, é didática e simples. Os maias, ao contrário, e tanto quanto se saiba, não conheciam um método para a divisão, o que é surpreendente se pensarmos que sua cultura rivaliza com a egípcia em complexidade e grandeza; porém, a verdade é que não existem registros maias da divisão aritmética. Ainda que tenha sido desenvolvida uma metodologia moderna para dividir números com os algarismos maias, provando que ela é possível, o método não é simples nem didático e por esse motivo não será abordado. A divisão aritmética grega, ou geométrica, tal como no caso da multiplicação, não existia, mas como é interessante do ponto de vista construtivo, será apresentada. Assim sendo, comecemos traçando um segmento de reta com uma régua, identificando os pontos em suas extremidades pelas letras A e F:
Em seguida, com um compasso, com centro em A, trace um círculo com raio de magnitude 1. Chame de B o ponto de intersecção entre o círculo e o segmento de reta AF. O segmento AB vale 1:
Novamente com o compasso, com centro em A, trace um círculo com raio de magnitude 2; chame de C o ponto de intersecção entre este círculo e o segmento de reta BF. O segmento AC vale 2:
Agora, com uma régua, desenhe um segmento de reta AG, formando um ângulo menor que 90°em relação ao segmento AF:
Com o compasso, desenhe um círculo com centro em A e magnitude igual a 4. Chame de D a intersecção entre este círculo e o segmento de reta AG. O segmento AD vale 4:
Com a régua, trace um segmento de reta que passe pelos pontos C e D:
Trace agora um segmento de reta paralelo a CD passando por B e que cruze o segmento AG, chamando esse ponto de cruzamento de E. Enfim, conecte os pontos A e E. O segmento de reta AE (em laranja) tem magnitude 2, que é o quociente entre o segmento AD (magnitude 4) e o segmento AE (magnitude 2):
Mais uma vez, a divisão foi possível nesta construção geométrica porque se utilizou da propriedade da semelhança entre os triângulos ABE e ACD, graças ao paralelismo dos segmentos de reta BE e CD, que formaram estes triângulos. Isto posto, vejamos agora uma simulação da divisão logística grega com o uso do soroban, efetuando a seguinte conta: 5.196 ÷ 24. Primeiramente, vamos zerar nosso ábaco:
O divisor (24) será colocado mais à esquerda do ábaco, nas varetas L e M, e o dividendo (5.196) à direita, nas varetas A e D. O quociente ficará entre o divisor e o dividendo, à medida que avança o cálculo. Assim:
Agora, selecione do dividendo, da esquerda para a direita, a mesma quantidade de algarismos do divisor, se o número assim formado for igual ou maior que o divisor, ou um algarismo a mais, se o número for menor. Segundo esse procedimento, selecionando os dois primeiros algarismos do dividendo, da esquerda para a direita, teremos o número 51. Sendo maior que 24, não é necessário selecionar mais um algarismo. A quantidade de vezes que o divisor pode ser multiplicado para chegar ao mesmo valor de 51 (ou o mais próximo disso) é 2, pois 24 × 2 = 48, que é o mais perto que se pode chegar de 51. Feito isso, anotamos o valor 2 na haste I e vamos subtrair 48 de 51 seguindo as regras de subtração do soroban, que reproduzimos abaixo:
Para subtrair 4 de 5 na vareta D, a primeira regra do 4 satisfaz: "subtrair 5 e somar 1": restará uma conta laranja nesta haste. E subtrair 8 de 1 na vareta C é satisfeita só com a segunda regra do 8: "subtrair 10 e somar 2", onde subtrair 10 corresponde a subtrair 1 da haste à esquerda (a D) e somar 2 se executa na própria vareta C. O resultado até aqui é:
O procedimento agora se repete: selecionaremos no dividendo a mesma quantidade de algarismos do divisor, da esquerda para a direita, se o seu valor for igual ou maior que o do divisor. Seguindo essa regra, os dois primeiros algarismos do atual dividendo é 39 (o 3 é o resto da subtração: 51 – 48). Como 39 é maior que 24, a segunda regra pede que se multiplique o divisor tantas vezes quantas forem necessárias para igualar-se ou chegar o mais perto possível de 39. Observa-se facilmente que o resultado será: 24 × 1. A terceira regra manda anotar o 1 na vareta H, à direita do 2, que foi anotado na vareta I e, em seguida, subtrair 24 de 39, segundo as normas da subtração; assim, subtrair 3 de 2 na vareta C não oferece problema, pois restará uma conta laranja nessa vareta. Tampouco subtrair 4 de 9 na vareta B é um obstáculo, pois restará uma conta azul na haste. O resultado até aqui fica:
