E |
xiste uma curiosidade acerca do sistema numérico sumério que comentamos no capítulo anterior: sua base é sexagesimal, ou seja, a base de contagem é 60 e não 10 como a nossa. Esta forma de contagem não é muito exótica se pensarmos que é possível contar as falanges dos quatro dedos de uma mão aplicando o polegar para a contagem; neste caso, teríamos um total de 12 falanges e, se utilizarmos os 5 dedos da outra mão para computar cada dúzia, seremos capazes de ampliar a contagem até 60. Esta forma de contar, por sinal, ainda é utilizada em certas regiões da Ásia e funciona dessa mesma maneira.
Contando as falanges das mãos |
Ainda assim, o sistema numérico sumério não era sexagesimal puro no sentido de
que não havia 60 sinais diferentes para esses dígitos, mas apenas dois sinais
distintos utilizados em conjunto para descrever os demais, como se pode
observar na figura abaixo:
Números babilônicos em escrita cuneiforme |
Hieróglifos para representação numérica |
Entretanto, esses sinais eram utilizados apenas em documentos oficiais emitidos pelo faraó, bem como em tumbas e monumentos, onde a solenidade e a pompa se faziam necessárias para mostrar a autoridade do regente e a força do império, e o rebuscado dos hieróglifos contribuía certamente para reforçar esse sentimento; para as tarefas cotidianas era utilizada a escrita criada pelos escribas e conhecida por hierática, que simplificava em muito a hieroglífica, de modo que os números ficavam deste jeito:
Escrita hierática, utilizada pelos escribas |
Sistema vigesimal maia |
Assim, para números maiores que 19, os maias “empilhavam” progressivamente seus três sinais numéricos para descrevê-los. Por exemplo, o número 27 era escrito como abaixo:
Sistema vigesimal maia |
De fato, fica evidente que este sistema numérico nada tem de prático para nós e, como os anteriores, sobreviveu gravado nas pirâmides, estelas e monumentos maias, porém ficou para sempre esquecido nas sombras da floresta tropical mexicana. Contudo, foi graças à civilização hindu que a humanidade ganhou um sistema numérico verdadeiramente poderoso e ainda hoje imbatível para expressar quantidades e realizar cálculos. Esta civilização surgiu por volta de 2.500 a.C. (portanto, contemporâneos tanto dos sumérios quanto dos egípcios) e floresceram em duas principais cidades: Harapa e Mohenjo-daro, onde atualmente se encontra o Paquistão, e em mais de uma centena de cidadelas e vilarejos ao redor destas, mesclando-se posteriormente com a cultura védica, esta oriunda do atual Irã. É dessa fusão que chegaram até nós os primeiros registros literários daquela que talvez seja a mais importante obra hindu: os Vedas, escrita em sânscrito e datando entre 1.500 a.C. e 800 a.C. Estes textos, consistindo de hinos, encantamentos e observações ritualísticas, foram de início transmitidos oralmente e posteriormente se transformaram em obras escritas para os seguidores da religião védica. Dentre essas obras religiosas, os Sulbasutras são as que têm importância para a matemática, pois apesar de serem meros apêndices dos Vedas, continham grande quantidade de conhecimento geométrico e consistiam de regras para a construção de altares, propiciando um ambiente favorável para o desenvolvimento matemático, ainda que o propósito estivesse voltado à prática religiosa.
As ruínas de Mohenjo-daro |
Os numerais Brahmi |
Os numerais Gupta |
Os numerais Devangari |
Os numerais acrofônicos |
Os numerais jônicos ou alfabéticos |
Que é o número 5 grego embutindo os números 10, 100, 1.000 e 10.000 (todos do sistema ático) para representação das potências de 5; ou seja, havia uma mescla entre o sistema ático e o jônico. Os gregos tinham sérios problemas para expressar números muito grandes com esses sistemas, o que forçou o filósofo Arquimedes no século 2 a.C. a ampliá-los em sua epístola ao rei Gelão, “O contador de areia”, onde ele se propôs calcular a quantidade de grãos de areia necessários para preencher o universo de Aristarco, que Arquimedes simplificou como sendo uma esfera com raio igual à distância entre o centro do Sol e o centro da Terra.
