Ciência de Garagem

Um blog sobre ciência em geral e matemática em particular

segunda-feira, janeiro 12, 2015

A evolução dos símbolos matemáticos aritméticos



S

e os algarismos passaram por uma verdadeira epopéia até alcançarem a formatação universalmente conhecida em nossos dias, com os símbolos aritméticos a jornada não foi menos atribulada. Para tornar a coisa toda um pouco mais simples, iniciemos com a evolução dos dois símbolos mais utilizados nas operações aritméticas básicas: a soma e a subtração. Dos babilônios, sabe-se que possuíam um ideograma cujo significado era "menos"; e só. Dos egípcios, chegou aos nossos dias um papiro, denominado papiro de Ahmes ou de Rhind, uma tira estreita de mais de 5 metros de comprimento por 8 centímetros de largura contendo 85 problemas matemáticos em grafia hierática e datado de cerca de 1.650 a.C. Neste manuscrito, o problema de número 28, transcrito para o hieroglífico, apresenta um par de pernas andando para frente:
para representar uma soma, e um par de pernas andando para trás:
para representar uma subtração (dependendo do sentido de leitura que se adotava). Já em outro papiro um pouco mais antigo (escrito por volta de 1.850 a.C., também em hierático), este conhecido como papiro de Moscou ou de Golonishev, o significado do par de pernas andando para frente era completamente diferente: elevar um número ao quadrado...
O problema 28 em escrita hierática do papiro Ahmes...

...e o mesmo problema traduzido para o hieroglífico, com os pares de pernas andando para frente e para trás para indicar, respectivamente, soma ou subtração.

A tradução para o português do problema 28, cujo objetivo é descobrir um determinado número, é a seguinte:
“Quando, de um número, 2/3 são somados e 1/3 (desta soma) é subtraído, restam 10. Tome 1/10 desses 10: o resultado é 1, o resto é 9; 2/3 deste, ou seja, 6, adicionados a ele e o total é 15. 1/3 dele é 5. Quando 5 é subtraído, o resto é 10. Qual é esse número?”
Os maias não tinham símbolos para a adição e subtração, mas possuíam um método engenhoso e criativo para fazer essas operações aritméticas, simplesmente justapondo as colunas dos números a serem somados ou subtraídos e procedendo a determinadas regras para obter o resultado. Já para o matemático grego Diofanto de Alexandria, em sua Aritmética (um tratado com 130 problemas algébricos e suas soluções numéricas) a soma era uma simples justaposição entre os números a serem somados ou, esporadicamente, fez uso de uma barra inclinada (/) entre eles; a subtração, por sua vez, era representada por uma curva:
semelhante à nossa vírgula. Os hindus não possuíam um símbolo para a adição, exceção feita ao manuscrito de Bakhshali, um texto matemático feito de casca de bétula contendo 70 folhas e descoberto em 1881 no vilarejo de mesmo nome, no qual o sinal de adição é representado pela palavra hindu yu. Para indicar quantidades negativas os hindus utilizavam um ponto (.); porém, no manuscrito de Bakhshali, o sinal de subtração é representado, curiosamente, por um sinal idêntico ao da adição (+). Entre os árabes, destaca-se al-Qalasadi (nascido em Bastah em 1.412, na Andaluzia, atual Espanha) com o seu tratado de aritmética e álgebra, ao utilizar-se de caracteres do alfabeto árabe para fazer as vezes dos sinais matemáticos; neste caso, a adição era representada pelo caractere árabe wa (ﻭ), que significa "e", aplicado como preposição.
Assim, 22 "e" 15 seria descrita como uma soma. Na Europa medieval, os símbolos aritméticos da adição e da subtração assumiram variadas formas. Assim, o sinal de soma deriva, supõe-se, de uma simplificação da palavra latina et (que originou o nosso bom e velho "e" em português). A cruz latina também foi utilizada como símbolo de adição, assumindo diversas formas:
Estes sinais eram mais frequentes em obras publicadas por matemáticos alemães e ingleses, ainda que não fosse uma regra geral. Já entre os matemáticos italianos, franceses, espanhóis e portugueses era mais comum o uso deste símbolo:

simplificação da palavra latina plus (mais). Uma variação desse símbolo: 

também existiu. O sinal de subtração, por sua vez, sofreu menos variações, assumindo desde muito cedo sua forma atual (–), mas também esta: ÷, que hoje usamos para representar a divisão. Curioso é que o símbolo ÷ foi utilizado por muitos matemáticos para representar subtrações por mais de 400 anos e sem uma razão aparente para essa escolha! A forma:
simplificação do latim minus (menos) também foi amplamente utilizada, além de uma ocorrência de sua variante:
Excerto do "Libro de algebra en arithmetica y geometria" de 1567, do português Pedro Nunes, uma obra matemática de grande sucesso na Europa em sua época, com os sinais de soma e subtração

