Ciência de Garagem

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quinta-feira, dezembro 25, 2014

Zero, o número filosofal

O

número zero decerto é o algarismo filosoficamente mais complexo e etéreo entre todos os numerais. Basta dizer que os primeiros problemas matemáticos que a humanidade teve de resolver envolviam questões bem práticas, concretas, muito longe da abstração que as questões matemáticas enfrentam hoje; não nos esqueçamos de que há uma distância enorme na formulação mental entre 7 bois e 7 coisas quaisquer para depois chegarmos à idéia genérica e abstrata de 7. Assim é que, se os antigos egípcios tivessem de resolver um problema sobre quantos bois um agricultor necessitaria para arar determinada área de terra, eles não poderiam obter zero como resposta. Essa concretude quase palpável esperada como solução nas antigas questões matemáticas dificultava o entendimento e a conceituação para abstrair o número zero, e foi a causa da longa gestação para o completo entendimento e maturação desse algarismo. Vimos que os sumérios foram a primeira civilização a desenvolver um sistema numérico; este sistema era posicional, ou seja, a posição de um determinado número em relação aos outros denotava o seu valor, assim como acontece no nosso. Por exemplo, a posição do número 9 em 924 tem um significado totalmente diferente em 249; ou seja, dependendo da posição que o número 9 ocupe em relação aos demais, muda nosso entendimento do valor que ele expressa. O sistema numérico sumério passou para a civilização Acádia por volta de 2.500 a.C. e depois para a Babilônica cerca de 2.000 a.C. e foram os babilônios os primeiros a conceberem um signo para indicar a ausência de um número em determinada coluna, tal como o 0 em 1025 indica que não há valor na casa das centenas nesse número. Este símbolo (por vezes representado por um par de cunhas inclinadas, outras vezes por um trio de ganchos, outras ainda nada mais que um espaço vazio) surgiu somente por volta de 400 a.C. nas tabuinhas de argila cozida:
O número 104 na grafia cuneiforme babilônica
Entretanto, esse signo vinha sempre entre dois números e nunca no fim, como em 140, por exemplo. Nota-se que o uso do zero naquela época para representar um espaço vazio não era uma aplicação efetiva desse numeral, ao contrário, servia como um tipo de marca ou pontuação só para facilitar a leitura e a correta interpretação do número em questão. No caso dos egípcios a situação era um pouco mais delicada: seu sistema numérico não era posicional, o que significa que os numerais podiam ser escritos em qualquer ordem, forçando sua correta leitura em função do contexto. Por exemplo, se o texto estivesse escrito de trás para frente, os números (para serem corretamente interpretados) deveriam ser lidos nessa ordem também, algo nada prático. Por volta de 1.740 a.C. surgiu entre os egípcios um hieróglifo em textos contábeis para o número zero chamado nfr, que simboliza um coração com traquéia e que pode significar "bonito", "agradável" ou "bom". O símbolo nfr também era usado para indicar a cota-base em projetos de tumbas e pirâmides, de modo que as distâncias eram medidas em relação a esse nível. Mas o uso do zero entre os egípcios não passava disso.
O símbolo nfr para o zero egípcio
Situação bastante diferente ocorria entre os maias. Eles podem ser considerados os primeiros a contar com um sistema numérico posicional e com um símbolo para representar o zero antes dos hindus. Mesmo havendo poucos textos maias, graças à sua destruição massiva pelos conquistadores espanhóis no século XV d.C., elas ainda são visíveis nos diversos monumentos remanescentes, como tumbas e pirâmides. Os zeros são encontrados também em muitas contagens cronológicas no “Codex Dresden”, um dos poucos documentos maias feitos de dobraduras com um tipo de papel produzido a partir de cascas de figueiras selvagens que escaparam à destruição espanhola. No “Codex Dresden” os zeros são encontrados em notação posicional junto com os demais números, sendo sempre representados por uma concha (como já visto no capítulo anterior) e sempre pintados de vermelho. Em muitos casos, as conchas estão estilizadas e simplificadas. Infelizmente, este inovador sistema numérico não chegou a influenciar outros povos, restringindo-se a esta avançada, porém misteriosa civilização ameríndia.
Página do Codex Dresden. Consegue identificar os numerais e o zero maias?
Por outro lado, o sistema numérico romano foi feliz enquanto existiu sem o número zero. De fato, eles não apenas não tinham o número zero como sequer possuíam um espaço reservado para esse dígito, como os que encontramos em 602 (que, para os romanos, era simplesmente DCII) ou ainda em 1009 (CIƆIX em numerais romanos). A ausência de duas características cruciais no sistema numérico romano – o zero e o sistema posicional, que estão no cerne do desenvolvimento de qualquer sistema de contagem eficiente – determinaram seu complicado sistema de numerais e que, como já visto, obrigavam os romanos, e posteriormente os europeus na Idade Média, a utilizarem o ábaco para que conseguissem realizar até mesmo os cálculos aritméticos mais simples. A única exceção para o uso do zero entre os romanos surgiu em 525 d.C., quando esse algarismo apareceu em um conjunto de tabelas para calcular a data correta da Páscoa, escritas pelo monge, matemático e astrônomo romeno Dionísio Exíguo, muito embora o zero fosse escrito como uma palavra – nulla – que significa nulo, vazio, e não como um símbolo. É de Dionísio, aliás, que o termo anno Domini, ou o "ano do Senhor", foi utilizado para a contagem dos anos a partir do nascimento de Cristo, que ainda hoje utilizamos como antes de Cristo (a.C.) e depois de Cristo (d.C.).
O monge Dionísio Exíguo
Também nos casos em que o resto de uma divisão era zero, os romanos usavam a palavra nihil, que deu origem ao nosso niilismo (e que significa redução a nada ou aniquilamento). Já para a civilização grega havia duas razões para a ausência do número zero: a primeira, de ordem prática, deriva do fato de que os matemáticos gregos eram geômetras por excelência; para eles, a matemática estava associada ao cálculo de perímetros, áreas e volumes de figuras geométricas e os números podiam ser representados por segmentos de linhas. Assim, não há lugar para o zero, uma vez que não é possível imaginar uma figura geométrica sem dimensões... A segunda razão para a ausência do zero era de ordem filosófica e resultava da forma como os gregos viam o mundo. Por exemplo, o universo grego de Parmênides, Platão e Aristóteles era finito, sem lugar tanto para os princípios da nulidade quanto para os da infinitude. É de Parmênides a frase: "Nada surge do nada", expressão que indica um princípio metafísico segundo o qual o ser não pode existir a partir do nada. Platão, por sua vez, defendia que tudo no universo era uma mera aproximação de um ideal que existia somente no mundo das formas. Assim, segundo Platão, havia uma forma para um cavalo, uma mesa, uma caneca, etc., de modo que todas as coisas que existiam no mundo das formas tinham um correspondente objeto em nosso universo fenomênico, que nada mais seriam que toscas manifestações daquelas formas ideais. Ou seja, tudo que existe sai desse mundo das formas (ou idéias), que é absolutamente verdadeiro e para o qual não há lugar para o nada. Por sua vez, o universo de Aristóteles era finito (como foi comentado anteriormente sobre sua epístola, “O contador de areia”) e ele acreditava piamente que não poderia haver o vazio nele; de fato, a idéia do nada se apresentava a Aristóteles como uma perigosa doença, sustentando que a natureza tem aversão ao vazio, ao vácuo, e está livre dele. Aliás, é muito interessante o fato de que foi graças à interpretação incerta dada ao zero pelos gregos que permitiu ao filósofo Zenão de Eléia, que foi discípulo de Parmênides, postular seu paradoxo mais famoso sob a forma de uma parábola que conta a disputa em uma corrida entre o herói Aquiles e uma tartaruga: como a velocidade de Aquiles é muito maior que a da tartaruga, esta recebe uma boa vantagem, começando a contenda um trecho à frente da linha de largada de Aquiles. Porém, nesta parábola o herói nunca chega a alcançar e menos ainda a ultrapassar o quelônio, porque o raciocínio adotado é que quando Aquiles alcança o ponto de partida da tartaruga, ela já andou e está um pouco à frente dele; quando o herói chega à nova posição, tartaruguinha já conseguiu avançar mais um pedaço do trajeto, e assim sucessivamente, ao infinito. Em resumo, Aquiles aproximar-se-ia sempre e cada vez mais, porém nunca chegaria a zerar, ou anular, a distância entre ele e seu rival quelônio... 
A corrida entre Aquiles e a tartaruga no paradoxo de Zenão
Obviamente que esta famosa corrida fictícia é apenas um exercício lógico e filosófico que se caracteriza por uma contradição insolúvel (já que, no mundo real, a tartaruguinha sequer teria tempo de dar alguns passos antes de ser ultrapassada por Aquiles ou por qualquer outro corredor não tão veloz), mas demonstra a dificuldade dos gregos para lidar com o conceito abstrato de zero. Importante ressaltar que os gregos tinham a noção do zero como uma anulação entre créditos e débitos nos cálculos contábeis ou financeiros. A tênue exceção a essa linha de pensamento ficou por conta do matemático, astrônomo, geógrafo e poeta greco-romano Ptolomeu, que por volta de 130 d.C., influenciado pelos babilônios, usou um símbolo para o zero (um pequeno círculo com uma barra longa sobrescrita) em um sistema numérico sexagesimal, que entretanto utilizava os numerais gregos no lugar da escrita cuneiforme, em sua obra “Almagesto”, título de origem árabe que significa "O maior", um tratado de astronomia. Esse símbolo foi usado por Ptolomeu não apenas entre os dígitos, mas no fim de um número; entretanto, ele ainda considerava o zero como um tipo de marca para pontuar os números.
Gravura de um coroado Ptolomeu sendo guiado (ou talvez inspirado) pela musa Astronomia, no livro "Margarita Philosophica", de Gregório Reis, de 1508

