terça-feira, março 10, 2015
sábado, março 07, 2015
M |
O resultado de 215 × 121 com os algarismos maias e seguindo o procedimento Dzaac-Xox, agora em notação decimal, é: 26.015. Temos de admitir que os maias eram realmente muito bons em matemática. Com os antigos gregos, porém, a multiplicação aritmética enfrenta há mais de 450 anos um erro de tradução que nos engana e confunde até hoje com o mito de que a “multiplicação é a repetição de somas”. Imputa-se ao matemático grego Euclides, em sua obra “Elementos”, a definição da multiplicação como uma repetição de somas, mas de fato ele nunca escreveu isso. O texto original grego onde ocorre o erro de tradução é a proposição 16 do Livro VII, indicada abaixo:
Ἀριθμὸς ἀριθμὸν πολλαπλασιάζειν λέγεται, ὅταν, ὅσαι εἰσὶν ἐν αὐτῷ μονάδες, τοσαυτάκις συντεθῇ ὁπολλαπλασιαζόμενος, καὶ γένηταί τις.
Quem gerou essa confusão tão infeliz e duradoura foi Henry Billingsley, um armarinheiro e linguista amador londrino, o primeiro a traduzir a obra de Euclides para o inglês, em 1.570. A tradução equivocada de Billingsley para a proposição 16 é a seguinte:
“Diz-se que um número multiplica outro número quando o multiplicando é tão frequentemente somado a si mesmo quantas são as unidades do multiplicador: e um outro número [o produto] é produzido.”
O verbo grego συντεθῇ na frase original significa “colocado”, “posto junto”, mas Billinsgley o traduziu erroneamente para “somado a si mesmo”. Interessante notar que outro matemático, o italiano Nicolau Tartaglia, traduziu o texto grego para o italiano corretamente em 1.543, com os seguintes dizeres:
“Diz-se que um número é multiplicado por outro tal que seja (combinado/tomado) tantas vezes quantas são as unidades do multiplicador.”
Então, o que fez Euclides quando explicou a multiplicação? A resposta é que ele tratou os segmentos de linha como operações unárias. Uma operação unária é aquela efetuada com apenas um operando; são exemplos de operações unárias: o fatorial de um número natural ou o quadrado de um número real, entre outros. Porém, o que Henry Billingsley fez em 1.570 foi mudar a definição unária de Euclides para uma definição binária incorreta. Uma operação binária é aquela efetuada com dois operandos; operações aritméticas de soma, subtração, multiplicação e divisão são exemplos de operações binárias. O resultado disso tudo é que, até os dias atuais, as crianças aprendem a multiplicação por meio de adições repetidas, geralmente com o erro grotesco do “adicionar a si mesmo” incluído na pedagogia... Outro aspecto a ser considerado é que o uso da régua e do compasso na elaboração geométrica para multiplicar comprimentos de linha foi adotado pela primeira vez por René Descartes, filósofo e matemático francês que viveu entre 1.596 e 1.650, cuja demonstração encontra-se em sua obra “O discurso do método”, especificamente no apêndice “A Geometria”. De fato, o primeiro diagrama apresentado nesse apêndice descreve a multiplicação de segmentos de linhas através da semelhança de triângulos:Na verdade, o exemplo dado pelo matemático francês é uma repetição da proposição 12 do Livro VI do “Elementos”, cujo enunciado é:
“Dadas três linhas retas, achar a quarta proporcional”
Assim, a multiplicação do exemplo de Descartes, representada pela semelhança de triângulos, é equivalente à proporção:$$ \frac{BC}{AB}=\frac{BE}{DB} $$
[1] Para quaisquer dois segmentos de reta cujas magnitudes
se queiram multiplicar, o terceiro segmento sempre será perpendicular a estes
dois, posicionado no ponto O de
união, e terá sempre um tamanho fixo unitário.