Os alemães são considerados os primeiros a fazerem uso do símbolo atual da subtração, graças à sua aparição em um manuscrito anônimo de 1.481 (atualmente na biblioteca de Dresden) sobre álgebra.
O sinal de menos (denominado minnes) no manuscrito de álgebra de 1.481, arquivado na biblioteca de Dresden

Credita-se a outro alemão, o matemático Johannes Widman, a primazia pelo uso do moderno sinal de adição, em seu livro Aritmética Mercantil, editado em 1.498.
Excerto do livro "Aritmética Mercantil" (Rechenung auff allen Kauffmanschafft) de 1.498, de Johannes Widman, onde se vê o uso do atual sinal de adição, bem como o de subtração, este já um velho conhecido dos matemáticos alemães naquela época

Interessante observar que os símbolos:
surgiram praticamente ao mesmo tempo na Europa durante o século 15 d.C. e competiram entre si pela supremacia de seu uso por mais de um século, até que finalmente o + e o – prevaleceram sobre os demais símbolos e passaram a ser adotados em definitivo. A história evolutiva dos sinais de multiplicação e divisão foi outra saga. Os babilônios possuíam um ideograma para a multiplicação, cujo significado era "vezes", e outro ideograma para a divisão; e só. Os egípcios não tinham símbolos para essas operações aritméticas; a multiplicação egípcia usava a "duplicação", um tipo de adição com números inteiros. A divisão utilizava um método semelhante, chamado "duplicação e corte pela metade", usado para dividir números inteiros, com ou sem resto. Os maias, tal como os egípcios, não tinham símbolos para representar uma multiplicação ou uma divisão; as colunas de números eram sempre justapostas, aplicando-se em seguida métodos específicos para cada uma dessas operações, de modo que era mais o resultado, ou antes, a questão proposta, que indicava qual o cálculo efetuado. Entre os gregos, é novamente a obra de Diofanto, Aritmética, que nos serve de referência; porém, ele também não utilizava um símbolo para multiplicações. A divisão, entretanto, era representada pela palavra μορίου (cujo sentido pode ser "mutilar") aplicada entre os fatores. Entre os hindus era comum representar a divisão colocando-se o divisor (ou seja, aquele que divide) embaixo do dividendo (aquele que é dividido). No manuscrito de Bakhshali, porém, a divisão é indicada pela abreviação bha, de bhâga, cujo significado é "parte" e a multiplicação é indicada, em geral, colocando-se os números um ao lado do outro. Já nos manuscritos do matemático e astrônomo hindu Bhaskara (que viveu na Índia entre 1.114 e 1.185 d.C.) a mesma abreviação bha aparece, mas neste caso é uma contração de bhavita (cujo significado é "produto") para indicar multiplicação, e não divisão; outras vezes, Bhaskara representa a multiplicação por um ponto entre os fatores sem maiores explicações. Por sua vez, al-Qalasadi utilizava o caractere árabe, fi (ف), significando "vez", para representar uma multiplicação entre dois números e ala (ة), significando "sobre", para indicar uma divisão.
 
Dois séculos antes, em 12 d.C., o matemático árabe de origem marroquina Abu Bakr al-Hassar, é considerado o primeiro autor a fazer uso do traço horizontal para escrever o denominador abaixo do numerador, indicando uma divisão. As obras matemáticas da Europa medieval foram prolíficas no uso de símbolos para denotar multiplicação e divisão. O matemático e monge agostiniano Michael Stifel, em seu Deutsch Arithmetica, de 1.545, usava a letra maiúscula M para indicar multiplicação e a letra maiúscula D para a divisão. Esta nomenclatura voltaria a ser utilizada no L’Arithmetique, de 1.585, pelo engenheiro, físico e matemático flamengo Simon Stevin.
A nomenclatura utilizada por Simon Stevin em seu "L’Arithmetique" para indicar multiplicação (M) e divisão (D)

Pedro Nunes, em seu Libro de Algebra, não utiliza um símbolo para a multiplicação, ainda que um ponto seja colocado entre cada número ou operação aritmética como uma marcação para diferenciar a equação matemática do texto explicativo. Já o símbolo de divisão utilizado em sua obra é um traço horizontal, o mesmo para representar frações.
Excerto do "Libro de Algebra", de Pedro Nunes, onde se observam os pontos e o símbolo de divisão representado por uma barra horizontal nas expressões matemáticas, na penúltima e última linha do texto.