Apesar da inquestionável competência da civilização grega em muitas áreas do
conhecimento humano, este sistema numérico acabou submergindo nos grãos de
areia do passado. Como comentado alguns parágrafos antes, os gregos influenciaram
de modo indelével a civilização romana. Este povo, surgido de uma
pequena comunidade agrícola e pastoril na península itálica no século 8 a.C.,
tornou-se num dos maiores impérios do mundo antigo, chegando a controlar um
território com cerca de 6,5 milhões de Km2 na época do imperador Trajano, no
século 1 d.C., e que englobava o sudoeste da Europa ocidental, o sudeste da
Europa (incluindo os Bálcãs) e toda a bacia do Mediterrâneo, através de
conquistas e assimilações. Seu sistema numérico, composto dos chamados numerais
romanos, emprega combinações de letras do alfabeto latino para atribuição de
valores, algo semelhante ao sistema jônico grego:
Os numerais romanos |
Saque de Roma pelos Vândalos em 455 d.C., ilustração de Heinrich Leutemann. |
É a partir desse período e
nesse caldeirão de turbulências sociais que os números hindu-arábicos encontraram
um ambiente propício para se imiscuir na Europa e tomar definitivamente seu
lugar na história. E aqui começa também a contribuição valiosíssima da cultura
árabe nesse processo. A cultura árabe primitiva
foi formada por principados e pequenos estados independentes que ocuparam a
península arábica, destacando-se: reino de Sabá, surgido no século 8 a.C.; o
reino Mineu, surgido também no século 8 a.C. e estabelecido ao norte do reino
de Sabá; os reinos de Qataban e Hadramut, o primeiro tendo surgido por volta de
600 a.C. e o segundo cerca de 450 a.C., ambos estabelecidos a leste do reino de
Sabá e importantes pontos de comércio com a Índia; o reino de Petra, criado por
várias tribos nômades no nordeste da península arábica com o objetivo de
proteção mútua; o império de Palmira ou Tadmor, estabelecido a noroeste da
cidade de Damasco; o reino dos Gassânidas, formado no ano 400 d.C. a sudeste de
Damasco por fugitivos do reino de Sabá quando este foi conquistado pelos
etíopes; o reino de Hira, formado a partir de um acampamento da tribo Tanukh em
275 d.C. e que tinham nos gassânidas seus maiores inimigos; e finalmente o
estado de Kindah, formado pela conquista de diversas tribos beduínas pelo
soberano himiarita Hassan Tuba e posto sob o governo do irmão deste, Hudjr.
Estes reinos exerceram influência ou foram conquistados uns pelos outros até
sofrerem sua total unificação política e religiosa sob a liderança de Maomé,
que deu origem aos califados islâmicos, divididos historicamente em três fases.
A primeira fase, denominada de califado Rashidun, vai de 632 a 661 d.C., após a
morte do profeta; a segunda fase, chamada de califado Omíada, vai de 661 a 750
d.C.; e finalmente a terceira fase, denominada de califado Abássida, vai de 750
a 1299 d.C.
Distribuição geográfica dos califados |
Durante esses 667 anos, também conhecidos como era de ouro do islamismo, o mundo árabe transformou-se num centro intelectual singular da ciência, filosofia, matemática, medicina e educação, graças aos preceitos do Alcorão e das tradições do Hadiz (corpo de leis, lendas e histórias sobre Maomé), cujos valores se expressam em frases como: “a tinta dos estudiosos vale tanto quanto o sangue dos mártires”, evidenciando o extremo valor que davam ao conhecimento; de fato, o mundo árabe, sendo uma coleção de culturas postas em conjunto, foi capaz de sintetizar e avançar significativamente nos conhecimentos adquiridos pelas civilizações que os precederam: romana, chinesa, grega, egípcia, indiana, entre outras. Foi também o maior império que o mundo havia visto até então, com um território de cerca de 15 milhões de Km2 em seu apogeu.
Manuscrito árabe descrevendo o olho humano, ± 1.200 d.C. |
Nesse ambiente único, não é de se espantar que uma das maiores inovações árabes tenha sido a difusão maciça do papel; originalmente um segredo guardado zelosamente pelos chineses da dinastia Han, a arte de confecção do papel foi obtida a partir de prisioneiros capturados na batalha de Talas em 751 d.C. e aprimorada pelos árabes, que passaram a utilizar casca de amoreira e amido em sua produção. Como o papel era mais fácil de ser produzido que o pergaminho e menos propenso a quebrar que o papiro, podendo ainda absorver tinta que era difícil de apagar, transformou-se no meio ideal para manter registros que, associados ao respeito que nutriam pelo conhecimento, fomentaram o surgimento de fábricas de papel em Samarcanda e Bagdá, de modo que no ano 900 d.C. havia centenas de estabelecimentos em Bagdá que empregavam escribas e encadernadores de livros, bem como se estabeleceram as primeiras bibliotecas públicas, sendo as primeiras do mundo a adotarem o empréstimo de livros.