Repete-se o procedimento: selecionamos os dois primeiros algarismos do dividendo, da esquerda para a direita, se o seu valor for igual ou maior que o divisor. Obtemos o número 15, que é menor que 24. Então, selecionamos mais um algarismo, chegando a 156, que é maior que 24. A segunda regra pede que multipliquemos o divisor tantas vezes quantas forem necessárias para igualar-se ou chegar o mais perto possível de 156. O resultado será: 24 × 6 = 144. A terceira regra diz para anotarmos o 6 (à direita da haste H, onde foi anotado o 1, ou seja, na vareta G) e subtrairmos 144 de 151. Na vareta C, subtrair 1 de 1 não é problema, restando zero; na vareta B subtrair 4 de 5 exige usarmos a primeira regra do 4: "subtrair 5 e somar 1", restando uma conta nesta haste; e por fim na haste A, subtraímos 4 de 6, que exige novamente o uso da primeira regra de subtração do 4: "subtrair 5 e somar 1", restando 2 contas laranjas na vareta A. O resultado fica:
As três regras que caracterizam a divisão no soroban deveriam continuar, mas como sobrou 12 nas varetas B e A, que é menor que 24, então este é o resto da divisão, que não é exata. Caso a divisão tivesse sido exata, as hastes B e A também teriam ficado zeradas. O quociente desta divisão, anotado entre as varetas I e G, é 216. De fato, 24 × 216 = 5.184 que, somado a 12 (o resto), resulta 5.196, que é o dividendo. Entre os hindus, a divisão não era tratada como uma operação aritmética fundamental na literatura védica, ainda que já fosse mencionada em mantras, tais como os existentes no Taittiriya Samhita, escrito entre os séculos 4 e 6 d.C., cujo mantra exemplificado abaixo indica a divisão de 1.000 vacas em 3 partes:
“Vós gêmeos conquistastes, não fostes conquistados;
Nenhum de vós fostes derrotados;
Indra e Vishnu, quando discutistes;
Mil por três dividistes.”
Esta divisão fornece 333 vacas a cada terça parte mais uma vaca, que sobra (ou resta) da divisão. Posteriormente, por volta de 1.139 d.C., o matemático hindu Bhaskara II escreveu um tratado que se tornaria famoso: Lilavati. Neste manuscrito, encontra-se um poema em que apresenta o processo da divisão de 1.620 por 12, aqui parcialmente traduzido em prosa:
“...esse número, pelo qual o divisor a ser multiplicado iguala-se ao último dígito do dividendo (e assim por diante) é o quociente da divisão, ou se possível, o primeiro a resumir tanto o divisor quanto o dividendo a um número comum, ao proceder-se à divisão.”
O processo descrito nesse poema foi aprendido pelos árabes, chegando posteriormente à Europa medieval por meio de Fibonacci em seu Liber Abacci, tendo sido conhecido pelo nome per repiego, que consistia em dividir o dividendo (1.620) pelos fatores do divisor (12), que seriam, por exemplo, o 3 e o 4 (mas que poderiam ser o 2 e o 6). Assim, primeiro dividia-se 1.620 por 3, dando 540 e este resultado seria dividido por 4, dando 135, uma divisão exata. Ou então se dividia 1.620 por 2, dando 810 e este resultado era dividido por 6, dando 135. Até o século 16 d.C., na Europa só se aprendia divisão nas universidades; entretanto, o método de divisão que se difundiu por esse continente a partir do século 16 d.C., e que foi primeiramente apresentado na já comentada obra de al-Khwarizmi (o "Livro da adição e da subtração pelo cálculo hindu", traduzida para o latim), era conhecido como método do galeão ou da galé, pois o posicionamento dos números resultantes do processo da divisão "assemelhava-se" a esse tipo de embarcação.
O galeão
Credita-se a difusão da divisão pelo método do galeão na Europa ao lançamento de duas obras: o Treviso Arithmetica em 1.478, este um livro mais voltado à prática comercial, para comerciantes, e o Rechenung nach der lenge, auff der Linihen und Feder em 1.550, do matemático alemão Adam Riesen, esta uma obra voltada ao ensino das operações aritméticas para qualquer pessoa e não apenas para eruditos, o que, para aquela época, era um fato surpreendente.
A divisão pelo método do galeão, segundo o Treviso Arithmetica
A divisão pelo método do galeão, segundo Adam Riesen