O símbolo de multiplicação, representado pela cruz de Santo André (×), tal como é empregado atualmente, surge pela primeira vez (ao que tudo indica) no Clavis Mathematicae, obra editada em latim pelo matemático inglês William Oughtred em 1.667.
Excerto do "Clavis Mathematicae", de William Oughtred, onde se pode observar a cruz de Santo André utilizada como símbolo de multiplicação.

E o símbolo de divisão, representado por um traço com dois pontos (÷), cujo nome em latim é obelu, aparece pela primeira vez na obra Teutsche Algebra, de 1.659, de autoria do matemático suíço Johann Heinrich Rahn. Neste mesmo trabalho, entretanto, o asterisco (*) é utilizado como sinal de multiplicação; interessante notar que hoje, em muitas linguagens computacionais, o asterisco representa o sinal de multiplicação.
Excertos da obra “Teutsche Algebra”, de Johann Rahn, onde se observa: acima à direita, o símbolo de divisão (assim chamado obelu), e abaixo à direita, o asterisco para representar uma multiplicação.

O último símbolo de que trataremos neste capítulo é o de igualdade. Não há indicações de que os babilônios possuíssem um ideograma para esse sinal; e só. Os egípcios possuíam um sinal hierático que significava "dá", para indicar o resultado de um cálculo, como fazemos hoje em dia com "2 vezes 5 dá: 10". Esse sinal é encontrado no papiro de Ahmes.
Uma equação algébrica e sua solução no papiro de Ahmes. Na primeira linha, destacado em vermelho, o sinal hierático cujo significado é "dá", sendo equivalente ao nosso símbolo de igualdade.

Os maias não possuíam um símbolo para o sinal de igualdade. Já nos manuscritos do grego Diofanto de Alexandria, o sinal de igualdade é representado por: ισ. O manuscrito hindu de Bhakshali utiliza a contração pha (de phala, cujo sentido é: "igual à") para representar o resultado de uma operação matemática. E o árabe al-Qalasadi faz uso do caractere yadilu (ﻝ) com esse mesmo propósito. A Europa medieval é quem novamente oferece um cardápio variado de opções de sinais ou palavras para representar uma igualdade ou o resultado de uma operação matemática. Muitos autores utilizavam a palavra "igual" em latim ou em seu idioma natal para denotar uma igualdade; neste rol encontram-se, entre outros: Palto de Tivoli, Pedro Nunes, Michael Stifel, Francisco Vieta, etc.
A palavra latina equales para igual, segundo Palto de Tivoli

A palavra latina aequale para igual, segundo Francisco Vieta

A palavra yguales para igual, segundo Pedro Nunes.

A palavra alemã gleich para igual, segundo Michael Stifel

Por outro lado, o monge franciscano e matemático italiano Luca Pacioli, em seu Summa de Arithmetica, editado em 1.494, utiliza, em uma de suas demonstrações matemáticas às margens do livro, o travessão (–) como sinal de igualdade.
O travessão (–) como sinal de igualdade, seguido do número 36 como resultado da conta, no livro “Summa de Arithmetica”, de Luca Pacioli.

O matemático francês Joannes Buteo, entretanto, em seu livro Logistica, editado em 1.559, apropria-se do colchete ([) para indicar igualdades.
Excerto do “Logistica”, de Joannes Buteo, com os colchetes para representar igualdade.

Atribui-se, enfim, ao matemático inglês Robert Recorde, em seu livro The Whettstone of Witte (editado em 1.557), a primazia pela criação e emprego do sinal "igual a" (=) para representar uma igualdade.
Um alongado sinal de igualdade, antecedido por outro igualmente alongado sinal de soma, no “The Whettstone of Witte”, de Robert Recorde.