Seja como for, imputa-se aos hindus a atribuição do zero como um número e não mais como um mero símbolo ou espaço em branco, ao qual davam o nome sânscrito de súnia, que se traduz como “vazio”. Esta palavra deriva provavelmente de shuna, que é o particípio passado de svi, “crescer”. Em um dos primeiros textos Vedas, o “Rigveda”, súnia assume outro significado: falta ou deficiência. Talvez estes sinônimos tenham se fundido para dar a súnia um único sentido, exprimindo ausência ou vazio com potencial de crescimento. Daí porque a palavra suniata, derivada de súnia, descreve a doutrina budista do Vazio, ou seja, a prática espiritual de esvaziar a mente de todas as impressões cognitivas, um método prescrito em uma ampla gama de esforços criativos. Por exemplo, a prática da suniata é recomendada para escrever poesia, compor uma peça musical, produzir uma pintura ou qualquer atividade que saia da mente do artista. Um arquiteto recebeu o conselho nos tradicionais manuais Vedas de arquitetura (os “Shilpa Shastras”) de que projetar um edifício envolvia a organização do espaço vazio, pois “não são as paredes que fazem um edifício, mas os espaços vazios criados pelas paredes”. Observe o processo da criação vividamente descrito no seguinte versículo de um texto budista tântrico:

Primeiro, a realização do vazio (súnia)

Segundo, a semente na qual tudo está concentrado

Terceiro, a manifestação física

Quarto, deve-se implantar a sílaba

Logo se reconheceu que os súnias ocupavam uma posição notacional, assim como o “vazio” ou a ausência de valor numérico poderia ocupar qualquer posição em um número. Consequentemente, todas as grandezas numéricas, por maiores que fossem, poderiam ser representadas com apenas dez símbolos, como se pode observar neste comentário sobre o “Yogasutra”, de Patanjali, em que aparece a seguinte analogia:

“Assim como o mesmo signo é chamado de cem no lugar das 'centenas', dez no lugar das 'dezenas' e um no lugar das 'unidades', a uma mesma pessoa é imputada (diferentemente) o papel de mãe, filha ou irmã.”

Ou neste outro comentário, contido em um texto do trabalho enciclopédico “Manasollasa” (datado do século XII d.C.):

“Basicamente, existem apenas nove dígitos, começando com 'um' e indo até 'nove'. Com os zeros adicionados, eles são aumentados sucessivamente para dezenas, centenas e mais além.”

O símbolo para súnia começou como um ponto (bindu), sendo encontrado em inscrições na Índia, no Camboja e em Sumatra por volta dos séculos VII e VIII d.C. A associação entre o conceito de zero e seu símbolo já estava bem estabelecida nos primeiros séculos da era cristã, como mostra a seguinte citação, extraída do clássico conto romântico sânscrito, o “Vasavadatta” (escrito por volta de 400 d.C.):

“As estrelas brilhavam como zero-pontos (súnia-bindu) – espalhadas no céu como se no tapete azul o Criador contasse o total [usando] um pouco da lua como giz.”