Foi essa reverência às ciências que fez o califado Abássida patrocinar maciçamente os estudiosos da época no assim chamado “Movimento tradutório”, um esforço do império para a tradução de obras da antiguidade clássica, principalmente as gregas, para o árabe. Estima-se que os melhores estudiosos e os mais notáveis tradutores ganhassem salários equivalentes aos atletas profissionais de hoje. Graças a esse impressionante trabalho, muitas dessas obras clássicas gregas não se perderam definitivamente no passado; posteriormente, elas foram sendo traduzidas para o turco, persa, hebreu e latim. As traduções para o latim foram fundamentais para a dispersão desses clássicos do conhecimento por toda a Europa medieval – que fora domínio do império romano – a partir de al-Andaluz, que era o nome dado à península Ibérica pelos árabes, onde atualmente se encontram Portugal e Espanha. Esta feliz conjunção de fatores – a amálgama de culturas sob um único estado, a expansão do conhecimento da época e a difusão do papel – permitiram à matemática atingir um novo patamar evolutivo, graças a outra essencial ajudinha dos árabes: o aperfeiçoamento do sistema numérico hindu. O mundo árabe sob o comando do califado Abássida fazia fronteira com a dinastia Gupta indiana já no século 5 d.C. Sendo primorosos comerciantes, não é difícil imaginar um forte intercâmbio entre esses dois povos, seja na troca de mercadorias, seja na troca de conhecimento. Na verdade, há indícios de que o sistema numérico hindu migrou para o oeste antes mesmo da consolidação do mundo árabe. Por exemplo, em 662 d.C. o bispo cristão de origem síria Severus Sebokht, quando vivia na cidade de Keneshra à margem do rio Eufrates, escreveu o seguinte acerca do sistema numérico hindu:
“Omitirei toda discussão acerca da ciência dos indianos..., suas sutis descobertas na astronomia, descobertas mais engenhosas que as dos gregos e dos babilônios, e de seus preciosos métodos de cálculo que ultrapassam descrições. Gostaria apenas de dizer que este cálculo é feito por meio de nove sinais. Se aqueles que crêem, porque falam grego, que chegaram aos limites da ciência, deveriam ler os textos indianos e poderiam ser convencidos, ainda que um pouco tardiamente, que existem outros que sabem algo de valor”.
Seja como for, os árabes
souberam rapidamente aproveitar e fazer uso das vantagens únicas desse sistema
de numeração. Credita-se ao matemático al-Khwarizmi o primeiro texto árabe para
explicar o sistema numérico hindu, intitulado “Livro da adição e da subtração
pelo cálculo hindu” escrito por volta de 825 d.C. cujo original infelizmente se
perdeu, mas que teve uma tradução para o latim que chegou até nós com o
equivocado título “Algarismos dos numerais hindus” cuja palavra algarismo é uma
corruptela de al-Kwarizmi. Um dos exemplos do uso dos primeiros numerais hindus
pelo império árabe vem de um trabalho de al-Sijzi, astrônomo e matemático que
escreveu sobre a geometria das esferas, não um trabalho original, mas antes uma
cópia datada de 969 d.C., conforme se observa a seguir:
Numerais utilizados por al-Sijzi |
Numerais utilizados por al-Biruni |
Numerais utilizados por al-Marrakushi |
Os monges Sarracino (à esquerda), Vigila (ao centro) e Garcia (à direita) |
O excerto abaixo é a parte do texto onde explicitamente se faz referência aos numerais hindu-arábicos na crônica Albeldense, em uma posterior compilação, datada de 976 d.C. e cujo texto, em latim, é o seguinte:
"Scire debemus in Indos subtilissimum ingenium habere et ceteras gentes eis in arithmetica et geometria et ceteris liberalibus disciplinis concedere. Et hoc manifestum est in nobem figuris, quibus designant unumquemque gradum cuiuslibet gradus. Quarum hec sunt forma 9 8 7 6 5 4 3 2 1"
Um sincero esforço de tradução para a língua portuguesa resultou no texto a seguir:
"Sabemos terem os hindus a sutilíssima sagacidade de outros povos na aritmética e geometria, e concedido outras disciplinas liberais. Isto fica evidente nas figuras gobar, cada uma das quais designa o grau de todos os graus. A seguir, suas formas: 9 8 7 6 5 4 3 2 1."