De tudo o que foi exposto até aqui, depreende-se que, após tantas experimentações pelos eruditos matemáticos ao longo de décadas, principalmente na Europa e mais precisamente durante o período conhecido como Renascentismo ou Renascença (historicamente situado ente os séculos 12 e 16 d.C.), e sobretudo após a invenção da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg em 1.439 – que proporcionou uma verdadeira revolução na disseminação do conhecimento acumulado até então – subsistiram paulatinamente somente os sinais aritméticos que semiologicamente se adaptavam melhor à linguagem matemática nascente, dando-lhe uma forma e um estilo que, ao mesmo tempo em que a diferenciava da linguagem escrita, habilitava aos iniciados nessa ciência a imediata compreensão do significado de uma expressão escrita em tais termos.
Os sinais de soma, multiplicação, subtração, divisão e igualdade, tal como os conhecemos.

A uniformização desses sinais permitiu, enfim, que a linguagem escrita e falada se tornasse um obstáculo menor à compreensão da linguagem matemática, de modo que, independentemente do idioma, a língua dos números e das operações aritméticas tornou-se, inexoravelmente, universal. 

 

Referências bibliográficas:

[1]

Fink, K. “A brief history of mathematics”, The Open Court Publishing Company, 1900.

[2]

Cajori, F. “A history of mathematical notations – Vol. I: Notations in elementary mathematics”, The Open Court Company, 1928.

[3]

Cizmar, J. “The origins and development of mathematical notation (A historical outline)”, Quaderni di Ricerca in Didattica No.9, pp. 105-124, 2001.

[4]

Dantzig, T.  “Number – The language of science”, Pearson Education, Inc., 2005. ISBN: 0-13-185627-8

[5]

Mezbach, U. C.; Boyer, C. B. “A history of mathematics”, 3rd Edition, John Willey & Sons, 2011. ISBN: 978-0-470-52548-7.

[6]

Cooke, R. L. “The history of mathematics – A brief course”, 3rd Edition, John Willey & Sons, 2013. ISBN: 978-1-118-21756-6

[7]

Pedro Nunes, “Libro de algebra en arithmetica y geometria”, 1567.

[8]

Johannes Widman, “Rechenung auff allen Kauffmanschafft”, 1498.

[9]

Simon Stevin, “L’Arithmetique”, 1585.

[10]

William Oughtred, “Clavis Mathematicae”, 1667.

[11]

Johann Rahn,  “Teutsche Algebra”, 1659.

[12]

Platus Tiburtinus, “"Liber embadorum a. Savasorda in ebraico compositus et a Platone Titurtino in latinum sermonem translatus.Liber Ersemidis in quadratum circuli [De geometria practica]”, 1145.

[13]

Francisco Vieta, “Opera Mathematica”, 1646.

[14]

Luca Pacioli, "Summa de arithmetica geometria", 1523.

[15]

Joannes Buteo, "Logistica, quae et Arithmetica vulgo dicitur in libros quinque digesta", 1559.

[16]

Robert Recorde, “The Whetstone of Witte”, 1557.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.