Entretanto, a mais antiga e indubitável ocorrência na Índia do súnia, ou número zero, encontra-se em uma inscrição numa placa dentro de um templo dedicado ao deus Vishnu no Forte Gwalior, e datada de 876 d.C. Nessa placa, na quarta linha há o número 270 e na vigésima linha do texto, e onde são mencionadas 50 guirlandas usa-se um símbolo que é idêntico ao que usamos atualmente para o zero, ao qual os hindus denominavam chidra ou randra, cujo significado é “buraco”. Dada a época em que surgiu essa inscrição no Forte Gwalior, especula-se que houve a transmissão de conhecimentos astronômicos gregos pré-Ptolomaicos para os hindus através das rotas comerciais romanas durante a dinastia Gupta (portanto, entre os séculos 4 e 7 d.C.), porém com a adoção do sistema numérico posicional hindu para os cálculos matemáticos. Foi também nesse período dourado que os astrônomos hindus produziram os seus “Siddhantas”, cujo significado é “soluções”, e que cobriam conceitos matemáticos, astronômicos e movimentos planetários com base na teoria planetária grega. Os textos sânscritos sobre matemática e astronomia geralmente continham uma seção chamada súnia-ganita, ou cálculos envolvendo o zero. Enquanto a discussão nos textos aritméticos (pati-ganita) era limitada apenas à adição, subtração e multiplicação com zeros, o tratamento em textos sobre álgebra (bija-ganita) cobria questões como o efeito do zero sobre os sinais positivos e negativos, a divisão por zero e mais particularmente a relação entre zero e infinito (ananta).

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: o Forte Gwalior

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: templo dedicado ao deus Vishnu, contendo a placa com os números zeros

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da placa contendo o número 270

A evidência mais antiga do numeral zero na Índia: detalhe da mesma placa contendo o número 50

De fato, o “Brahmasphutasiddhanta” (ou “Soluções de Brahmagupta”, escrito por volta de 628 d.C.), o mais conhecido trabalho do astrônomo e matemático hindu Brahmagupta, continha a melhor compreensão até então do papel matemático do número zero. Do exposto, depreende-se que súnia possui um profundo significado filosófico relacionado à indescritível realidade suprema que transcende a existência e a não-existência, bem como a origem de todas as coisas. De fato, o mistério da origem do universo despertou a mente dos filósofos e estudiosos ao longo dos séculos; os primeiros pensadores ocidentais, no entanto, tentaram lidar com o todo da realidade com os seus recursos limitados. Eles tentaram explicar a evolução do universo com coisas finitas. Pensadores posteriores mudaram suas posições inclinando-se sobre o absoluto, ou seja, um ser infinito. Este infinito é a única realidade e todas as outras coisas são reflexos disso. A concepção do bem e do universo como uma tímida aproximação de seu ideal no mundo das formas, adotado por Platão, e a doutrina de uma causa primária, por Aristóteles, são semelhantes a este conceito; entretanto, os filósofos hindus tinham suas próprias opiniões a esse respeito: para eles, o fim último de todo ser é enxergar a verdade mais elevada a que todas as coisas devem sua origem. Diferentes pensadores atribuíram nomes diferentes para esta verdade ou realidade: Deus, Brahma, Espírito Supremo, e assim por diante. Deste modo, a realidade suprema é misteriosa e inexplicável; ela só pode ser intuída e é adequadamente descrita através de súnia: vazio não apenas daquilo que é, mas também daquilo que não é. 
Especula-se que em 773 d.C. estudiosos hindus visitaram a corte de al-Mansur em Bagdá trazendo consigo a cópia de um texto astronômico indiano, possivelmente o “Brahmasphutasiddhanta”, junto com especiarias e outros itens exóticos. O califa ordenou que essa obra fosse traduzida para a sua língua e é possível que tenha inspirado a criação de um dos textos árabes mais antigos a lidar com aritmética utilizando os numerais hindus: o “Kitab al-jam’wal tafriq bi hisab al-Hind” (ou “Livro da adição e da subtração pelo cálculo hindu”), do matemático al-Khwarizmi, onde se apresentam os nove numerais hindus e – como nos diz a versão em latim de sua obra que sobreviveu até os nossos dias – um círculo para designar o zero. A palavra súnia foi traduzida para o árabe como sifr, cujo significado é “nada” e do qual deriva a palavra “cifra” em português. É curioso que Fibonacci – em seu “Liber Abaci” – não demonstre firmeza suficiente para tratar o zero do mesmo modo que os demais algarismos, chamando-o de “sinal”, enquanto denomina os outros de “números”. Aliás, Fibonacci adaptou a palavra árabe sifr para a latina zephirum, que deu origem ao “zero” em português. Outro fato interessante é que, assim como os demais algarismos, o zero também sofreu alterações em sua forma ao longo do tempo nos textos medievais de matemática, assumindo diversos estilos, mas sempre tendo como base um círculo, como se pode observar na figura a seguir:

As formas para o número zero

Uma imagem recorrente em diversas civilizações (tais como a egípcia, indiana e grega) é a do ouroboros, uma cobra devorando a própria cauda. Este símbolo representa a unidade e o infinito, a conexão entre todas as coisas, a eterna recorrência ou ainda “o fim é o início” e pode ter servido de inspiração à forma circular do algarismo zero, ainda que não haja nenhuma evidência que possa sustentar esta hipótese. De todo modo, não deixa de ser curiosa a semelhança entre estas formas e conceitos...
Ouroboros, a cobra devorando a própria cauda

Hoje em dia parece exagero fazer-se tanto barulho por um simples algarismo; porém, é justamente o fato de se conhecer e saber trabalhar corretamente as propriedades do zero que nos permitiu atingir um avanço matemático (e por consequência, tecnológico) sem precedentes. Ainda assim, mesmo funcionando como um símbolo e um conceito destinados a denotar ausência ou o vazio, somente o zero possui certos caprichos que o tornam um algarismo especial e profundamente filosófico.


Referências bibliográficas:

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Cajori, F. “A history of mathematical notations – Vol. I: Notations in elementary mathematics”, The Open Court Company, 1928.

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Roy, R. “Babylonian Pythagora’s theorem, the early history of zero and a polemic on the study of the history of science”, Resonance, pp. 30-40, January/2003.

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Joseph, G. G.  “A brief history of zero”, Iranian Journal for the History of Science, 6, pp. 37-48, 2008.

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Kaplan, R. “The nothing that is: a natural history of zero”, Oxford University Press, 1999. ISBN: 0-19-512842-7.

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Blake, R.; Verhille, C. “The Story of 0”, FLM Publishing Association, For the Learning of Mathematics 5, 3, Nov 1985.