Os árabes referiam-se aos seus números como numerais gobar, cujo significado é areia, e talvez nobem no texto em latim refira-se a eles. Entretanto, há visíveis diferenças entre os numerais do Vigilanus e aqueles da escrita de al-Sijzi, ambos produzidos com uma diferença de apenas sete anos, o que demonstra que os caminhos pelos quais esses conhecimentos chegavam aos estudiosos não eram necessariamente os mesmos.
O excerto original da crônica Albeldense contendo os numerais hindu-arábicos |
As formas para o numeral 1 |
As formas para o numeral 2 |
As formas para o numeral 3 |
As formas para o numeral 4 |
As formas para o numeral 5 |
As formas para o numeral 6 |
As formas para o numeral 7 |
As formas para o numeral 8 |
As formas para o numeral 9 |
O ábaco |
Fato é que o ábaco era uma ferramenta comum e indispensável
nos negócios da idade média, muito embora fossem mais assemelhados a mesas. E
foi com o sistema numérico romano na cabeça e o ábaco nas mãos de todo aquele
que tivesse necessidade de fazer contas que surgiu em 1.202 o segundo
manuscrito de que se tem notícia sobre os numerais hindu-arábicos na Europa: o “Liber
Abaci”, ou “O Livro dos Ábacos”. Esta obra foi escrita à mão por Leonardo
Pisano, filho de Guilielmo Bonacci (ou filius
Bonacci em latim), que lhe rendeu a alcunha pela qual é mundialmente
famoso: Fibonacci. Ele nasceu no que hoje é a Itália, mas foi educado no norte
da África onde seu pai mantinha um posto diplomático, cujo trabalho era
representar os mercadores da república de Pisa na cidade portuária de Bugia,
atual Bejaia, no noroeste da Argélia. A esse respeito, escreve Fibonacci em seu
“Liber Abaci”:
“Quando meu pai, que foi nomeado por seu país como notário público aos clientes em Bugia atuando para os mercadores de Pisa que para lá iam, e estando no comando, chamou-me a mim quando eu ainda era uma criança e, com um olho na utilidade e conveniência futuros, desejou que eu lá ficasse e recebesse instrução na escola de contabilidade. Lá, quando fui apresentado à arte indiana dos nove símbolos através de notável ensino, o conhecimento dessa arte muito cedo me agradou acima de tudo e vim a entendê-la [...]”
Diz-se que Fibonacci, retornado a Pisa, logo ganhou notoriedade com o seu sistema numérico entre os mercadores italianos e os banqueiros alemães; mas os governos ainda não viam os algarismos arábicos com bons olhos pela facilidade com que era possível trocar um símbolo por outro, o que facilitava muito, por exemplo, as fraudes contábeis. De todo modo, o sistema hindu-arábico ainda levaria mais de três séculos para se enraizar em definitivo na Europa, mesmo com o sucesso obtido por Fibonacci e sua obra. Os manuscritos e livros editados após 1.500 d.C. sobre aritmética refletem bem esse cenário, onde eram relativamente comuns as ilustrações confrontando as técnicas aritméticas entre os dois sistemas numéricos, como bem podemos observar nas ilustrações seguintes.Ilustração do livro “Ain new geordnet Rechenbüchlein”, de Jakob Kobel, de 1516, mostrando o ábaco à esquerda e contas efetuadas com o sistema hindu-arábico à direita. |
Ilustração do livro “The ground of Artes”, de Robert Recorde, de 1543, com indivíduos confrontando os resultados obtidos em contas feitas no ábaco e no sistema hindu-arábico. |
Pois bem, tivemos uma breve visão dos fatos históricos que
compõem o colorido mosaico dos principais sistemas numéricos desenvolvidos pela
humanidade e a forma como chegamos ao atual sistema hindu-arábico. Todavia,
existe ainda outro algarismo não tratado neste capítulo, cuja história é tão
pitoresca e importante para o desenvolvimento da matemática, que mereceu todo
um capítulo à parte: o número zero.
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