quinta-feira, dezembro 25, 2014

Zero, o número filosofal

O

número zero decerto é o algarismo filosoficamente mais complexo e etéreo entre todos os numerais. Basta dizer que os primeiros problemas matemáticos que a humanidade teve de resolver envolviam questões bem práticas, concretas, muito longe da abstração que as questões matemáticas enfrentam hoje; não nos esqueçamos de que há uma distância enorme na formulação mental entre 7 bois e 7 coisas quaisquer para depois chegarmos à idéia genérica e abstrata de 7. Assim é que, se os antigos egípcios tivessem de resolver um problema sobre quantos bois um agricultor necessitaria para arar determinada área de terra, eles não poderiam obter zero como resposta. Essa concretude quase palpável esperada como solução nas antigas questões matemáticas dificultava o entendimento e a conceituação para abstrair o número zero, e foi a causa da longa gestação para o completo entendimento e maturação desse algarismo. Vimos que os sumérios foram a primeira civilização a desenvolver um sistema numérico; este sistema era posicional, ou seja, a posição de um determinado número em relação aos outros denotava o seu valor, assim como acontece no nosso. Por exemplo, a posição do número 9 em 924 tem um significado totalmente diferente em 249; ou seja, dependendo da posição que o número 9 ocupe em relação aos demais, muda nosso entendimento do valor que ele expressa. O sistema numérico sumério passou para a civilização Acádia por volta de 2.500 a.C. e depois para a Babilônica cerca de 2.000 a.C. e foram os babilônios os primeiros a conceberem um signo para indicar a ausência de um número em determinada coluna, tal como o 0 em 1025 indica que não há valor na casa das centenas nesse número. Este símbolo (por vezes representado por um par de cunhas inclinadas, outras vezes por um trio de ganchos, outras ainda nada mais que um espaço vazio) surgiu somente por volta de 400 a.C. nas tabuinhas de argila cozida:
O número 104 na grafia cuneiforme babilônica
Entretanto, esse signo vinha sempre entre dois números e nunca no fim, como em 140, por exemplo. Nota-se que o uso do zero naquela época para representar um espaço vazio não era uma aplicação efetiva desse numeral, ao contrário, servia como um tipo de marca ou pontuação só para facilitar a leitura e a correta interpretação do número em questão. No caso dos egípcios a situação era um pouco mais delicada: seu sistema numérico não era posicional, o que significa que os numerais podiam ser escritos em qualquer ordem, forçando sua correta leitura em função do contexto. Por exemplo, se o texto estivesse escrito de trás para frente, os números (para serem corretamente interpretados) deveriam ser lidos nessa ordem também, algo nada prático. Por volta de 1.740 a.C. surgiu entre os egípcios um hieróglifo em textos contábeis para o número zero chamado nfr, que simboliza um coração com traquéia e que pode significar "bonito", "agradável" ou "bom". O símbolo nfr também era usado para indicar a cota-base em projetos de tumbas e pirâmides, de modo que as distâncias eram medidas em relação a esse nível. Mas o uso do zero entre os egípcios não passava disso.
O símbolo nfr para o zero egípcio
Situação bastante diferente ocorria entre os maias. Eles podem ser considerados os primeiros a contar com um sistema numérico posicional e com um símbolo para representar o zero antes dos hindus. Mesmo havendo poucos textos maias, graças à sua destruição massiva pelos conquistadores espanhóis no século XV d.C., elas ainda são visíveis nos diversos monumentos remanescentes, como tumbas e pirâmides. Os zeros são encontrados também em muitas contagens cronológicas no “Codex Dresden”, um dos poucos documentos maias feitos de dobraduras com um tipo de papel produzido a partir de cascas de figueiras selvagens que escaparam à destruição espanhola. No “Codex Dresden” os zeros são encontrados em notação posicional junto com os demais números, sendo sempre representados por uma concha (como já visto no capítulo anterior) e sempre pintados de vermelho. Em muitos casos, as conchas estão estilizadas e simplificadas. Infelizmente, este inovador sistema numérico não chegou a influenciar outros povos, restringindo-se a esta avançada, porém misteriosa civilização ameríndia.
Página do Codex Dresden. Consegue identificar os numerais e o zero maias?
Por outro lado, o sistema numérico romano foi feliz enquanto existiu sem o número zero. De fato, eles não apenas não tinham o número zero como sequer possuíam um espaço reservado para esse dígito, como os que encontramos em 602 (que, para os romanos, era simplesmente DCII) ou ainda em 1009 (CIƆIX em numerais romanos). A ausência de duas características cruciais no sistema numérico romano – o zero e o sistema posicional, que estão no cerne do desenvolvimento de qualquer sistema de contagem eficiente – determinaram seu complicado sistema de numerais e que, como já visto, obrigavam os romanos, e posteriormente os europeus na Idade Média, a utilizarem o ábaco para que conseguissem realizar até mesmo os cálculos aritméticos mais simples. A única exceção para o uso do zero entre os romanos surgiu em 525 d.C., quando esse algarismo apareceu em um conjunto de tabelas para calcular a data correta da Páscoa, escritas pelo monge, matemático e astrônomo romeno Dionísio Exíguo, muito embora o zero fosse escrito como uma palavra – nulla – que significa nulo, vazio, e não como um símbolo. É de Dionísio, aliás, que o termo anno Domini, ou o "ano do Senhor", foi utilizado para a contagem dos anos a partir do nascimento de Cristo, que ainda hoje utilizamos como antes de Cristo (a.C.) e depois de Cristo (d.C.).
O monge Dionísio Exíguo
Também nos casos em que o resto de uma divisão era zero, os romanos usavam a palavra nihil, que deu origem ao nosso niilismo (e que significa redução a nada ou aniquilamento). Já para a civilização grega havia duas razões para a ausência do número zero: a primeira, de ordem prática, deriva do fato de que os matemáticos gregos eram geômetras por excelência; para eles, a matemática estava associada ao cálculo de perímetros, áreas e volumes de figuras geométricas e os números podiam ser representados por segmentos de linhas. Assim, não há lugar para o zero, uma vez que não é possível imaginar uma figura geométrica sem dimensões... A segunda razão para a ausência do zero era de ordem filosófica e resultava da forma como os gregos viam o mundo. Por exemplo, o universo grego de Parmênides, Platão e Aristóteles era finito, sem lugar tanto para os princípios da nulidade quanto para os da infinitude. É de Parmênides a frase: "Nada surge do nada", expressão que indica um princípio metafísico segundo o qual o ser não pode existir a partir do nada. Platão, por sua vez, defendia que tudo no universo era uma mera aproximação de um ideal que existia somente no mundo das formas. Assim, segundo Platão, havia uma forma para um cavalo, uma mesa, uma caneca, etc., de modo que todas as coisas que existiam no mundo das formas tinham um correspondente objeto em nosso universo fenomênico, que nada mais seriam que toscas manifestações daquelas formas ideais. Ou seja, tudo que existe sai desse mundo das formas (ou idéias), que é absolutamente verdadeiro e para o qual não há lugar para o nada. Por sua vez, o universo de Aristóteles era finito (como foi comentado anteriormente sobre sua epístola, “O contador de areia”) e ele acreditava piamente que não poderia haver o vazio nele; de fato, a idéia do nada se apresentava a Aristóteles como uma perigosa doença, sustentando que a natureza tem aversão ao vazio, ao vácuo, e está livre dele. Aliás, é muito interessante o fato de que foi graças à interpretação incerta dada ao zero pelos gregos que permitiu ao filósofo Zenão de Eléia, que foi discípulo de Parmênides, postular seu paradoxo mais famoso sob a forma de uma parábola que conta a disputa em uma corrida entre o herói Aquiles e uma tartaruga: como a velocidade de Aquiles é muito maior que a da tartaruga, esta recebe uma boa vantagem, começando a contenda um trecho à frente da linha de largada de Aquiles. Porém, nesta parábola o herói nunca chega a alcançar e menos ainda a ultrapassar o quelônio, porque o raciocínio adotado é que quando Aquiles alcança o ponto de partida da tartaruga, ela já andou e está um pouco à frente dele; quando o herói chega à nova posição, tartaruguinha já conseguiu avançar mais um pedaço do trajeto, e assim sucessivamente, ao infinito. Em resumo, Aquiles aproximar-se-ia sempre e cada vez mais, porém nunca chegaria a zerar, ou anular, a distância entre ele e seu rival quelônio... 
A corrida entre Aquiles e a tartaruga no paradoxo de Zenão
Obviamente que esta famosa corrida fictícia é apenas um exercício lógico e filosófico que se caracteriza por uma contradição insolúvel (já que, no mundo real, a tartaruguinha sequer teria tempo de dar alguns passos antes de ser ultrapassada por Aquiles ou por qualquer outro corredor não tão veloz), mas demonstra a dificuldade dos gregos para lidar com o conceito abstrato de zero. Importante ressaltar que os gregos tinham a noção do zero como uma anulação entre créditos e débitos nos cálculos contábeis ou financeiros. A tênue exceção a essa linha de pensamento ficou por conta do matemático, astrônomo, geógrafo e poeta greco-romano Ptolomeu, que por volta de 130 d.C., influenciado pelos babilônios, usou um símbolo para o zero (um pequeno círculo com uma barra longa sobrescrita) em um sistema numérico sexagesimal, que entretanto utilizava os numerais gregos no lugar da escrita cuneiforme, em sua obra “Almagesto”, título de origem árabe que significa "O maior", um tratado de astronomia. Esse símbolo foi usado por Ptolomeu não apenas entre os dígitos, mas no fim de um número; entretanto, ele ainda considerava o zero como um tipo de marca para pontuar os números.
Gravura de um coroado Ptolomeu sendo guiado (ou talvez inspirado) pela musa Astronomia, no livro "Margarita Philosophica", de Gregório Reis, de 1508