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Ifrah, G. “The universal history of numbers – From prehistory to the invention of the computer”, John Wiley & Sons, 2000. ISBN: 0-471-39340-1.

[9]

Alfonsín, J.L.R.; Testard, S. “The Maya and the conception of Mixbaal”, Mathematics in School, November 1995.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.

Como os sistemas numéricos evoluíram ao longo da história?

E


xiste uma curiosidade acerca do sistema numérico sumério que comentamos no capítulo anterior: sua base é sexagesimal, ou seja, a base de contagem é 60 e não 10 como a nossa. Esta forma de contagem não é muito exótica se pensarmos que é possível contar as falanges dos quatro dedos de uma mão aplicando o polegar para a contagem; neste caso, teríamos um total de 12 falanges e, se utilizarmos os 5 dedos da outra mão para computar cada dúzia, seremos capazes de ampliar a contagem até 60. Esta forma de contar, por sinal, ainda é utilizada em certas regiões da Ásia e funciona dessa mesma maneira.

Contando as falanges das mãos

Ainda assim, o sistema numérico sumério não era sexagesimal puro no sentido de que não havia 60 sinais diferentes para esses dígitos, mas apenas dois sinais distintos utilizados em conjunto para descrever os demais, como se pode observar na figura abaixo:

Números babilônicos em escrita cuneiforme
Este sistema numérico, apesar de totalmente estranho para nós, foi tão poderoso e eficiente para a sua época que até hoje existem resquícios de sua estrutura sexagesimal e do qual fazemos intenso uso, como a marcação das horas, cada hora com seus 60 minutos e cada minuto com seus 60 segundos, bem como a medição de ângulos baseada em graus, num total de 360, um valor que também é múltiplo de 60. Ainda assim, seu curioso sistema numérico não passou para a posteridade, deixando apenas algumas poucas, porém profundas, marcas no nosso. A civilização egípcia, a mais antiga depois da suméria, foi a primeira a apresentar um sistema numérico de base decimal, tendo surgido por volta de 3.000 a.C. Sua representação, assim como a escrita desse povo, era pictórica e seus signos ou figuras denominavam-se hieróglifos. Com apenas sete sinais hieroglíficos os egípcios eram capazes de representar qualquer número.
Hieróglifos para representação numérica
Da ilustração, observa-se que os números de 1 a 9 são representados por traços, algo tão simples quanto a representação numérica dos nossos homens das cavernas de Peruaçu, em Minas Gerais. O número 10 é representado pelo hieróglifo que simboliza um pedaço de corda; o número 100 por um rolo de corda; o número 1.000 por uma planta de lótus ou nenúfar; o número 10. 000 era representado por um dedo longo e fino; o número 100.000 era simbolizado por um sapo (às vezes, no lugar do sapo eles colocavam um girino) e o número 1.000.000, que também significava “muito”, era representado por um homem ou talvez o deus Heh, com os braços apontados para cima, num possível gesto de adoração. Para escrever o número 1.969 eles precisariam de um total de 25 hieróglifos!

Entretanto, esses sinais eram utilizados apenas em documentos oficiais emitidos pelo faraó, bem como em tumbas e monumentos, onde a solenidade e a pompa se faziam necessárias para mostrar a autoridade do regente e a força do império, e o rebuscado dos hieróglifos contribuía certamente para reforçar esse sentimento; para as tarefas cotidianas era utilizada a escrita criada pelos escribas e conhecida por hierática, que simplificava em muito a hieroglífica, de modo que os números ficavam deste jeito:

Escrita hierática, utilizada pelos escribas
Nem é preciso dizer que o sistema numérico egípcio também não vingou além das fronteiras e apenas durante o período de existência dessa civilização. Já no continente americano temos outro exemplo muito interessante de um sistema numérico, este vigesimal, criado por uma das mais avançadas civilizações antigas: a maia. Tendo surgido por volta de 2.000 a.C. e se estabelecido na região atualmente ocupada pelo México, esta civilização prosperou e foi formada por cidades-estados tal como os sumérios, as principais sendo: Chichén Itza, Uxmal, Edzná e Coba, e tal como a civilização egípcia construiu pirâmides, mas possuía uma escrita logossilábica, uma combinação de símbolos fonéticos e logogramas, num total de mais de 1.000 glifos diferentes. Ironicamente, o sistema numérico maia continha tão somente três símbolos para representar qualquer número: um glifo em formato de concha para o número zero, um ponto para o número 1 e um traço para o número 5. A ilustração a seguir apresenta um exemplo de como os maias escreviam seus números utilizando os três símbolos:
Sistema vigesimal maia
Ao invés de utilizarem 1, 10, 100, 1.000 ou 10.000 como no nosso sistema decimal, os maias utilizavam 1, 20, 400, 8.000 ou 160.000 como base de contagem em seu sistema vigesimal.

Assim, para números maiores que 19, os maias “empilhavam” progressivamente seus três sinais numéricos para descrevê-los. Por exemplo, o número 27 era escrito como abaixo:

Sistema vigesimal maia

De fato, fica evidente que este sistema numérico nada tem de prático para nós e, como os anteriores, sobreviveu gravado nas pirâmides, estelas e monumentos maias, porém ficou para sempre esquecido nas sombras da floresta tropical mexicana. Contudo, foi graças à civilização hindu que a humanidade ganhou um sistema numérico verdadeiramente poderoso e ainda hoje imbatível para expressar quantidades e realizar cálculos. Esta civilização surgiu por volta de 2.500 a.C. (portanto, contemporâneos tanto dos sumérios quanto dos egípcios) e floresceram em duas principais cidades: Harapa e Mohenjo-daro, onde atualmente se encontra o Paquistão, e em mais de uma centena de cidadelas e vilarejos ao redor destas, mesclando-se posteriormente com a cultura védica, esta oriunda do atual Irã. É dessa fusão que chegaram até nós os primeiros registros literários daquela que talvez seja a mais importante obra hindu: os Vedas, escrita em sânscrito e datando entre 1.500 a.C. e 800 a.C. Estes textos, consistindo de hinos, encantamentos e observações ritualísticas, foram de início transmitidos oralmente e posteriormente se transformaram em obras escritas para os seguidores da religião védica. Dentre essas obras religiosas, os Sulbasutras são as que têm importância para a matemática, pois apesar de serem meros apêndices dos Vedas, continham grande quantidade de conhecimento geométrico e consistiam de regras para a construção de altares, propiciando um ambiente favorável para o desenvolvimento matemático, ainda que o propósito estivesse voltado à prática religiosa.