Divisão pelo método do galeão, Opus Arithmetic D. Honorati veneti monachj coenobij S. Lauretij, obra monástica não publicada, segunda metade do século 16 d.C. Note o desenho mostrando o que seria a proa da embarcação.

Vejamos como funciona a divisão pelo método do galeão com este exemplo: 73.485 ÷ 214. Primeiro, escreva o dividendo (73.485) seguido de um parêntese aberto; em seguida, posicione o divisor (214) abaixo do dividendo; como o primeiro algarismo do divisor é menor que o primeiro algarismo do dividendo, eles ficam assim:

Se o primeiro algarismo do dividendo fosse menor que o primeiro algarismo do divisor, os algarismos do divisor seriam deslocados uma casa decimal à direita. Agora, faz-se a seguinte pergunta: "por quanto 2 deve ser multiplicado para igualar-se ou ficar o mais próximo possível de 7?" A resposta é 3; coloca-se o 3 à direita do parêntese aberto. Temos:

Agora, multiplica-se: 2 × 3 = 6 e 7 – 6 = 1. Coloca-se este 1 acima do 7 e risca-se o 2 e o 7, que já foram utilizados. Obtemos:
Em seguida, multiplica-se o próximo algarismo do divisor por 3, ou seja: 1 × 3 = 3 e 3 – 3 = 0. Posiciona-se o 0 acima do 3 e risca-se o 3 e o 1, que já foram usados. O resultado até aqui é este:
Agora, multiplica-se o último algarismo do divisor por 3, ou seja: 4 × 3 = 12, mas como 4 é menor que 12, temos que pegar 1 emprestado da casa à esquerda. Entretanto, na casa à esquerda da coluna onde estamos fazendo esta conta, o número válido, ou seja, não riscado, é o 0; logo, pegaremos 1 emprestado mais uma casa à esquerda, ou seja, pegaremos o 1 acima do 7 riscado, restando 0. Onde estava o 0, ficamos com 10, que agora empresta 1 ao 4, restando 9 onde tínhamos 10 e ficando 14 onde tínhamos 4, que subtraído de 12, restam 2. Posiciona-se este 2 acima do 4 e riscamos os 4s bem como o 1 e o 0, que não serão mais usados. Obtemos o novo dividendo após esta primeira etapa (9.285), em azul:
Agora, precisamos repetir o divisor, que está com todos os seus algarismos riscados, para que possam ser reaproveitados. Para isso, colocamos o 2 abaixo do 1 riscado, o 1 abaixo do 4 riscado e o 4 ao lado do 4 riscado; grosso modo, deslocando o divisor uma coluna à direita, com os algarismos destacados em vermelho:
E repetimos todo este processo, começando pela pergunta: "por quanto 2 deve ser multiplicado para igualar-se ou ficar o mais próximo possível de 9?" A resposta é 4; coloca-se o 4 à direita do 3 no parêntese aberto. Temos:
Agora, multiplica-se: 2 × 4 = 8 e 9 – 8 = 1. Coloca-se este 1 acima do 9 e risca-se o 2 e o 9, que já foram utilizados. Obtemos:
Em seguida, multiplica-se o próximo algarismo do divisor por 4, ou seja: 1 × 4 = 4, mas como 2 é menor que 4, pega-se emprestado o 1 da coluna à esquerda do 2, perfazendo 12; 12 – 4 = 8, que será colocado acima do 2. Risca-se o 1 do divisor e o 1 emprestado, bem como o 2 do dividendo, ficando:
Agora, multiplica-se o último algarismo do divisor por 4, ou seja: 4 × 4 = 16, mas como 8 é menor que 16, temos que pegar 1 emprestado da casa à esquerda, ou seja, do 8 (ao lado do 9 riscado), restando 7. Temos:
Com o 1 emprestado ao 8 perfaz-se 18, e 18 – 16 = 2, que será posicionado acima do 8. Risca-se o 4 e o 8, ficando o novo dividendo, em azul:
Por último, reescrevemos o divisor para continuar com a divisão, já que todos os seus algarismos foram novamente riscados; para isso, colocamos o 2 abaixo do 1 riscado, o 1 abaixo do 4 riscado e o 4 abaixo do 5 azul, todos destacados em vermelho. Temos:
E repetimos, mais uma vez, todo o processo anterior, começando pela pergunta: "por quanto 2 deve ser multiplicado para igualar-se ou ficar o mais próximo possível de 7?" A resposta é 3; coloca-se o 3 à direita do 4 no parêntese aberto. Temos:
Em seguida, fazemos 2 × 3 = 6 e 7 – 6 = 1, que é colocado acima do 7. Risca-se o 2 e o 7, que já foram utilizados, ficando:
Em seguida, multiplica-se o próximo algarismo do divisor por 3, ou seja: 1 × 3 = 3, mas como 2 é menor que 3, pega-se emprestado o 1 da coluna à esquerda do 2, perfazendo 12; 12 – 3 = 9, que será colocado acima do 2. Risca-se o 1 do divisor e o 1 emprestado, bem como o 2 do dividendo, ficando:
Agora, multiplica-se o último algarismo do divisor por 3, ou seja: 4 × 3 = 12, mas como 5 é menor que 12, temos que pegar 1 emprestado da casa à esquerda, ou seja do 9, restando 8. Teremos:
Com o 1 emprestado ao 5 perfaz-se 15, e 15 – 12 = 3, que será posicionado acima do 5. Risca-se o 4 e o 5, que já foram utilizados, restando o novo dividendo, em azul:
Como este novo dividendo em azul (83) é menor que o divisor (214), encerramos a divisão. O quociente de 73.485 ÷ 214 é 343, com resto 83. Credita-se à obra Tratatto di Aritmetica, de 1.491, do contabilista italiano Filippo Calandri, a primazia pela apresentação, em um livro, de um método de dividir semelhante àquele ensinado atualmente nas escolas:
Página do Tratatto di Aritmetica, de Filippo Calandri, mostrando um método de dividir semelhante ao atual, na metade superior da página, onde se demonstra: 5.349 ÷ 83.