Seja como for, imputa-se aos hindus a atribuição do zero como um número e não mais como um mero símbolo ou espaço em branco, ao qual davam o nome sânscrito de súnia, que se traduz como “vazio”. Esta palavra deriva provavelmente de shuna, que é o particípio passado de svi, “crescer”. Em um dos primeiros textos Vedas, o “Rigveda”, súnia assume outro significado: falta ou deficiência. Talvez estes sinônimos tenham se fundido para dar a súnia um único sentido, exprimindo ausência ou vazio com potencial de crescimento. Daí porque a palavra suniata, derivada de súnia, descreve a doutrina budista do Vazio, ou seja, a prática espiritual de esvaziar a mente de todas as impressões cognitivas, um método prescrito em uma ampla gama de esforços criativos. Por exemplo, a prática da suniata é recomendada para escrever poesia, compor uma peça musical, produzir uma pintura ou qualquer atividade que saia da mente do artista. Um arquiteto recebeu o conselho nos tradicionais manuais Vedas de arquitetura (os “Shilpa Shastras”) de que projetar um edifício envolvia a organização do espaço vazio, pois “não são as paredes que fazem um edifício, mas os espaços vazios criados pelas paredes”. Observe o processo da criação vividamente descrito no seguinte versículo de um texto budista tântrico:

Primeiro, a realização do vazio (súnia)

Segundo, a semente na qual tudo está concentrado

Terceiro, a manifestação física

Quarto, deve-se implantar a sílaba

Logo se reconheceu que os súnias ocupavam uma posição notacional, assim como o “vazio” ou a ausência de valor numérico poderia ocupar qualquer posição em um número. Consequentemente, todas as grandezas numéricas, por maiores que fossem, poderiam ser representadas com apenas dez símbolos, como se pode observar neste comentário sobre o “Yogasutra”, de Patanjali, em que aparece a seguinte analogia:

“Assim como o mesmo signo é chamado de cem no lugar das 'centenas', dez no lugar das 'dezenas' e um no lugar das 'unidades', a uma mesma pessoa é imputada (diferentemente) o papel de mãe, filha ou irmã.”

Ou neste outro comentário, contido em um texto do trabalho enciclopédico “Manasollasa” (datado do século XII d.C.):

“Basicamente, existem apenas nove dígitos, começando com 'um' e indo até 'nove'. Com os zeros adicionados, eles são aumentados sucessivamente para dezenas, centenas e mais além.”

O símbolo para súnia começou como um ponto (bindu), sendo encontrado em inscrições na Índia, no Camboja e em Sumatra por volta dos séculos VII e VIII d.C. A associação entre o conceito de zero e seu símbolo já estava bem estabelecida nos primeiros séculos da era cristã, como mostra a seguinte citação, extraída do clássico conto romântico sânscrito, o “Vasavadatta” (escrito por volta de 400 d.C.):

“As estrelas brilhavam como zero-pontos (súnia-bindu) – espalhadas no céu como se no tapete azul o Criador contasse o total [usando] um pouco da lua como giz.”

Entretanto, a mais antiga e indubitável ocorrência na Índia do súnia, ou número zero, encontra-se em uma inscrição numa placa dentro de um templo dedicado ao deus Vishnu no Forte Gwalior, e datada de 876 d.C. Nessa placa, na quarta linha há o número 270 e na vigésima linha do texto, e onde são mencionadas 50 guirlandas usa-se um símbolo que é idêntico ao que usamos atualmente para o zero, ao qual os hindus denominavam chidra ou randra, cujo significado é “buraco”. Dada a época em que surgiu essa inscrição no Forte Gwalior, especula-se que houve a transmissão de conhecimentos astronômicos gregos pré-Ptolomaicos para os hindus através das rotas comerciais romanas durante a dinastia Gupta (portanto, entre os séculos 4 e 7 d.C.), porém com a adoção do sistema numérico posicional hindu para os cálculos matemáticos. Foi também nesse período dourado que os astrônomos hindus produziram os seus “Siddhantas”, cujo significado é “soluções”, e que cobriam conceitos matemáticos, astronômicos e movimentos planetários com base na teoria planetária grega. Os textos sânscritos sobre matemática e astronomia geralmente continham uma seção chamada súnia-ganita, ou cálculos envolvendo o zero. Enquanto a discussão nos textos aritméticos (pati-ganita) era limitada apenas à adição, subtração e multiplicação com zeros, o tratamento em textos sobre álgebra (bija-ganita) cobria questões como o efeito do zero sobre os sinais positivos e negativos, a divisão por zero e mais particularmente a relação entre zero e infinito (ananta).