As ruínas de Mohenjo-daro
Os principais sulbasutras foram escritos por homens que eram ao mesmo tempo sacerdotes e estudiosos, dentre os quais se destacam Baudhayana (por volta de 800 a.C.), Manava (cerca de 700 a.C.), Apastamba (ao redor de 600 a.C.) e Katyayana (por volta de 200 a.C.). Foi antes do final do período dos sulbasutras, ao redor do século 3 a.C., que os numerais Brahmi começaram a aparecer nos textos hindus e também em inscrições preservadas em escavações em Bombai e Puna, conforme a seguir:
Os numerais Brahmi
Crê-se que estes sejam os numerais primordiais usados até o século 4 d.C que, após incontáveis mudanças, deram origem aos números modernos. Sucedendo os números brahmis, os numerais Gupta foram desenvolvidos. Estes símbolos foram adotados durante a dinastia Gupta, que reinou em grande parte da região norte e nordeste da Índia, de 320 d.C. a 650 d.C.:
Os numerais Gupta
Este período é conhecido como era de ouro da Índia, e foi fortemente marcado por invenções e descobertas na ciência, tecnologia, engenharia, arte, dialética, literatura, lógica, matemática, astronomia, religião e filosofia. Acredita-se que o xadrez tenha se originado nesse período de pura efervescência cultural. Como o império Gupta abrangia um amplo território, seu sistema numérico espalhou-se igualmente por vastas regiões. Os numerais gupta foram substituídos pelos Nagari, também conhecidos por numerais Devanagari, no início do século 5 d.C. e continuaram se desenvolvendo para além do século 11 d.C. Devanagari significa literalmente “escrita dos deuses” e foram estes números que se disseminaram a partir do século 5 d.C. pelo mundo árabe. Os numerais Devangari estão descritos conforme segue:
Os numerais Devangari
Todavia, sua evolução até os numerais modernos e sua disseminação no mundo ocidental enfrentou um longo caminho até ser adotado em definitivo, de modo que, para continuarmos nossa jornada, as próximas civilizações que, direta ou indiretamente influenciaram essa adoção são: a grega, a romana e a árabe. Tendo surgido por volta de 1.200 a.C. e sucedendo a decaída civilização micênica, os gregos antigos estavam divididos em pequenas comunidades autogovernadas na extremidade sul dos Bálcãs, onde a Grécia moderna ainda hoje se encontra. A cultura helênica clássica exerceu posteriormente uma irresistível influência no poderosíssimo império Romano, que adotou e adaptou essa cultura e a disseminou em toda a região do Mediterrâneo e da Europa; por essa razão a civilização helênica é considerada a cultura seminal que forneceu os alicerces da atual cultura ocidental, da qual fazemos parte, tendo-nos influenciado na língua, na política, nos sistemas educacionais, na filosofia, nas ciências e nas artes, exceto no sistema numérico...A mais antiga notação numérica utilizada pelos gregos foi o sistema ático, possivelmente no século 7 a.C., de base decimal, sendo também chamados de numerais acrofônicos, porque os símbolos derivavam da primeira letra de cada palavra que representava o número. Todavia, o número 1 era o único que não tinha um equivalente fonético, pois constava de uma simples barra vertical, símbolo aliás já bem conhecido nosso. A figura abaixo mostra a representação simbólica do sistema ático:
Os numerais acrofônicos
O outro sistema grego de numeração foi o jônico ou alfabético, porque neste caso eles utilizavam as 25 letras de seu alfabeto para cada número, e mais dois caracteres adicionais: o copa (para o número 90) e o sampi (para o número 900), conforme se observa a seguir:
Os numerais jônicos ou alfabéticos
Assim, o que para nós é 287 para a civilização grega era σπζ. Para a representação de números ainda maiores era utilizada uma apóstrofe antes da letra correspondente ao número de maior potência. Por exemplo, o número 3.287 seria representado assim: 'γσπζ, ou seja, o número 3 grego (γ) recebia uma apóstrofe para representar os milhares. Já para a representação dos números 50, 500, 5.000 e 50.000, por exemplo, eles utilizavam os símbolos:

Que é o número 5 grego embutindo os números 10, 100, 1.000 e 10.000 (todos do sistema ático) para representação das potências de 5; ou seja, havia uma mescla entre o sistema ático e o jônico. Os gregos tinham sérios problemas para expressar números muito grandes com esses sistemas, o que forçou o filósofo Arquimedes no século 2 a.C. a ampliá-los em sua epístola ao rei Gelão, “O contador de areia”, onde ele se propôs calcular a quantidade de grãos de areia necessários para preencher o universo de Aristarco, que Arquimedes simplificou como sendo uma esfera com raio igual à distância entre o centro do Sol e o centro da Terra.

Apesar da inquestionável competência da civilização grega em muitas áreas do conhecimento humano, este sistema numérico acabou submergindo nos grãos de areia do passado. Como comentado alguns parágrafos antes, os gregos influenciaram de modo indelével a civilização romana. Este povo, surgido de uma pequena comunidade agrícola e pastoril na península itálica no século 8 a.C., tornou-se num dos maiores impérios do mundo antigo, chegando a controlar um território com cerca de 6,5 milhões de Km2 na época do imperador Trajano, no século 1 d.C., e que englobava o sudoeste da Europa ocidental, o sudeste da Europa (incluindo os Bálcãs) e toda a bacia do Mediterrâneo, através de conquistas e assimilações. Seu sistema numérico, composto dos chamados numerais romanos, emprega combinações de letras do alfabeto latino para atribuição de valores, algo semelhante ao sistema jônico grego:

Os numerais romanos
Entretanto, uma hipótese sobre a origem do sistema numérico romano é de que esses símbolos foram adaptações dos entalhes em bastões. Desse modo, o I do número 1 romano não viria da letra I, mas sim de uma marca; a cada quinto entalhe seria feita uma dupla marca, semelhante à letra V e a cada décimo entalhe haveria uma marca em cruz (X), um método que ainda era utilizado no século 19 d.C. por pastores italianos para controle dos rebanhos. O sistema numérico romano persiste ainda nos dias de hoje, aparecendo principalmente nos mostradores de relógios analógicos e na ordenação dos artigos das leis; de fato, o Direito é sem dúvida o maior legado deixado pelo império romano. É interessante observar que os romanos propriamente nunca utilizaram o M para representar o número 1.000; ao invés disso, escreviam esse número deste modo: CIƆ. Para 10.000 eles escreviam CCIƆƆ, para 100.000 era CCCIƆƆƆ, e assim sucessivamente. A letra M passou a representar o número 1.000 nos algarismos romanos de forma intensa somente a partir da Idade Média, quando há muito o império romano não mais existia. Aliás, o ocaso do império romano ocorre com sua divisão em dois: império romano do ocidente (com capital em Roma) e império romano do oriente (com capital em Constantinopla) após a morte do imperador Teodósio I em 395 d.C. Antes disto, mais especificamente em 313 d.C., o então imperador Constantino I publicava o Édito de Milão, que instituía a tolerância religiosa no império, beneficiando principalmente os cristãos que, monoteístas, não juravam culto divino aos imperadores, provocando reações violentas da parte destes, sendo os cristãos por isso perseguidos ou mortos em arenas, devorados por feras. Finalmente, em 476 d.C., o último imperador romano do ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto por um grupo de mercenários como resultado de um longo desgaste que se desenrolava há quase um século, dando início ao que se convencionou chamar de Idade Média.