Janela com gelosias |
Multiplicação, segundo o "Liber Abaci", de Fibonacci |
Três diferentes formas de multiplicar, segundo o "Treviso Arithmetica": o atual (acima à esquerda), a gelosia (abaixo) e um híbrido entre os dois métodos (acima à direita). |
Três diferentes formas de multiplicar, segundo o “Tractado
Subtilissimo d’arismetica” |
A multiplicação, segundo o "Summa de arithmetica" |
Os bastões, ou ossos, de Napier |
Um osso correspondente ao algarismo 7, com a sua correspondente tabuada |
Alinhando os algarismos do multiplicador com os ossos de Napier |
Destacando em vermelho
os algarismos do multiplicando |
Observe: o número 5 não possui nenhum outro número com o qual possa ser somado; então, ele entra como o primeiro resultado parcial. Em seguida, somamos o 4 com o 8, resultando 12; como em cada caixa podemos ter um único algarismo, o 1 do 12 é uma ordem de grandeza maior, ele passa para a próxima diagonal, ficando o 2 como o segundo resultado parcial. Na terceira diagonal, temos o 1 (que veio da diagonal anterior) para ser somado com os algarismos 1 e 2, resultando 4 como o terceiro resultado parcial. Finalmente, o algarismo 7 também não tem nenhum outro número com o qual possa ser somado, entrando como o quarto e último resultado parcial, chegando-se a: 7425. Para a linha do dígito 1, o resultado é o próprio valor do algarismo de cada osso; assim, chegamos ao valor 825, conforme indicado abaixo:
Para a linha do dígito 3, o procedimento é o mesmo utilizado no dígito 9. Seguindo o mesmo raciocínio, chegamos ao valor 2475, conforme abaixo:
Agora, estes três resultados devem ser somados entre si de acordo com a seguinte regra: no multiplicador (ou seja, o 913) para o dígito 3 (que representa as unidades) mantém-se o resultado 2475 inalterado; para o dígito 1 (que representa as dezenas), acrescentamos um zero à direita de 825, resultando 8250. E para o dígito 9 (que representa as centenas) acrescentamos dois zeros à direita de 7425, resultando 742500. Finalmente, somamos estes três resultados parciais para chegarmos ao equivalente da multiplicação entre 825 e 913 em nosso método moderno, conforme indicado a seguir:
O resultado da multiplicação entre 825 e 913 é: 753225, como destacado em vermelho. Apesar de Napier receber todo o crédito pela invenção de seus ossos de cálculo, há claros indícios de seu uso anterior; ainda que descrito formalmente pela primeira vez no “Rabdologiæ”, este tipo de artefato já era bem conhecido e disponibilizado por vários artesãos e fabricantes de instrumentos, fato este evidenciado na dedicatória do livro do matemático escocês, onde afirma:
"Eu tive duas razões para tornar meu livro sobre a fabricação e uso dos ossos disponível para o público. A primeira foi que os ossos caíram nas graças de tanta gente que quase se podia dizer que já eram de uso comum, tanto dentro quanto fora de casa. A segunda razão é que foi trazido à minha atenção... o conselho que você gentilmente me deu de publicá-las, para que não fossem publicadas sob o nome de outra pessoa...".
Os ossos de Napier podem ser considerados como uma adaptação inteligente das chamadas mesas de multiplicação. Evidências desse tipo de artefato existem desde o tempo dos babilônios, na forma de placas de argila, utilizando o sistema sexagesimal em escrita cuneiforme. Também são conhecidas como mesas de Pitágoras, havendo uma aparição delas na obra “Arithmetike eisagoge” (“Introdução à Aritmética”), do filósofo e matemático greco-romano Nicômaco de Gerasa, que viveu entre 60 d.C. e 120 d.C. A mais antiga mesa de multiplicação grega existente encontra-se no formato de uma plaqueta de cera, datada do século I d.C., e atualmente em posse do Museu Britânico.Uma mesa de Pitágoras, feita de ripas semelhantes a palitos de picolé |
Mesa de multiplicação chinesa, conhecida como bambus deslizantes de Tsinghua |
Entre os árabes, a técnica de cálculo com as mesas de
Pitágoras denominava-se método da peneira ou método da rede. Na Itália dos
séculos XIV e XV o método era conhecido, como já visto, pelo nome de gelosia ou
graticola. Seja como for, os ossos de Napier representam, sem dúvida, uma
ferramenta pedagógica bastante interessante para o ensino da multiplicação e,
como veremos a seguir, igualmente para o ensino da divisão.
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