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: o Forte Gwalior

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: templo dedicado ao deus Vishnu, contendo a placa com os números zeros

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da placa contendo o número 270

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da mesma placa contendo o número 50

De fato, o “Brahmasphutasiddhanta” (ou “Soluções de Brahmagupta”, escrito por volta de 628 d.C.), o mais conhecido trabalho do astrônomo e matemático hindu Brahmagupta, continha a melhor compreensão até então do papel matemático do número zero. Do exposto, depreende-se que súnia possui um profundo significado filosófico relacionado à indescritível realidade suprema que transcende a existência e a não-existência, bem como a origem de todas as coisas. De fato, o mistério da origem do universo despertou a mente dos filósofos e estudiosos ao longo dos séculos; os primeiros pensadores ocidentais, no entanto, tentaram lidar com o todo da realidade com os seus recursos limitados. Eles tentaram explicar a evolução do universo com coisas finitas. Pensadores posteriores mudaram suas posições inclinando-se sobre o absoluto, ou seja, um ser infinito. Este infinito é a única realidade e todas as outras coisas são reflexos disso. A concepção do bem e do universo como uma tímida aproximação de seu ideal no mundo das formas, adotado por Platão, e a doutrina de uma causa primária, por Aristóteles, são semelhantes a este conceito; entretanto, os filósofos hindus tinham suas próprias opiniões a esse respeito: para eles, o fim último de todo ser é enxergar a verdade mais elevada a que todas as coisas devem sua origem. Diferentes pensadores atribuíram nomes diferentes para esta verdade ou realidade: Deus, Brahma, Espírito Supremo, e assim por diante. Deste modo, a realidade suprema é misteriosa e inexplicável; ela só pode ser intuída e é adequadamente descrita através de súnia: vazio não apenas daquilo que é, mas também daquilo que não é. 
Especula-se que em 773 d.C. estudiosos hindus visitaram a corte de al-Mansur em Bagdá trazendo consigo a cópia de um texto astronômico indiano, possivelmente o “Brahmasphutasiddhanta”, junto com especiarias e outros itens exóticos. O califa ordenou que essa obra fosse traduzida para a sua língua e é possível que tenha inspirado a criação de um dos textos árabes mais antigos a lidar com aritmética utilizando os numerais hindus: o “Kitab al-jam’wal tafriq bi hisab al-Hind” (ou “Livro da adição e da subtração pelo cálculo hindu”), do matemático al-Khwarizmi, onde se apresentam os nove numerais hindus e – como nos diz a versão em latim de sua obra que sobreviveu até os nossos dias – um círculo para designar o zero. A palavra súnia foi traduzida para o árabe como sifr, cujo significado é “nada” e do qual deriva a palavra “cifra” em português. É curioso que Fibonacci – em seu “Liber Abaci” – não demonstre firmeza suficiente para tratar o zero do mesmo modo que os demais algarismos, chamando-o de “sinal”, enquanto denomina os outros de “números”. Aliás, Fibonacci adaptou a palavra árabe sifr para a latina zephirum, que deu origem ao “zero” em português. Outro fato interessante é que, assim como os demais algarismos, o zero também sofreu alterações em sua forma ao longo do tempo nos textos medievais de matemática, assumindo diversos estilos, mas sempre tendo como base um círculo, como se pode observar na figura a seguir:

As formas para o número zero

Uma imagem recorrente em diversas civilizações (tais como a egípcia, indiana e grega) é a do ouroboros, uma cobra devorando a própria cauda. Este símbolo representa a unidade e o infinito, a conexão entre todas as coisas, a eterna recorrência ou ainda “o fim é o início” e pode ter servido de inspiração à forma circular do algarismo zero, ainda que não haja nenhuma evidência que possa sustentar esta hipótese. De todo modo, não deixa de ser curiosa a semelhança entre estas formas e conceitos...
Ouroboros, a cobra devorando a própria cauda

Hoje em dia parece exagero fazer-se tanto barulho por um simples algarismo; porém, é justamente o fato de se conhecer e saber trabalhar corretamente as propriedades do zero que nos permitiu atingir um avanço matemático (e por consequência, tecnológico) sem precedentes. Ainda assim, mesmo funcionando como um símbolo e um conceito destinados a denotar ausência ou o vazio, somente o zero possui certos caprichos que o tornam um algarismo especial e profundamente filosófico.


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Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.