Saque de Roma pelos Vândalos em 455 d.C., ilustração de Heinrich Leutemann.

É a partir desse período e nesse caldeirão de turbulências sociais que os números hindu-arábicos encontraram um ambiente propício para se imiscuir na Europa e tomar definitivamente seu lugar na história. E aqui começa também a contribuição valiosíssima da cultura árabe nesse processo. A cultura árabe primitiva foi formada por principados e pequenos estados independentes que ocuparam a península arábica, destacando-se: reino de Sabá, surgido no século 8 a.C.; o reino Mineu, surgido também no século 8 a.C. e estabelecido ao norte do reino de Sabá; os reinos de Qataban e Hadramut, o primeiro tendo surgido por volta de 600 a.C. e o segundo cerca de 450 a.C., ambos estabelecidos a leste do reino de Sabá e importantes pontos de comércio com a Índia; o reino de Petra, criado por várias tribos nômades no nordeste da península arábica com o objetivo de proteção mútua; o império de Palmira ou Tadmor, estabelecido a noroeste da cidade de Damasco; o reino dos Gassânidas, formado no ano 400 d.C. a sudeste de Damasco por fugitivos do reino de Sabá quando este foi conquistado pelos etíopes; o reino de Hira, formado a partir de um acampamento da tribo Tanukh em 275 d.C. e que tinham nos gassânidas seus maiores inimigos; e finalmente o estado de Kindah, formado pela conquista de diversas tribos beduínas pelo soberano himiarita Hassan Tuba e posto sob o governo do irmão deste, Hudjr. Estes reinos exerceram influência ou foram conquistados uns pelos outros até sofrerem sua total unificação política e religiosa sob a liderança de Maomé, que deu origem aos califados islâmicos, divididos historicamente em três fases. A primeira fase, denominada de califado Rashidun, vai de 632 a 661 d.C., após a morte do profeta; a segunda fase, chamada de califado Omíada, vai de 661 a 750 d.C.; e finalmente a terceira fase, denominada de califado Abássida, vai de 750 a 1299 d.C.

Distribuição geográfica dos califados

Durante esses 667 anos, também conhecidos como era de ouro do islamismo, o mundo árabe transformou-se num centro intelectual singular da ciência, filosofia, matemática, medicina e educação, graças aos preceitos do Alcorão e das tradições do Hadiz (corpo de leis, lendas e histórias sobre Maomé), cujos valores se expressam em frases como: “a tinta dos estudiosos vale tanto quanto o sangue dos mártires”, evidenciando o extremo valor que davam ao conhecimento; de fato, o mundo árabe, sendo uma coleção de culturas postas em conjunto, foi capaz de sintetizar e avançar significativamente nos conhecimentos adquiridos pelas civilizações que os precederam: romana, chinesa, grega, egípcia, indiana, entre outras. Foi também o maior império que o mundo havia visto até então, com um território de cerca de 15 milhões de Km2 em seu apogeu.

Manuscrito árabe descrevendo o olho humano, ± 1.200 d.C.

Nesse ambiente único, não é de se espantar que uma das maiores inovações árabes tenha sido a difusão maciça do papel; originalmente um segredo guardado zelosamente pelos chineses da dinastia Han, a arte de confecção do papel foi obtida a partir de prisioneiros capturados na batalha de Talas em 751 d.C. e aprimorada pelos árabes, que passaram a utilizar casca de amoreira e amido em sua produção. Como o papel era mais fácil de ser produzido que o pergaminho e menos propenso a quebrar que o papiro, podendo ainda absorver tinta que era difícil de apagar, transformou-se no meio ideal para manter registros que, associados ao respeito que nutriam pelo conhecimento, fomentaram o surgimento de fábricas de papel em Samarcanda e Bagdá, de modo que no ano 900 d.C. havia centenas de estabelecimentos em Bagdá que empregavam escribas e encadernadores de livros, bem como se estabeleceram as primeiras bibliotecas públicas, sendo as primeiras do mundo a adotarem o empréstimo de livros.

Foi essa reverência às ciências que fez o califado Abássida patrocinar maciçamente os estudiosos da época no assim chamado “Movimento tradutório”, um esforço do império para a tradução de obras da antiguidade clássica, principalmente as gregas, para o árabe. Estima-se que os melhores estudiosos e os mais notáveis tradutores ganhassem salários equivalentes aos atletas profissionais de hoje. Graças a esse impressionante trabalho, muitas dessas obras clássicas gregas não se perderam definitivamente no passado; posteriormente, elas foram sendo traduzidas para o turco, persa, hebreu e latim. As traduções para o latim foram fundamentais para a dispersão desses clássicos do conhecimento por toda a Europa medieval – que fora domínio do império romano – a partir de al-Andaluz, que era o nome dado à península Ibérica pelos árabes, onde atualmente se encontram Portugal e Espanha. Esta feliz conjunção de fatores – a amálgama de culturas sob um único estado, a expansão do conhecimento da época e a difusão do papel – permitiram à matemática atingir um novo patamar evolutivo, graças a outra essencial ajudinha dos árabes: o aperfeiçoamento do sistema numérico hindu. O mundo árabe sob o comando do califado Abássida fazia fronteira com a dinastia Gupta indiana já no século 5 d.C. Sendo primorosos comerciantes, não é difícil imaginar um forte intercâmbio entre esses dois povos, seja na troca de mercadorias, seja na troca de conhecimento. Na verdade, há indícios de que o sistema numérico hindu migrou para o oeste antes mesmo da consolidação do mundo árabe. Por exemplo, em 662 d.C. o bispo cristão de origem síria Severus Sebokht, quando vivia na cidade de Keneshra à margem do rio Eufrates, escreveu o seguinte acerca do sistema numérico hindu:

“Omitirei toda discussão acerca da ciência dos indianos..., suas sutis descobertas na astronomia, descobertas mais engenhosas que as dos gregos e dos babilônios, e de seus preciosos métodos de cálculo que ultrapassam descrições. Gostaria apenas de dizer que este cálculo é feito por meio de nove sinais. Se aqueles que crêem, porque falam grego, que chegaram aos limites da ciência, deveriam ler os textos indianos e poderiam ser convencidos, ainda que um pouco tardiamente, que existem outros que sabem algo de valor”.