Observa-se que tanto o método demonstrado por Calandri quanto o método do galeão coexistiram na Europa medieval; crê-se que ambos tenham sido criados pelos hindus, que posteriormente os ensinaram aos árabes, antes de chegarem ao velho continente. A divisão longa com a utilização dos ossos de Napier também é um processo bastante interessante e bem mais simples que o método do galeão. Como exemplo, considere a divisão de 46.785.399 por 96.431. Para efetuar esta conta, alinhe os ossos com os algarismos do divisor, conforme a seguir:
Em seguida, à direita de cada linha, some os algarismos contidos em suas diagonais, à exceção da primeira linha, pois os números já estão definidos, ou seja:
Para a segunda linha, teremos:
Seguindo este mesmo procedimento para as demais linhas, temos:
Observe que todos os números obtidos em cada linha possuem 6 dígitos, à exceção da primeira, que contém 5 dígitos. Isto é importante, pois esta quantidade de dígitos será utilizada em nossa conta. Agora, coloque o divisor e o dividendo no formato de divisão que já conhecemos bem, conforme indicado na próxima imagem. Em seguida, escolhemos, dos números obtidos das somas das diagonais, aquele que mais se aproxima (sem ultrapassar) os seis dígitos do dividendo contados da esquerda para a direita, compondo o valor 467853. O número que mais se aproxima sem ultrapassar 467853 é 385724, pois o número seguinte (482155) já é maior. Então, posicionamos 385724 abaixo de 467853, e efetuamos uma subtração; e colocamos como primeiro dígito do quociente a linha em que se encontra o número 385724, conforme segue:
Ao resultado obtido desta subtração (82129), acrescemos à sua direita um dos últimos dois dígitos do dividendo, formando um novo número com 6 dígitos (821299) e, novamente, procuramos nos números obtidos das somas das diagonais dos ossos de Napier aquele que mais se aproxima de 821299 sem ultrapassá-lo, que é 771448, efetuando uma nova subtração, e colocamos como segundo dígito do quociente a linha em que se encontra o número 771448, conforme segue:
Repita o processo: acrescente à direita do resultado desta subtração (49851) o último dígito do dividendo, formando um novo número com 6 dígitos e procure, na listagem de números obtidos das somas das diagonais, o que mais se aproxima sem ultrapassar 498519, que é 482155 e proceda novamente a outra subtração, e colocamos como terceiro dígito do quociente a linha em que se encontra o número 482155, conforme segue:
Observe: agora o resto (16364) é menor que o dividendo (96431), de modo que se não quisermos continuar com esta divisão, ela poderá ser representada pela fração mista:
$$ 485\frac{16364}{96431} $$
Do contrário, caso queiramos continuar com essa divisão indefinidamente, basta acrescentarmos um zero como dígito menos significativo do resto a cada nova operação, e o quociente passa a ser representado pela parte inteira seguido da parte fracionária (destacada em vermelho) e separados por uma vírgula, conforme indicado:
Encerramos enfim, com esse último exemplo, o capítulo da divisão, e de modo geral o estudo das quatro operações aritméticas básicas. Avaliando todos os métodos aritméticos abordados (muitos deles engenhosos, outros nem tanto) e os diferentes sistemas numéricos já criados é que percebemos que o uso dos algarismos hindu-arábicos e a maneira como somamos, subtraímos, multiplicamos e dividimos ainda são os mais eficientes entre tantos elaborados pela mente humana ao longo dos tempos.

Por isso, ao nos lembrarmos de nossas antigas professoras, façamos um agradecimento sincero pelos seus diligentes esforços em nos ensinarem os números, e com eles a fazer contas, pois o ensino da matemática já foi muito mais complicado e excludente em outras épocas... 

Referências bibliográficas:

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John Napier, “Rabdologiae”, Andrew Hart (Publisher), Edinburgh, 1.617.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.