Seja como for, os árabes souberam rapidamente aproveitar e fazer uso das vantagens únicas desse sistema de numeração. Credita-se ao matemático al-Khwarizmi o primeiro texto árabe para explicar o sistema numérico hindu, intitulado “Livro da adição e da subtração pelo cálculo hindu” escrito por volta de 825 d.C. cujo original infelizmente se perdeu, mas que teve uma tradução para o latim que chegou até nós com o equivocado título “Algarismos dos numerais hindus” cuja palavra algarismo é uma corruptela de al-Kwarizmi. Um dos exemplos do uso dos primeiros numerais hindus pelo império árabe vem de um trabalho de al-Sijzi, astrônomo e matemático que escreveu sobre a geometria das esferas, não um trabalho original, mas antes uma cópia datada de 969 d.C., conforme se observa a seguir:

Numerais utilizados por al-Sijzi
Cem anos mais tarde os numerais hindu-arábicos sofreram uma pequena adaptação, como se pode ver pela grafia de al-Biruni, um dos maiores matemáticos do islamismo antigo:
Numerais utilizados por al-Biruni
Por volta de 1300 d.C. os numerais hindu-arábicos já se aproximavam bastante do formato atual, como se pode ver do exemplo abaixo obtido a partir de textos do matemático al-Marrakushi:
Numerais utilizados por al-Marrakushi
Por outro lado, o mais antigo texto europeu encontrado até hoje que faz referência aos numerais hindu-arábicos é o “Codex Vigilanus” ou Crônica Albeldense, uma compilação em iluminuras de vários documentos históricos do período visigótico na península Ibérica, cuja primeira versão foi concluída em 881 d.C. O nome Albeldense vem dos responsáveis pela compilação da obra, três monges do Mosteiro de San Martín de Albelda: Vigila, o responsável pela ilustração e da qual provém o nome Vigilanus do manuscrito; Sarracino, seu amigo e Garcia, seu discípulo.
Os monges Sarracino (à esquerda), Vigila (ao centro) e Garcia (à direita)

O excerto abaixo é a parte do texto onde explicitamente se faz referência aos numerais hindu-arábicos na crônica Albeldense, em uma posterior compilação, datada de 976 d.C. e cujo texto, em latim, é o seguinte:

"Scire debemus in Indos subtilissimum ingenium habere et ceteras gentes eis in arithmetica et geometria et ceteris liberalibus disciplinis concedere. Et hoc manifestum est in nobem figuris, quibus designant unumquemque gradum cuiuslibet gradus. Quarum hec sunt forma 9 8 7 6 5 4 3 2 1"

Um sincero esforço de tradução para a língua portuguesa resultou no texto a seguir:

"Sabemos terem os hindus a sutilíssima sagacidade de outros povos na aritmética e geometria, e concedido outras disciplinas liberais. Isto fica evidente nas figuras gobar, cada uma das quais designa o grau de todos os graus. A seguir, suas formas: 9 8 7 6 5 4 3 2 1."

Os árabes referiam-se aos seus números como numerais gobar, cujo significado é areia, e talvez nobem no texto em latim refira-se a eles. Entretanto, há visíveis diferenças entre os numerais do Vigilanus e aqueles da escrita de al-Sijzi, ambos produzidos com uma diferença de apenas sete anos, o que demonstra que os caminhos pelos quais esses conhecimentos chegavam aos estudiosos não eram necessariamente os mesmos.

O excerto original da crônica Albeldense contendo os numerais hindu-arábicos
Tampouco se assemelhava o formato dos números hindu-arábicos nas primeiras obras medievais publicadas no continente europeu. Por exemplo, no início da tipografia era comum o número 1 ser substituído pela letra i e outras formas variadas, como abaixo:
As formas para o numeral 1
O número 2 muitas vezes aparecia como a letra z. Algumas das formas adotadas para esse numeral eram:

As formas para o numeral 2
O número 3 é um dos que menos sofreram alterações ou adaptações nos manuscritos, como se pode observar a seguir:
As formas para o numeral 3
Já o número 4, ao contrário, variou bastante ao longo do tempo e dependendo de quem o escrevia ou o tipografava; veja os exemplos:
As formas para o numeral 4
O número 5 (perdoemos o trocadilho) não ficou atrás do 4, e também sofreu inúmeras alterações em sua forma; eis algumas delas:
As formas para o numeral 5
Por outro lado o número 6 pouco variou, sendo as maiores na inclinação do topo do sinal, como se pode observar a seguir:
As formas para o numeral 6
O número 7, tal como o número 4, apresentou sua atual posição ereta somente a partir do século 14 d.C., mas antes disso assumiu formas diversas, tais como estas:
As formas para o numeral 7
O número 8, assim como os números 3 e 6, foi dos que menos sofreu mudanças no formato, talvez até o que menos tenha se modificado, como se observa abaixo:
As formas para o numeral 8
O número 9 também não se modificou muito com o passar do tempo, como se observa das tipografias a seguir:
As formas para o numeral 9
Percebe-se claramente que o uso dos numerais hindu-arábicos na Europa medieval estava muito longe de um consenso, a começar pela forma como eram escritos. Aliás, durante o domínio de Roma e mesmo após o seu esfacelamento, o sistema numérico romano reinava absoluto na Europa. Mas, como os europeus faziam contas com ele? Por exemplo, como dividiam MDCCLVI por LIX de cabeça ou no papel? Porque de fato era esse tipo de cálculo que se fazia no comércio, nos impostos devidos aos monarcas, nas equivalências entre mercadorias, etc., ou seja, nas aplicações cotidianas e pelo populacho em geral. A resposta é que não faziam nem de cabeça e nem no papel, mas com o ábaco. Este instrumento antigo de cálculo era formado por uma moldura com bastões ou arames em paralelo, dispostos no sentido vertical e nos quais estão embutidos os elementos de contagem (bolas, fichas ou contas) que podem fazer-se deslizar livremente. A palavra ábaco vem do latim abacus, que por sua vez deriva do grego abakós que significa ”mesa de contagem”, mas sua origem remonta provavelmente à Mesopotâmia, há mais de 5.500 anos.
O ábaco

Fato é que o ábaco era uma ferramenta comum e indispensável nos negócios da idade média, muito embora fossem mais assemelhados a mesas. E foi com o sistema numérico romano na cabeça e o ábaco nas mãos de todo aquele que tivesse necessidade de fazer contas que surgiu em 1.202 o segundo manuscrito de que se tem notícia sobre os numerais hindu-arábicos na Europa: o “Liber Abaci”, ou “O Livro dos Ábacos”. Esta obra foi escrita à mão por Leonardo Pisano, filho de Guilielmo Bonacci (ou filius Bonacci em latim), que lhe rendeu a alcunha pela qual é mundialmente famoso: Fibonacci. Ele nasceu no que hoje é a Itália, mas foi educado no norte da África onde seu pai mantinha um posto diplomático, cujo trabalho era representar os mercadores da república de Pisa na cidade portuária de Bugia, atual Bejaia, no noroeste da Argélia. A esse respeito, escreve Fibonacci em seu “Liber Abaci”:

“Quando meu pai, que foi nomeado por seu país como notário público aos clientes em Bugia atuando para os mercadores de Pisa que para lá iam, e estando no comando, chamou-me a mim quando eu ainda era uma criança e, com um olho na utilidade e conveniência futuros, desejou que eu lá ficasse e recebesse instrução na escola de contabilidade. Lá, quando fui apresentado à arte indiana dos nove símbolos através de notável ensino, o conhecimento dessa arte muito cedo me agradou acima de tudo e vim a entendê-la [...]”

Leonardo Pisano, o Fibonacci
Diz-se que Fibonacci, retornado a Pisa, logo ganhou notoriedade com o seu sistema numérico entre os mercadores italianos e os banqueiros alemães; mas os governos ainda não viam os algarismos arábicos com bons olhos pela facilidade com que era possível trocar um símbolo por outro, o que facilitava muito, por exemplo, as fraudes contábeis. De todo modo, o sistema hindu-arábico ainda levaria mais de três séculos para se enraizar em definitivo na Europa, mesmo com o sucesso obtido por Fibonacci e sua obra. Os manuscritos e livros editados após 1.500 d.C. sobre aritmética refletem bem esse cenário, onde eram relativamente comuns as ilustrações confrontando as técnicas aritméticas entre os dois sistemas numéricos, como bem podemos observar nas ilustrações seguintes.
Ilustração do livro “Ain new geordnet Rechenbüchlein”, de Jakob Kobel, de 1516, mostrando o ábaco à esquerda e contas efetuadas com o sistema hindu-arábico à direita.

Ilustração no livro “Margarita Philosophica”, edição de 1508, escrita por Gregório Reis (original: Gregor Reish). O homem sorrindo à esquerda seria Boécio (filósofo, estadista e teólogo romano que viveu entre 480 e 524 d.C.) fazendo contas com o sistema hindu-arábico; na época em que o o livro fora escrito acreditava-se que Boécio teria tido contato com os numerais hindu-arábicos, o que muito provavelmente não é verdadeiro. Acabrunhado, à direita, seria o grego Pitágoras, utilizando um “decadente” ábaco de mesa para fazer as mesmas contas com base no sistema numérico romano. Ao fundo a aritmética, simbolizada por uma mulher, ou musa inspiradora.

Ilustração do livro “The ground of Artes”, de Robert Recorde, de 1543, com indivíduos confrontando os resultados obtidos em contas feitas no ábaco e no sistema hindu-arábico.

Ilustração do livro de aritmética comercial de 1527 com o singelo título “Ein newe und wolgegründete underweisung aller Kauffmanns Rechnung in dreyen Büchern, mit schönen Regeln und fragstücken begriffen”, de Petrus Apianus, mostrando indivíduos fazendo contas com o sistema hindu-arábico e com o ábaco.
Outra razão, talvez a principal, para que as pessoas na Europa medieval tenham demorado tanto a adotar o sistema hindu-arábico seja o fato de que não é necessário sequer existir um sistema numérico para poder utilizar o ábaco e com ele resolver a maioria dos problemas cotidianos englobando contas, o que significa dizer que mesmo a população e os comerciantes iletrados eram capazes de solucionar os problemas matemáticos envolvidos em suas transações comerciais, tais como o cálculo de juros, utilizando esse instrumento. Lembremos ainda que mesmo hoje o uso do ábaco é intenso no ensino da aritmética, principalmente no Japão e na China, e até no Brasil há crianças que são verdadeiros craques no cálculo aritmético utilizando o soroban, um tipo de ábaco japonês, e o sistema numérico que utilizamos é o hindu-arábico e não o romano... Enfim, muito embora a maioria da população européia medieval fosse analfabeta, o uso e a disseminação dos numerais hindu-arábicos e a facilidade de cálculo mental e escrito que esse sistema trazia paulatinamente conquistou a elite da época, composta pela nobreza, pelo clero e pelos estudiosos, e sua inexorável adoção fez com que os numerais arábicos fossem tomando sua forma definitiva, tal como a conhecemos e utilizamos. Pode-se depreender que faz pouco mais de 500 anos apenas que utilizamos plenamente o sistema numérico hindu-arábico, tendo a humanidade consumido muitos milênios para ser capaz de criá-lo e tirar proveito de todo o seu potencial.
Excerto do “Liber Abaci” de Fibonacci, com os numerais arábicos em vermelho
Detalhe da contra-capa do “Libro intitulado Arithmetica practica”, de 1549, de Juan de Yciar, onde se pode ler “Muy util y provechoso para toda persona que quisiere exercitar-se em aprender a contar/ agora nuevamente hecho por Juan de Yciar Vizcayno” seguido dos algarismos arábicos idênticos aos utilizados atualmente.

Pois bem, tivemos uma breve visão dos fatos históricos que compõem o colorido mosaico dos principais sistemas numéricos desenvolvidos pela humanidade e a forma como chegamos ao atual sistema hindu-arábico. Todavia, existe ainda outro algarismo não tratado neste capítulo, cuja história é tão pitoresca e importante para o desenvolvimento da matemática, que mereceu todo um capítulo à parte: o número zero.


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Juan de Yciar Vizcayno, "Libro intitulado Arithmetica practica”, 1549.


Nota:
Esta postagem é parte integrante do e-book gratuito Matemática: Uma abordagem histórica - Volume 1. Caso queira obter um exemplar, clique aqui.